Do Supremo ao Supremo: o que há de novo no PL 3640 sobre ações diretas de inconstitucionalidade?

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A aprovação da Proposta de Emenda à Constituição 8/2021 no plenário do Senado, que limita a atuação individual dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), pautou o debate público brasileiro nas últimas semanas.

De um lado, há aqueles que entendem a PEC 8/2021 como normativa que visa ao aprimoramento institucional do STF, isso ao fortalecer o plenário e solucionar problemas endêmicos da corte; de outro, há os que enxergam na PEC 8/2021 uma intromissão indevida do Poder Legislativo no funcionamento do órgão de cúpula do Judiciário, a reboque da atuação do Supremo, neste ano, em temas polêmicos como o marco temporal, a descriminalização do porte de maconha para consumo próprio e do aborto e o julgamento dos réus do 8 de janeiro.

Com o seguimento da PEC para a Câmara dos Deputados, o noticiário apontou que o ministro Gilmar Mendes, crítico da PEC 8/2021, e o presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), dialogam para que a Comissão de Constituição e Justiça vote no próximo dia 12 o PL 3640/2023, que trata do processo e julgamento das ações de controle concentrado perante o STF. Tal votação não é desinteressada: o PL serviria como contraponto direto à PEC 8/2021, especialmente no que concerne às cautelares monocráticas dos ministros do Supremo.

Em artigo publicado nesta coluna SUPRA no último dia 19 de outubro, esmiuçamos os aspectos mais importantes do PL 3640, tais como a origem do projeto, o âmbito de atuação, os princípios conclamados, as mudanças procedimentais, as pacificações de entendimentos jurisprudenciais do Supremo e as possíveis polêmicas que podem ser suscitadas como a introdução de novos institutos e disposições legais – como o quórum simples para modulação de efeitos e a possibilidade de transação nas ações de controle concentrado[1].

Agora, com o PL novamente em voga, e visando contribuir com o debate sobre seu conteúdo, pontuamos na presente segunda parte mais duas questões que poderiam passar pela vistoria e pelos debates parlamentares quando da análise do PL 3640 (além das já apontadas anteriormente), já considerando o PRL nº 1 da CCJ (Parecer do Relator), de autoria do deputado Marcos Pereira (Republicanos-SP) e relatoria do deputado Alex Manente (Cidadania-SP). São elas: (i) a possibilidade de inclusão de cláusula de barreira aos partidos políticos pequenos no acesso ao controle concentrado no STF (art. 9°, § 2º do PL) e (ii) a disposição pela não aplicação dos regimes de impedimento e suspeição do CPC aos ministros da corte nos processos objetivos (art. 7°, parágrafo único do PL).

O primeiro ponto diz respeito às posições e às pretensões já exaradas pelo presidente da Câmara, Arthur Lira, e pelo presidente do Partido Liberal, Valdemar Costa Neto, de restringir o acesso de partidos pequenos ao STF, o qual foi alocada no PL, pelo relator, através do § 2°, art. 9°, nos seguintes termos: “Considera-se representação no Congresso Nacional, nos termos do inciso VIII, o partido político que tenha atingido a cláusula de desempenho prevista no § 3º do art. 17 da Constituição Federal”.

Como bem se sabe, ao estabelecer o rol de legitimados ativos para propor as ações de controle concentrado (ADI, ADC, ADPF e ADO), a Constituição da República Federativa do Brasil (art. 103, VIII), a Lei 9.868/99 (art. 2, VIII) e a Lei 9.882/99 (art. 2, I) dispuseram que o “partido político com representação no Congresso Nacional” é ente apto para provocar a jurisdição constitucional concentrada.

Por seu turno, basta para fins de representação, como decidiu o STF logo após a promulgação da Constituição (ADI 65) e em outras oportunidades (vide ADI 2.266), que haja, no momento de ajuizamento da ação, um representante do partido político no Senado ou um representante na Câmara dos Deputados. Desde então, é unívoca a posição do STF quanto ao tema.

A Constituição Cidadã de 1988, de forma inovadora, e procurando democratizar o acesso ao Supremo Tribunal Federal, ampliou o rol de legitimados em contraponto à legitimidade única do Procurador-Geral da República até então existente. Mas não só. A ampliação da legitimidade ativa, além de democratizar o acesso à jurisdição constitucional, deu aos partidos menores a possibilidade de fazer oposição à corrente majoritária no Congresso e provocar o Supremo em relação à eventual inconstitucionalidade aprovada por maiorias ocasionais.

