O direito é fruto de uma ambiguidade original. Se, de um lado, cumpre-lhe imperar sobre a espontaneidade das relações humanas, de outro, cabe-lhe conceder reverência a essas conexões. Dizer que o direito, como conjunto de normas e instituições, se sobrepõe à vontade dos sujeitos que obriga, sans phrase, é decerto olhar o copo meio cheio. Essa ambiguidade é especialmente notável no âmbito do Direito Internacional. A complexidade das relações entre povos exige da engenharia jurídica uma sensibilidade e timing estranhos à nossa métrica estadista.
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Um dos principais vetores do amadurecimento do Direito Internacional em sentido amplo como direito extraestatal certamente é a humanização de sua normatividade. Qual seja, o notório deslocamento de seu centro de gravidade dos Estados contratantes, no Direito Internacional clássico, para os indivíduos neles presentes.
Estamos naturalmente a falar da reorientação do Direito Internacional grociano, voltado a orientar a convivência pacífica entre os estados soberanos, codificada na Paz de Westfália (1648)[1], a um Direito Internacional de inspiração spinoziana, preocupado com a liberdade dos cidadãos nacionais.
Esse Direito Internacional dos direitos humanos, que ressignifica o ideal antigo do direito das gentes – o jus gentium –, pode ser observado em dois níveis – das regras e dos princípios.
No nível das regras, é oportuno relembrar o marco jurisprudencial alcançado pelo STF por ocasião do julgamento do RE 466.343-SP[2]. À época, se não existiam maiores controvérsias sobre a legitimidade constitucional da prisão civil do devedor de alimentos, assim não ocorria em relação à prisão do depositário infiel.
A exemplo do artigo 7º (número 7) da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica, de 1969[3], as legislações mais avançadas em matéria de direitos humanos passaram a proibir expressamente qualquer tipo de prisão civil decorrente do descumprimento de obrigações contratuais, excepcionando apenas o caso do alimentante inadimplente.
Com a adesão do Brasil a essa convenção assim como ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, sem qualquer reserva, em 1992, iniciou-se amplo debate sobre a possibilidade de revogação, por esses diplomas internacionais, da parte final do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição brasileira de 1988, especificamente, da expressão “depositário infiel”. Tal revogação incidiria não apenas na parte final do mencionado inciso, mas também, por consequência, em toda a legislação infraconstitucional que nela possui fundamento direto ou indireto.
Essa disposição constitucional retomou instigante discussão doutrinária e jurisprudencial, chegando ao Plenário do STF, em 1995, no HC 72.131/RJ[4], redator para o acórdão ministro Moreira Alves. O pedido veiculado no habeas corpus tinha como foco o problema específico da prisão civil do devedor como depositário infiel na alienação fiduciária em garantia.
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Na ocasião, reafirmou-se o entendimento de que os diplomas normativos de caráter internacional adentram o ordenamento jurídico interno no patamar da legislação ordinária e eventuais conflitos normativos resolvem-se pela regra lex posterior derrogat legi priori.
Posteriormente, no importante julgamento da medida cautelar na ADI 1.480-3/DF[5], de relatoria do ministro Celso de Mello, o Tribunal voltou a afirmar que, entre os tratados internacionais e as leis internas brasileiras, existe mera relação de paridade normativa, entendendo-se as “leis internas” no sentido de simples leis ordinárias e não leis complementares.
No entanto, no contexto atual, em que se pode observar a abertura cada vez maior do Estado constitucional a ordens jurídicas supranacionais de proteção de direitos humanos, essa jurisprudência acabou se tornando completamente defasada. Não se pode perder de vista que, hoje vivemos em um Estado Constitucional Cooperativo, que se disponibiliza como referência para os outros Estados Constitucionais membros de uma comunidade e no qual ganha relevo o papel dos direitos humanos e fundamentais.
Essa premissa exige dos atores da vida sociopolítica do Estado uma contribuição positiva para a máxima eficácia das normas das Constituições modernas que protegem a cooperação internacional amistosa como princípio vetor das relações entre os Estados Nacionais e a proteção dos direitos humanos como corolário da própria garantia da dignidade da pessoa humana.
Ressalte-se, nesse sentido, que há disposições da Constituição de 1988 que remetem o intérprete para realidades normativas relativamente diferenciadas em face da concepção tradicional do Direito Internacional público. Refiro-me, especificamente, a quatro disposições que sinalizam para uma maior abertura constitucional ao Direito Internacional e, na visão de alguns, ao direito supranacional.
