Direitos humanos e autonomia feminina

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Os danos irreversíveis causados por erros médicos durante uma cesariana sofridos pela médica Balbina Francisca Rodríguez Pacheco levaram a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) a condenar o Estado da Venezuela por violações de direitos fundamentais.

O caso Rodríguez Pacheco e outros vs. Venezuela

Submetida ao procedimento em agosto de 1998, durante uma gestação de risco, Balbina vivenciou complicações durante o parto, resultando em um desfecho traumático. Durante a cesárea, Balbina experimentou um estiramento anormal, indicativo de problemas graves. Consciente da situação, como médica, ela solicitou aos médicos que optassem por retirar seu útero para preservar sua vida.

No entanto, a intervenção médica inadequada, com forçada remoção da placenta, resultou no rompimento do útero e em uma hemorragia interna. A paciente foi submetida a múltiplas intervenções, enfrentando sequelas físicas, infecções hospitalares, insuficiência renal e complicações neuro-motoras decorrentes de um acidente vascular cerebral.

As consequências da cesariana malfeita foram impactantes para Balbina, que, além das sequelas físicas, enfrentou uma batalha judicial desoladora. Na jurisdição interna, o processo foi marcado por anulações e manobras processuais inexplicáveis que, após 13 anos, levaram à prescrição, sem nenhum culpado responsabilizado.

Diante do exposto, a Corte IDH condenou a Venezuela por violações aos direitos às garantias judiciais, à proteção judicial, à integridade pessoal e à saúde. Em um julgamento marcante, apontou afrontas aos arts. 1.1, 5, 8.1, 25.1 e 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos pautadas, sobretudo, pelo sofrimento das vítimas devido a atos de má prática médica e violência obstétrica, pela falta de uma investigação diligente e a ausência de sanções contra os responsáveis.

Além disso, a Corte IDH observou falhas significativas no processo penal, resultando no arquivamento da causa sem uma investigação adequada. Foi destacado, também, o retardo injustificado na decisão sobre os recursos e a não observância da garantia de prazo razoável.Além disso, a Venezuela foi considerada responsável pela violação do artigo 7 da Convenção de Belém do Pará, que diz respeito aos deveres dos Estados em adotar meios para prevenir, punir e erradicar todas as formas de violência contra a mulher.

A importância de um julgamento com perspectiva de gênero

Este é um caso sobre mulheres e a ausência de autonomia sobre os corpos femininos, sobretudo em momentos delicados como o da gestação e o do parto. Portanto, é fundamental lê-lo com lentes de gênero. A Corte IDH assim o fez ao trazer a aplicação da Convenção de Belém do Pará, conforme mencionado.

A Corte enfatizou que a violência obstétrica é uma forma de violência baseada no gênero, ocorrendo predominantemente no tratamento de mulheres durante a gravidez, parto e pós-parto. Esta perspectiva é crucial, pois reconhece que a violência obstétrica não é apenas uma questão de saúde ou erro médico, mas também uma questão de discriminação de gênero, onde as mulheres são desproporcionalmente afetadas e desrespeitadas em um momento crítico de suas vidas.

No caso de Rodríguez Pacheco, a decisão do cirurgião principal de preservar o aparato reprodutivo feminino, ignorando a autonomia da mulher, foi vista como uma violação do direito à saúde reprodutiva, refletindo estereótipos de gênero prejudiciais. Esta decisão não só desconsiderou a autonomia da paciente, mas também teve um impacto desproporcional na saúde, integridade pessoal, autonomia e vida da paciente​​.

Esta análise demonstra como a perspectiva de gênero e a aplicação do artigo 7º da Convenção de Belém do Pará são essenciais para entender a dinâmica e as consequências da violência obstétrica. Ela ressalta a necessidade de abordar as questões de gênero de forma integrada e consciente para garantir a proteção e o respeito dos direitos das mulheres em todos os aspectos da assistência à saúde.