Conforme bem apontado por Roberta Simões Nascimento, retomando as lições do ilustre professor Clèmerson Merlin Clève, é natural numa democracia constitucional o uso do controle de constitucionalidade por partidos políticos minoritários ou de oposição no Congresso Nacional: “(…) a legitimidade ativa dos partidos vem contribuir para o aprimoramento do Estado Democrático de Direito, na medida em que fortalece o direito de oposição. Ora, a maioria não é todo o Parlamento. Há as minorias ali representadas que, devidamente articuladas, formam o bloco de oposição. Cabe a esta, a oposição, propor modelos políticos alternativos e, mais do que isso, provocar a ação fiscalizadora do Parlamento[2].

Ou seja, a legitimidade de partidos políticos menores com, no mínimo, um representante em uma das casas do Congresso Nacional vem ao encontro da democracia representativa ao dar voz às minorias derrotadas no Congresso – o que não deveria ser um problema. E exemplos não faltam quanto à importância desses partidos.

Em recente levantamento realizado pelo jornal O Globo, identificou-se 35 iniciativas de siglas com baixa representação no Congresso que, desde 2019, deram origem a diversas decisões importantes para a história recente do país. Nesse sentido, destacam-se como exemplos as decisões sobre o estado de coisas inconstitucionais do sistema prisional (PSOL), as medidas restritivas na pandemia (Rede), o orçamento secreto (Cidadania, PSB, PSOL e PV) e a reeleição na Câmara e no Senado (PTB).

Nos parece que a literalidade da Constituição deve ser observada em eventual aprovação do PL 3640/2023, isto é, a de que existindo representação, mesmo que única, em uma das casas do Congresso Nacional, possa o partido político – grande ou pequeno – provocar o Supremo Tribunal Federal em sede de controle concentrado de constitucionalidade. Não parece razoável, portanto, limitar o conceito de representação tão somente a partidos políticos que tenham atingido a cláusula de desempenho prevista no § 3º do art. 17 da Constituição Federal. Com isso, perde a democracia deliberativa e ganha as maiorias partidárias eventuais. Rejeita-se, assim, a tentativa de se estabelecer cláusula de barreira aos (importantes) partidos menores disposta no art. 9°, § 2º do PL.

O segundo ponto concerne à aplicação do regime de impedimentos e suspeição aos ministros do STF nos processos objetivos. Da análise do PL 3640, observa-se que após o caput do art. 7 informar que as ações de controle concentrado possuem natureza objetiva, sem partes e que veiculam pretensão genérica de defesa de ordem jurídica, o parágrafo único manifesta que: “Não se aplicam às ações de controle concentrado de constitucionalidade o disposto nos arts. 144 e 145 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015”.

O PL acaba por pacificar a última decisão do STF tomada na ADI 6362/DF, por meio da qual se estabeleceu que: “Não há impedimento, nem suspeição de ministro, nos julgamentos de ações de controle concentrado, exceto se o próprio ministro firmar, por razões de foro íntimo, a sua não participação”.

Entretanto, devemos nos perguntar: o fato de um processo ser subjetivo (vinculado a pretensões individuais e interesses concretos) ou objetivo (via exame de situação abstrata) deveria ser um critério diferenciador para aplicação dos casos de impedimentos e suspeições aos magistrados? Em outros termos: da análise de uma ação de controle concentrado de constitucionalidade, os ministros do STF não poderiam se enquadrar em algum dos casos de impedimento ou suspeição dispostos no Código de Processo Civil?

Em favor da inaplicabilidade, argumenta-se que devido à forma de indicação política na composição do Supremo Tribunal Federal, poderia ocorrer uma situação de: “inexistência de quórum necessário para o pregão de processo do controle concentrado e objetivo, bem assim para modulações de efeitos, por exemplo” (ADI 6362/DF). Todavia, a situação excepcional deveria macular a regra geral? Situação análoga não poderia ocorrer em um processo subjetivo que chegasse à Corte?

O voto do ministro Luiz Edson Fachin na Questão de Ordem suscitada na ADI 6362/DF acabou vencido, mas consubstancia um posicionamento relevante de garantia da imparcialidade e da imagem de imparcialidade dos ministros do STF e, por isso, vale a pena ser retomado.