A primeira cláusula consta do parágrafo único do artigo 4º, segundo o qual a “República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. A segunda cláusula é aquela constante do § 2º do artigo 5º, ao estabelecer que os direitos e garantias expressos na Constituição brasileira “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”.
A terceira e a quarta cláusulas foram acrescentadas pela Emenda Constitucional 45, constantes dos §§ 3º e 4º do artigo 5º, que dispõem, respectivamente, que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”, e “o Brasil se submete à jurisdição de Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão”.
Rememore-se, também, que vários países latino-americanos já avançaram no sentido de sua inserção em contextos supranacionais, reservando aos tratados internacionais de direitos humanos lugar especial no ordenamento jurídico, a fim de, algumas vezes, conceder-lhes valor normativo constitucional.
Isso revela tendência contemporânea do constitucionalismo mundial de prestigiar as normas internacionais destinadas à proteção do ser humano. Por conseguinte, a partir desse universo jurídico voltado aos direitos e às garantias fundamentais, as constituições não apenas apresentam maiores possibilidades de concretização de sua eficácia normativa, como também somente podem ser concebidas em uma abordagem que aproxime o Direito Internacional do Direito Constitucional.
Entretanto, na prática, a mudança da forma pela qual tais direitos são operacionalizados pelo Estado brasileiro ainda ocorria de maneira lenta e gradual. E um dos fatores primordiais desse fato está no modo como se vinha concebendo o processo de incorporação de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica interna.
Se, para os tratados internacionais em geral, se exigia a intermediação pelo Poder Legislativo, distintamente, no tocante aos tratados de direitos humanos em que o Brasil é parte, os direitos fundamentais neles garantidos passam, consoante os §§ 1º e 2º do artigo 5º da Constituição Brasileira de 1988, pela primeira vez entre nós, a integrar o elenco dos direitos constitucionalmente consagrados e direta e imediatamente exigíveis no plano de nosso ordenamento jurídico interno.
Por conseguinte, mostra-se inteiramente infundada, no tocante em particular aos tratados de direitos humanos, a noção clássica da paridade entre os tratados internacionais e a legislação infraconstitucional.
Importante deixar claro, também, que a tese da legalidade ordinária, na medida em que permitia ao Estado brasileiro, ao fim e ao cabo, o descumprimento unilateral de um acordo internacional, ia de encontro aos princípios internacionais fixados pela Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, de 1969, a qual, em seu artigo 27, determina que nenhum Estado pactuante “pode invocar as disposições de seu direito interno para justificar o inadimplemento de um tratado”.
Assim, é mais consistente a interpretação que atribui a característica de supralegalidade aos tratados e convenções de direitos humanos. Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade.
Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.
Assim, a premente necessidade de se dar efetividade à proteção dos direitos humanos nos planos interno e internacional tornou imperiosa uma mudança de posição quanto ao papel dos tratados internacionais sobre direitos na ordem jurídica nacional. Era necessário assumir postura jurisdicional mais adequada às realidades emergentes em âmbitos supranacionais, voltadas primordialmente à proteção do ser humano.
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Como enfatiza Cançado Trindade, “a tendência constitucional contemporânea de dispensar um tratamento especial aos tratados de direitos humanos é, pois, sintomática de uma escala de valores na qual o ser humano passa a ocupar posição central”[6].
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com eles conflitante.
Nesse sentido, é possível concluir que, dada a supremacia da Constituição sobre os atos normativos internacionais, a previsão constitucional da prisão civil do depositário infiel não foi revogada pela adesão do Brasil ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e ao Pacto de San José da Costa Rica, mas deixou de ter aplicabilidade ante o efeito paralisante desses tratados em relação à legislação infraconstitucional que disciplina a matéria.
Tendo em vista o caráter supralegal desses diplomas normativos internacionais, a legislação infraconstitucional posterior que com eles seja conflitante também tem sua eficácia paralisada. É o que ocorre, por exemplo, com o artigo 652 do Código Civil de 2002, que reproduz disposição idêntica ao artigo 1.287 do Código Civil de 1916.
Enfim, desde a adesão do Brasil, em 1992, ao Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, não há base legal para a aplicação da parte final do inciso LXVII do artigo 5º da Constituição, ou seja, para a prisão civil do depositário infiel.
Esse entendimento solidificou-se no julgamento do RE 466.343, de relatoria do ministro Cezar Peluso. Naquela ocasião, a Corte reconheceu a natureza supralegal e infraconstitucional dos tratados que versam sobre direitos humanos, no âmbito do ordenamento jurídico brasileiro.