Além disso, a sentença da Corte IDH destaca de forma significativa a questão da autonomia corporal em relação à violência obstétrica, enfatizando a violação dos artigos 5 e 26 da Convenção Americana. A violência obstétrica é reconhecida como uma forma de violência baseada no gênero, proibida pelos tratados interamericanos de direitos humanos, incluindo a Convenção de Belém do Pará.

A Corte salienta que tal violência se manifesta principalmente, embora não exclusivamente, em um tratamento desumanizado e desrespeitoso, violando o direito fundamental de toda mulher a uma vida livre de violência tanto no âmbito público quanto no privado​​. Ademais, a violência obstétrica é caracterizada como uma violação ao direito à autonomia. Esta violação se reflete na maneira como as mulheres são frequentemente despojadas do direito de tomar decisões informadas e respeitadas sobre seus corpos e processos reprodutivos, especialmente durante um período tão crítico quanto o parto.

O reconhecimento dessa forma de violência pela Corte IDH não apenas valida as experiências das mulheres afetadas, mas também impõe um dever aos Estados de proteger e garantir a autonomia e dignidade das mulheres no contexto da assistência à saúde reprodutiva​.

Em adição, a sentença reconhece, conforme o artigo 1.1 da Convenção Americana, que o Estado é responsável pela proteção dos direitos humanos de todas as pessoas sob sua jurisdição. Isso inclui garantir que as instituições de saúde, sejam públicas ou privadas, estejam regulamentadas de maneira adequada, estabelecendo padrões de qualidade e mecanismos de supervisão para prevenir violações da integridade pessoal.

A sentença destaca, ainda, que os Estados têm o dever de fiscalizar e regular efetivamente os serviços de saúde, enfatizando a responsabilidade estatal na prevenção da violência obstétrica e na proteção dos direitos das mulheres​​. A responsabilidade estatal vai além da prestação de serviços de saúde; ela também abrange a garantia do acesso à justiça para as vítimas de violência obstétrica.

O caso sublinha a falha do Estado em conduzir investigações eficazes e em processar e punir os responsáveis, ilustrando uma violação dos artigos 8 e 25 da Convenção Americana, que garantem o direito a um julgamento justo e a proteção judicial. A Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos ressaltaram a importância de investigações determinadas e eficazes em casos de violência contra mulheres, evidenciando a necessidade de remover obstáculos ao acesso à justiça e de fortalecer a confiança das vítimas nas instituições judiciais.

Isso implica não apenas em processar os perpetradores, mas também em responsabilizar os operadores de justiça cuja conduta resultou em atrasos excessivos e na negação de justiça para as vítimas​​​​.

Tentativas de reparação e garantias de não repetição

A Corte Interamericana, baseando-se no artigo 63.1 da Convenção Americana, enfatizou que toda violação de uma obrigação internacional que produza danos implica o dever de repará-los adequadamente. Isso inclui a restituição plena, quando possível, para restabelecer a situação anterior à violação​​.

Para o caso em questão, a Corte determinou várias medidas de reparação com o objetivo de ressarcir os danos de maneira integral. Estas medidas abrangem compensações pecuniárias, restituição, reabilitação, satisfação e garantias de não repetição, todas com relevância especial devido aos danos ocasionados​​. Em particular, a Corte estipulou a necessidade de uma medida de reparação que proporcionasse atenção adequada aos padecimentos psicológicos e físicos da vítima.

Como parte das garantias de não repetição, a Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomendaram ao Estado da Venezuela a implementação de várias ações específicas, como, por exemplo, o desenvolvimento de Programas e Políticas de Prevenção e Investigação. Foi recomendado que os órgãos de justiça, o Ministério Público e o órgão de classe médico desenvolvessem programas e políticas sobre a devida prevenção e investigação de possíveis casos de violência obstétrica, com atenção aos padrões interamericanos sobre a matéria, referentes à devida diligência e ao prazo razoável​​.

