No ano de 2010, entrou em vigor no ordenamento jurídico brasileiro a Emenda Constitucional nº 66, conferindo nova redação ao artigo 226, §6º, da Constituição Federal de 1988. Ela foi responsável por suprimir, para fins de dissolubilidade do casamento civil pelo divórcio, o requisito da existência da separação judicial por mais de um ano ou de comprovada separação de fato por mais de dois anos. Ao remover os referidos lapsos temporais, o Constituinte Reformador foi categórico: homens e mulheres podem requerer o divórcio a qualquer tempo. Restava, contudo, um Recurso Extraordinário pendente de apreciação no Supremo Tribunal Federal (STF) acerca do tema.
No dia 08 de novembro de 2023, o Supremo Tribunal Federal finalmente examinou a matéria, reverberando o propósito idealizado treze anos atrás pelo Congresso Nacional ao fixar a seguinte tese: “Após a promulgação da Emenda Constitucional nº 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio, nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico”.[1]
Ao menos na teoria, o texto constitucional – chancelado pelo Supremo Tribunal Federal – materializa um direito ao divórcio livre de quaisquer amarras. Este já era, inclusive, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ): “[e]m razão da modificação do art. 226, § 6º, da CF, com a nova redação dada pela EC 66/10, descabe falar em requisitos para a concessão de divórcio”.[2]
A prática, contudo, vem revelando uma realidade inconstitucional e diametralmente oposta, especialmente em relação às mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Após a realização de diversas palestras e cursos nos mais variados estados, este autor tomou conhecimento que, em diversas unidades da Federação, uma significativa parcela de juízes e juízas ainda reluta em conceder o divórcio à parte autora – mulheres em grande parcela dos casos – em sede liminar, sob um pretenso argumento de ser necessária a observância do contraditório entre as partes, evitando-se, assim, uma “decisão surpresa”.
A situação recebe contornos ainda mais dramáticos quando o pedido liminar negado advém de uma mulher vítima de violência doméstica. Abre-se espaço para uma possível revitimização por parte do Poder Judiciário.
Conforme será exposto ao longo deste texto, o referido raciocínio empregado por parcela de magistrados Brasil afora constitui um equívoco interpretativo, revivendo – ao menos em alguma medida, mutatis mutandis –, o ethos da famigerada e já extirpada cláusula de dureza, então prevista no artigo 6º da antiga Lei do Divórcio (Lei 6.515/77), e que possuía como escopo “somente de permitir a decretação da separação ou divórcio por impossibilidade de vida em comum ou quebra dos deveres conjugais”.[3]
Na atual quadra histórica, o divórcio vem sendo concebido como um direito potestativo.[4] Os direitos potestativos foram conceituados com precisão ímpar em por Agnelo Amorim Filho, em seu clássico texto “Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis”. Nas palavras do saudoso professor, são compreendidos como direitos potestativos “aqueles poderes que a lei confere a determinadas pessoas de influírem, com uma declaração de vontade, sobre situações jurídicas de outras, sem o concurso de vontades destas”.[5]
Nesta mesma linha de raciocínio, ao julgar o supramencionado recurso extraordinário que reconheceu o direito incondicionado ao divórcio após a Emenda Constitucional n. 66/2010, o ministro Luiz Edson Fachin foi categórico em seu voto: “[c]asar é um ato de liberdade, é uma escolha, é um ato que constitui uma comunhão de vida. Manter-se casado também há de ser um ato de liberdade, por isso que divorciar-se é um direito potestativo”.[6] O Superior Tribunal de Justiça (STJ) também reconhece a natureza potestativa do direito ao divórcio.[7]
Logo, dada a sua natureza jurídica, o pedido de divórcio não admite oposição, razão pela qual não há sentido em postergar a sua apreciação – e muito menos negá-lo – em sede liminar, especialmente em casos envolvendo mulheres em situação da vulnerabilidade. Pelo contrário, quando formulado em caráter inaudita altera parte, o divórcio deve ser decretado antes mesmo da angularização da relação processual entre as partes, com fulcro no art. 311, inciso IV, do Código de Processo Civil, materializando situação de concessão da chamada “tutela de evidência”, e consumando hipótese de julgamento antecipado parcial de mérito, nos termos do artigo 355, inciso II, do Código de Processo Civil.
Esta também é a posição defendida por Fernanda Tartuce: “não há sentido em esperar a formação do contraditório para a decretação do divórcio, sendo admitida a concessão liminar do pedido. (…) Assim, por meio de um julgamento parcial de mérito, o divórcio é decretado e as demais situações podem prosseguir rumo aos respectivos julgamentos”.[8]
Ocorre que, após a realização de extensa pesquisa nos sítios eletrônicos dos Tribunais de Justiça do país, este autor constatou duas informações preocupantes: a) a prática ocorre de maneira sistemática em praticamente todos os estados da Federação e no Distrito Federal, atingindo precipuamente mulheres; b) em parcela dos casos, o pedido de divórcio liminar, não apreciado liminarmente (ou até mesmo negado), é realizado por mulheres em situação de violência doméstica, o que pode vir a materializar, ao menos na opinião deste autor, uma forma de revitimização.
Em relação a magnitude da questão em comento, cita-se por amostragem acórdãos de lavra dos Tribunais de Justiça dos estados do Paraná,[9] São Paulo,[10] Rio de Janeiro,[11] Alagoas,[12] Mato Grosso,[13] Santa Catarina[14] e Rio Grande do Sul,[15] todos exarados a partir de agravos de instrumento manejados e providos contra decisões de juízes de primeira instância que postergaram a análise ou indeferiram o pedido de divórcio liminar.