Retomando o ideal antigo do direito das gentes, é no nível dos princípios que se percebe a mudança mais dramática. Faço referência à substancial alteração de mentalidade das autoridades acerca do conceito de soberania, que hoje entendem que o que assombra o brio do Estado Nacional não é o Direito Internacional, mas as condições fáticas que tornam esse ramo do direito cada dia mais imprescindível.
Em um mundo altamente globalizado, variáveis estruturais e funções econômicas básicas atravessam, sem qualquer reverência, fronteiras políticas, ainda acompanhadas dos perigos por elas implicadas, de mudança climática, catástrofes nucleares e crises financeiras. Nesse contexto, aptamente chamado de “sociedade global do risco” pelo sociólogo alemão Ulrich Beck[7], o Direito Internacional figura mais como aliado da soberania que propriamente seu nêmesis.
Perceba-se que, em que pese à sua juventude, também no Mercosul se registra, de maneira nítida, esse vetor humanizante. Constituído em 1991 pelo Tratado de Assunção[8], o Mercosul tinha por objeto o reforço à cooperação econômica entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai.
Muito embora os avanços tenham sido relativizados pelas constantes exceções à tarifa comum, o objetivo de desenvolvimento econômico com justiça social foi paulatinamente aprimorado. Sobretudo a partir dos anos 2000, o bloco incorpora progressivamente pautas sociais e de promoção de direitos humanos, reforçando a dimensão humanizante do Direito Internacional no contexto da integração regional.
A transformação do Direito Internacional em direção à primazia dos direitos humanos representa, portanto, fenômeno irreversível e profundamente transformador dos sistemas jurídicos nacionais. Esse movimento de humanização tem provocado importantes inflexões na jurisprudência constitucional, reconhecendo paulatinamente a insuficiência da dicotomia tradicional entre monismo e dualismo para explicar a complexa interação entre ordens jurídicas no mundo contemporâneo.
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Olhando para o futuro, o aprofundamento da integração regional dependerá fundamentalmente da consolidação desse paradigma humanista que transcende a dimensão meramente econômica. Caberá aos tribunais constitucionais dos países-membros papel decisivo nesse processo, para atuar como garantidores da efetividade dos compromissos internacionais assumidos em matéria de direitos humanos e como articuladores de verdadeiro diálogo interjurisdicional que permita a construção de standards comuns de proteção.
Este renovado jus gentium, centrado na dignidade da pessoa humana, configura-se não como um constrangimento à soberania estatal, mas como sua expressão mais elevada na era da globalização, permitindo que os Estados nacionais, mediante cooperação recíproca, recuperem parcelas de autodeterminação que isoladamente já não conseguem exercer diante dos desafios transfronteiriços contemporâneos.
A consolidação de uma comunidade latino-americana de nações, como vislumbrado pelo constituinte de 1988, passará necessariamente por esse compromisso compartilhado com a prevalência dos direitos humanos como norte ético e jurídico da integração regional.
[1] TRATADO de Paz de Münster e Osnabrück. Corpus Pacis Westphalicae. 1648. Disponível em: https://www.lwl.org/westfaelische-geschichte/portal/sys/Datei/dokumente/wichtigstedokumente/cpw_latein.pdf.
[2] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 466.343-SP. Relator: Min. Cezar Peluso, Tribunal Pleno, julgado em 22/11/2006, publicado em DJe-092 DIVULG 18/05/2007 PUBLIC 19/05/2007 DJ 19/05/2007 PP-00043 EMENT VOL-02276-07 PP-01309.
[3] ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), 1969. Disponível em: https://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/c.convencao_americana.htm.
[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 72.131/RJ. Relator: Min. Moreira Alves, Tribunal Pleno, julgado em 05/12/1995, publicado em DJ 22/03/1996 PP-08258 EMENT VOL-01821-03 PP-00466.
[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 1.480-3/DF. Relator: Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 04/09/2002, publicado em DJ 07/03/2003 PP-00061 EMENT VOL-02102-01 PP-00001.
[6] CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. Tratado de Direito Internacional dos Direitos Humanos. Vol. I. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2003.
[7] Weltrisikogesellschaft Auf der Suche nach der verlorenen Sicherheit. Suhrkamp, 2008.
[8] MERCOSUL. Tratado de Assunção, 1991. Disponível em: https://www.mercosur.int/documentos-e-normativa/tratado-de-assuncao/.