Disputa pelas novas autorizações de cursos de medicina

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Para quem não está intimamente integrado ao setor da educação superior pode parecer que a grande concorrência entre as instituições de ensino superior é natural e normal ao segmento e que isso é bom para o Brasil, mas dessa constatação derivam diversos problemas.

Há marcos temporais importantes para compreensão da dinâmica que atualmente envolve as Universidades, Centros Universitários e Faculdades, principalmente depois que a legislação permitiu que essas entidades fossem criadas ou compradas por empresas. Desse momento em diante houve um fenômeno de forte concentração de Instituições de Ensino Superior (IES) e alunos em grandes grupos empresariais educacionais.

Esse fenômeno trouxe mudanças importantes ao cenário educacional brasileiro, o que impactou diretamente no julgamento que o Supremo Tribunal Federal (STF) tem realizado a respeito das vagas dos cursos de medicina nas últimas semanas. A questão é que esse é um iceberg muito profundo e que toca em pelo menos três questões muito fortes: a livre concorrência, a autonomia universitária e o papel de regulador do Ministério da Educação.

A Livre Concorrência é um dos capítulos fundamentais dessa celeuma. Duas ações em específico chegaram ao STF (ADC 81 e ADI 7.187) colocaram em oposição os grandes grupos empresariais educacionais e as empresas de médio e pequeno porte, associações e fundações de outro. De 2013 em diante, com base na “Lei do Programa Mais Médicos” (Lei 12.871/2013), o Ministério da Educação passou a ter “super-poderes” e a estabelecer os requisitos para que cidades pudessem receber novas autorizações de cursos de medicina, excluindo as capitais e outras localidades em que houvesse outro curso próximo.

O objetivo da lei é o de interiorizar os cursos nas regiões com menor proporção de médicos. Porém, a Administração Pública elegeu como aptas diversas cidades próximas de São Paulo (com altíssima concentração desses profissionais), como os municípios de Guarulhos, Cubatão, São José dos Campos, Guarujá, Osasco, São Bernardo e São José dos Campos.

O que se pode verificar foi que a norma em questão concedeu ao MEC, sem quaisquer limites, a prerrogativa de escolher os “critérios” para autorizar novos cursos de medicina e a Administração Pública abusou fortemente dessa prerrogativa.

A partir disso, fatos estranhos começaram a se repetir, como a exclusão automática de concorrências públicas das capitais com menos médicos e mais equipamentos SUS, como ocorre nas regiões Norte e Nordeste; a imposição, por meio dos editais, de critérios econômico-financeiros estranhíssimos, que ignoravam o patrimônio líquido e potencializavam a importância da capacidade de fluxo de caixa (em violação à Súmula 289-TCU); a desvalorização da experiência regulatória da universidade, ou seja, da oferta anterior de outros cursos de saúde com boa avaliação do Poder Público e até mesmo o fato de já possuírem hospitais próprios ou já oferecerem residência; e até mesmo o fato das instituições poderem participar sem sequer um campus na localidade da disputa, desde que demonstrasse capacidade financeira para instalá-lo em até dois anos após a autorização do curso.

Em alguns casos, foi até mesmo incomum a falta de importância conferida à dimensão acadêmica. Isso porque criar uma instituição de ensino superior não é equiparável, por exemplo, ao surgimento de uma empresa dedicada à venda de commodities ou de produtos simples. A atividade de ensino é altamente complexa porque demanda formação de corpo de professores, relacionamento com o Município do local de oferta e com o Gestor local do SUS (Secretário de Saúde do Município), ajustamento de equipamentos laboratoriais, entre tantos outros pontos.

O modo de atuar indicou que a Administração Pública adotava regras de disputas muito mais adequadas às IES constituídas como sociedade anônimas do que em relação a todas as demais concorrentes. O Ministério da Educação não prestou contas e nem houve explicações sobre as causas desses estranhos eventos.

Um problema complexo como esse acaba atingindo outras facetas como a Autonomia Universitária (art. 207/CR), já que as instituições estão há dez anos impedidas de protocolizar novos pedidos de cursos de medicina enquanto as vencedoras dos certames não só obtiveram os novos cursos como puderam também aumentar vagas nesse período. A Autonomia Universitária, princípio previsto desde a Constituição Federal de 1988, é relevante para a proteção das Universidades contra o Poder Público e em relação a suas concorrentes, como é o caso quando se desconfia que o Ministério da Educação exerceu escolhas e predileções nos critérios que adotou nos editais de chamamento público para o curso de medicina.

Em um dos casos em concreto, um edital de chamamento público declarou como vencedora uma faculdade sem campus anteriormente instalado no local em contraposição a uma Universidade com mais de cinquenta anos de funcionamento em uma cidade do Sudeste, além de possuir todos os cursos de saúde, com oferta de ensino stricto sensu (4 Mestrados e 2 Doutorados).

E isso nos leva ao papel regulador do Ministério da Educação. A IES que se sentiu prejudicada sequer poderia levar sua demanda ao MEC e muito menos prosseguir com o pedido de autorização de curso de medicina porque uma das garantias implícitas dos cursos de medicina advindos dos editais é a não concorrência. Dessa forma, a decisão do órgão se torna irredutível e não abre margem para qualquer tipo de discussão, o que pode prejudicar diversas instituições de ensino que não atendam aos critérios previstos.

Com isso, cria-se um cenário de abandono e desamparo, com especial destaque para as regiões mais remotas e necessitadas do interior do país, onde a necessidade de contar com mais cursos de medicina e, consequentemente, de mais médicos é ainda mais latente. É preciso haver transparência e fiscalização aos critérios utilizados pelo MEC para a abertura dos cursos de medicina e o julgamento no STF sobre o assunto é ponto essencial nessa questão. Ao sair vitoriosa a tese do ministro relator Gilmar Mendes, novos cursos serão autorizados a seguir com o processo de criação.

Vale lembrar, porém, que não necessariamente todos os cursos automaticamente entrarão em funcionamento por conta da decisão. Ainda assim, os critérios de qualidade e exigências técnicas para a criação dos cursos serão seguidos, mas de maneira muito muito mais ampla e democrática do que acontece hoje por intermédio dos editais da Lei do Mais Médicos. Dessa forma, novas possibilidades surgirão para a criação de novos cursos de medicina, expandindo o acesso ao sistema de saúde brasileiro em todo o país.