O segundo – e ainda mais grave – ponto constatado, diz respeito à não concessão do divórcio liminar em casos envolvendo mulheres vítimas de violência doméstica. Além de caracterizar transgressão direta e frontal ao princípio da dignidade humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal de 1988), especialmente quando interpretado em conjunto com o artigo 226, §6º da CF88, a postura do Poder Judiciário em postergar a apreciação do pedido ou negá-lo, obrigando uma mulher vítima de violência doméstica a permanecer – independentemente se por curto ou longo período de tempo – em um matrimônio com o seu agressor concretiza pernicioso processo de revitimização. Ao comentar o assunto, Flávio Tartuce adverte que devem ser destacadas: “as situações de violência doméstica, em que o diálogo entre as partes é impossível e deve ser evitado, sendo urgente e imperiosa a decretação do divórcio do casal”.[16]
Felizmente, já é possível verificar iniciativas em alguns Tribunais de Justiça no sentido de inibir a referida prática deletéria. A título de ilustrativo, citamos importante passagem em acórdão do TJPR, de lavra relator, desembargador Eduardo Augusto Salomão Cambi:
“Por ser a decretação do divórcio um direito humano, potestativo e incondicional do cônjuge, que não pretende mais manter o vínculo conjugal, em especial da mulher vítima de violência doméstica e familiar, obrigá-la a aguardar a solução final do processo, suportando sozinha os ônus do tempo de tramitação processual, sabendo-se que o demandado não terá razões jurídicas para se opor ao pedido, é uma solução judicial não razoável, desproporcional, inefetiva e inadequada, seja da perspectiva do direito processual, seja a do direito material”.[17]
Outros acórdãos, também de lavra do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, chamam a atenção para a necessidade de se analisar o tema a partir de uma perspectiva de gênero, mediante a aplicação da Resolução n. 138 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).[18] Posição com a qual este autor concorda integralmente.
O texto constitucional é claro: ninguém deve ser aprisionado em uma relação matrimonial. Obstar o divórcio liminar pode vir a significar não apenas a negativa da vigência da própria Constituição quando interpretada em conjunto com as regras acerca da tutela de evidência, mas, especialmente, uma forma de revitimização de mulheres, especialmente àquelas em situação de violência doméstica em todo território brasileiro.
O debate está posto e deve ser enfrentado com sensibilidade. Espero que tenham gostado. Até a próxima!
[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1167478. Rel. Min. Luiz Fux, j. 08/11/2023 (acórdão ainda não publicado).
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.483.841/RS. Terceira Turma. Rel. Min. Moura Ribeiro, j. 17/03/2015.
[3] ANDRADE REIS, Francis Vanine. Divórcio protestativo e julgamento fracionado de mérito no novo Código de Processo Civil. Revista de doutrina e jurisprudência/Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, v. 107, n. 1, p. 69–85, jul./dez., 2015.
[4] ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família Contemporâneo. 10. ed. Salvador: JusPodivm, 2023. p. 356. É também a posição de: CALMON, Rafael. Manual de Direito Processual das Famílias. São Paulo: SaraivaJur, 2023. p. 49.
[5] AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. RT nº 774. Out 1977 – 86º ano, p. 728
[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 1167478. Voto do Min. Edson Fachin, j. 08/11/2023 (acórdão ainda não publicado).
[7] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 1.247.098/MS. Quarta Turma, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, j. 14/03/2017.
[8] TARTUCE, Fernanda. Divórcio liminar como tutela provisória de evidência: avanços e resistências. Revista Magister de Direito Civil e Processual Civil v. 95, mar-abr 2020, pp. 37-50. Esta também é a posição de DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. 16ª ed. Salvador: Juspodivm, 2023, p. 589.
[9] PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento nº 0026028-81.2023.8.16.0000. 12ª Câmara Cível. Rel. Juíza Substituta Sandra Bauermann, j. 18/09/2023.
[10] SÃO PAULO. Tribunal de Justiça de São Paulo. Agravo de Instrumento nº 2182813-58.2023.8.26.0000. 10ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Jair de Souza. j. 30/08/2023.
[11] RIO DE JANEIRO. Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Agravo de Instrumento nº 0082808-57.2023.8.19.0000. 3ª Câmara de Direito Privado. Rel. Des. Maurício Caldas Lopes, j. 10/10/2023.
[12] ALAGOAS. Tribunal de Justiça de Alagoas. Agravo de Instrumento nº 0806243-95.2020.8.02.0000. 1ª Câmara Cível. Rel. Desa. Elisabeth Carvalho Nascimento, j. 11/02/2022.
[13] MINAS GERAIS. Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Agravo de Instrumento nº 1016055-94.2021.8.11.0000. 1ª Câmara Cível. Rel. Desa. Nilza Maria Possas de Carvalho, j. 11/10/2022.
[14] SANTA CATARINA. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº 5008988-13.2022.8.24.0000. 4ª Câmara de Direito Civil. Rel. Des. Helio David Vieira Figueira dos Santos, j. 07/07/2022.
[15] RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Agravo de Instrumento, Nº 53449667420238217000. 8ª Câmara Cível. Rel. Des. Ricardo Moreira Lins Pastl, j. 03/11/2023.
[16] TARTUCE, Flávio. O divórcio unilateral ou impositivo. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1342/O+div%C3%B3rcio+unilateral+ou+impositivo++
[17] PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento nº 0011932-61.2023.8.16.0000. 12ª Câmara Cível. Rel. Des. Eduardo Augusto Salomão Cambi, j. 17/07/2023.
[18] PARANÁ. Tribunal de Justiça do Paraná. Agravo de Instrumento nº 0026028-81.2023.8.16.0000. 12ª Câmara Cível. Rel. Juíza Substituta Sandra Bauermann, j. 18/09/2023.