A par disso, a Corte destacou que o Estado deve adotar programas para garantir os direitos à saúde materna das mulheres, tanto em centros de saúde públicos quanto privados, assegurando um atendimento adequado e respeitoso​​.

A criação de um programa de capacitação e treinamento sobre saúde e direitos humanos, com uma perspectiva de gênero, é essencial para cessar as violações de direitos às mulheres, nos termos da sentença. Este programa deve ser implementado de forma periódica e contínua e estar direcionado aos funcionários do sistema de saúde e do sistema de justiça. Também foi solicitado que medidas legislativas e de outra natureza fossem implementadas para regulamentar o exercício da medicina na atenção ao paciente, além de fortalecer a responsabilidade civil e penal das pessoas que exerçam atos de violência obstétrica​​.

Essas garantias de não repetição são fundamentais para assegurar que violações semelhantes aos direitos humanos não ocorram no futuro, promovendo um ambiente de respeito e segurança para todas as mulheres não apenas na Venezuela, mas também em toda nossa região como res interpretata, particularmente em contextos médicos e de saúde reprodutiva.

A força transformadora de um precedente dessa natureza

Por tudo o quanto destacamos, é certo que não se trata de um precedente comum. Há muitas camadas jurídicas a serem exploradas e compreendidas pelos juízes nacionais quando estiverem diante de um caso semelhante. Infelizmente, sabemos que a situação suportada por Balbina não é incomum. Ao contrário, tem se revelado uma triste realidade dos Estados-membros e, via de consequência, ensejado a propositura de inúmeras demandas judiciais com a mesma finalidade: tentar frear essas formas de violência.

Isso só reforça a importância de se fomentar o debate em torno do que decidido pela Corte IDH. Embora estejamos diante de uma condenação imposta à Venezuela, essa sentença paradigmática deve servir – no mínimo – como alerta para o Brasil, no sentido de que igualmente procure adotar as medidas recomendadas na sentença. Desse modo, ainda poderíamos dar concretude às normas da Convenção tidas como violadas.

No Brasil, lamentavelmente, as estatísticas mostram que as mulheres negras são as que mais sofrem violência obstétrica[1]. Em recente pesquisa, dados coletados numa amostra de 6.689 mulheres, sendo 1.840 pretas e 4.849 brancas, concluíram que as mulheres negras recebem menos anestesia na hora do parto em comparação às mulheres brancas. Ainda, a negligência em relação às mulheres negras é superior, que possuem risco maior de ter um pré-natal inadequado, falta de vinculação à maternidade, ausência de acompanhante e menos orientação na hora do parto.[2]

Por isso, é urgente que os nossos juízes e as nossas juízas também interpretem e apliquem a ratio decidendi do caso Rodríguez Pacheco e outros vs. Venezuela com um recorte racial. É um desafio à parte, mas que pode ser enfrentado ainda por meio do diálogo entre precedentes, sejam eles das Cortes e dos Tribunais do nosso sistema regional interamericano ou da própria Corte IDH.

Não podemos mais subestimar o potencial transformador que surge a partir das decisões dessa natureza. A Corte IDH tem um papel de relevo frente ao enfrentamento concomitante de problemas estruturais comuns pelos Estados de nossa região. É um dever institucional, acadêmico e coletivo esforçar-se neste processo de engajamento para que possamos alcançar, no menor tempo possível, a efetiva proteção dos direitos humanos e fundamentais.

[1] Leal M do C, Gama SGN da, Pereira APE, Pacheco VE, Carmo CN do, Santos RV. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad Saúde Pública [Internet]. 2017;33:e00078816. Available from: https://doi.org/10.1590/0102-311X00078816

[2] Leal MC et al. A cor da dor: iniquidades raciais na atenção pré-natal e ao parto no Brasil. Cad. Saúde Pública 2017; 33.