Assim asseverou o ministro Fachin ao defender que os regimes de impedimento e suspeição devem ser aplicados inclusive aos ministros do STF: “Senhor Presidente, enquanto essa regra não for, eventualmente, declarada inconstitucional, e até este momento o julgamento não se concluiu – inclusive, na condição de Relator, eu a entendo, e já votei, como sendo constitucional –, a ela é deferida uma presunção de constitucionalidade. Com toda a vênia, eu entendo que não seja possível fazer da exceção à regra e também não creio que nós, magistrados do Supremo Tribunal Federal, diante da presunção de constitucionalidade dessa regra, devamos nos colocar à parte desse dispositivo legal”.

Ou seja, sendo (a) o CPC norma geral, que contém, nos arts. 144 e 145, as hipóteses em que existirá impedimento e suspeição do juiz (entendido aqui como magistrado de qualquer instância ou tribunal), e que gozam de presunção de constitucionalidade; e (b) prevendo o art. 277 do Regimento Interno do STF que: “os ministros declarar-se-ão impedidos ou suspeitos nos casos previstos em lei“, não parece existir razão para que institutos de proteção aos ditames de imparcialidade da jurisdição estatal não se apliquem em processos objetivos aos ministros do STF.

Nessa toada, relembra-se que ao declarar inconstitucional, na ADI 5.953, especificamente o inc. VIII do art. 14 do CPC, o qual estabelecia impedimento de juízes em processos que: “figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”, o STF foi amplamente criticado pela opinião pública brasileira e pela crítica especializada ao afrouxar a regra de impedimento que, ao fim e ao cabo, destinava-se a garantir julgamentos justos e imparciais pelos magistrados brasileiros – do juiz de primeiro grau aos próprios ministros do Supremo Tribunal Federal.

E o recado neste caso foi límpido: não pode a Suprema Corte deixar de ser vista como um tribunal imparcial pela sociedade – afinal, parte de sua legitimidade institucional está atrelada à crença de independência e de imparcialidade de seus julgadores. Assim, a partir da noção da imparcialidade objetiva (e, para tanto, relembramos aqui o Caso Piersack vs. Bélgica), repetimos que não basta que um juiz seja imparcial: é preciso que ele pareça imparcial. E grande salvaguarda à imparcialidade dos ministros do STF, inclusive no controle concentrado de constitucionalidade – onde pode existir diversos conflitos de interesse – estão previstas nos arts. 144 e 145 do CPC.

Por tal razão, parece bem-vinda a emenda ao parágrafo único do art. 7 do PL 3640 visando a aplicação dos procedimentos de garantia da imparcialidade em processos objetivos no âmbito do STF.

Eis as duas breves considerações em complemento à primeira parte do artigo publicado nesta coluna SUPRA.

Novamente: há tempo e disposição para que o PL 3640/2023 seja refinado e aperfeiçoado nas comissões e nos plenários das duas casas do Congresso Nacional.

Não deixemos de tratar a legislação sobre o processo constitucional com a atenção que ela merece.

[1] Quanto à expressão “ações de controle concentrado de constitucionalidade”, conforme literalidade do PL 3640/2023, cabe breve adendo. Em termos doutrinários, o controle de constitucionalidade judicial pode ser analisado sob três óticas: quanto ao sistema/órgão (difuso ou concentrado), ao tipo (abstrato ou concreto) e ao momento (preventivo ou repressivo). Dessa forma, parece impreciso o projeto ao aduzir, na ementa, que se ambiciona dispor sobre o processo e o julgamento das ações de controle concentrado de constitucionalidade perante o STF, já que abarca tão somente as ações de controle abstrato de constitucionalidade (ADI, ADC, ADO e ADPF) – e não de controle concentrado. Nesse sentido, vide o rigor conceitual e normativo já há muito tempo defendido pelo Prof. Dimitri Dimoulis e pela Prof. Soraya Lunardi. A discussão não é meramente teórica, mas também normativa e implica os diferentes modos de ativação e recurso ao STF. Nesse sentido, vide: DIMOULIS, Dimitri; LUNARDI, Soraya. Curso de Processo Constitucional: controle de constitucionalidade e remédios constitucionais. 8ªed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021. Vide ainda: TUSSEAU, Guillaume. Contre les “modèles” de justice constitutionnelle: essai de critique methodologique. Bologna: Bononia University Press, 2009.

[2] CLÈVE, Clèmerson Merlin. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. 3. ed. rev., atual. e ampliada com a colaboração de Samuel Sales Fonteles. São Paulo: Thomson Reuters, 2022, p. 182-183.