O ministro Dias Toffoli, relator no da ação no Supremo Tribunal Federal (STF) que debate o futuro dos direitos autorais na era digital, afirmou que não está descartada a hipótese de retirada da repercussão geral da ação. Se ele seguir por esse caminho, o que for decidido não vale para as demais instâncias judiciais. Em audiência pública nesta segunda-feira (27/10), o ministro ouviu as considerações de acadêmicos e representantes de artistas, gravadoras e do streaming.
A audiência ocorreu no âmbito de um recurso (ARE 1542420) que foi levado ao STF pelos artistas Roberto Carlos e Erasmo Carlos (falecido em 2022 e representado por meio de seu espólio). O debate se dá em torno da validade de 73 contratos assinados com a editora Fermata do Brasil entre os anos de 1964 e 1987.
Os autores alegam que os contratos foram firmados em um cenário de “produção capitalista da sociedade industrial”, voltado à comercialização de LPs, fitas cassete e CDs, suportes físicos e analógicos não contemplavam os formatos digitais que utilizamos hoje, como as plataformas de streaming.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
Roberto e Erasmo Carlos pedem a rescisão contratual e a declaração de inexistência de direitos autorais da editora sobre a exploração digital de suas obras. Para eles, mesmo que se reconheça a validade da cessão original, a Fermata descumpriu obrigações contratuais e legais ao permitir o uso das músicas em serviços de streaming sem transparência, prestação de contas adequada ou autorização específica.
Transição para a era digital
No Supremo, o recurso foi afetado na sistemática de repercussão geral e o ministro chamou uma audiência pública para debater o assunto. De uma forma geral, os expositores trouxeram à discussão a segurança dos contratos, a dificuldade de contagem das execuções musicais nos streamings, a remuneração dos artistas, o futuro dos direitos autorais e a música como negócio. Outro ponto levado à audiência foi o uso das músicas como insumo para um segundo negócio, que é a extração de valor informacional dos ouvintes e direcionamento de publicidade, por exemplo.
“Eu tenho a impressão de que as plataformas de streaming, nessa relação contratual lá dos anos 60, parecem um terceiro elemento que é alheio àquilo que foi contratado lá atrás, porque para mim é uma nova estrutura de exploração econômica”, disse Karin Grau Kuntz: Doutora e Mestre em Direito pela Ludwig-Maximilians-Universität de Munique (Alemanha).
“O preço é baixo para o consumidor, mas ele é subvencionado pelo autor. O cerne do negócio das plataformas de streaming não é necessariamente o disponibilizar a música, mas é a atenção do consumidor que é o objetivo do negócio, a atenção do consumidor que é a mercadoria. Tem coleta de dados que tem valor econômico enorme. A obra do autor deixa de ser apenas expressão cultural. O autor passa a atuar como um insumo para um segundo negócio, que é a extração de valor informacional”, acrescentou.
Representando a Digital Media Association (DIMA), que tem entre seus membros as gigantes do setor no mundo, como Spotify e YouTube, Mauro Augusto Ponzoni Falsetti, reforçou que os serviços de streaming transformaram a experiência musical em algo único para os consumidores e que o licenciamento musical evoluiu também para o contexto musical.
Ele citou dados sobre a receita global do setor. A quantia subiu de US$ 14,9 bilhões em 2014 para US$ 29,6 bilhões em 2024, “com streaming sozinho representando quase 70% da receita global”. Falsetti defendeu que o streaming democratizou o acesso e ampliou as possibilidades dos artistas.
“Para os artistas, o streaming democratizou o acesso e ampliou as possibilidades. Em termos de remuneração, cada plataforma tem uma maneira diferente de funcionar, são empresas privadas, mas o número mágico que me passam da indústria é de que cerca de 70% da receita dessas plataformas é usada para pagamento de direitos, sejam direitos fonográficos seja para pagamento de direitos autorais”, afirmou.
O advogado Bérith Lourenço Santana, responsável pela defesa de Roberto e Erasmo Carlos no caso, afirmou que o mundo de hoje é de incerteza e de insegurança, já que o arcabouço jurídico que regulava as relações analógicas não cabem para o presente.
“Tentar impor aquela lógica anterior da posse numa sociedade onde hoje o que interessa é o acesso é tentar impor a lei de um império a um território que não existe mais. E o que o artista quer é só a transparência. É o que se discute no mundo. Qual a métrica? Como se audita isso? É isso que tem que ser regulado”, frisou, em relação às execuções do streaming.
Representando a Editora e Importadora Musical Fermata do Brasil, que é demandada por Roberto e Erasmo no processo, o advogado Fernando José Gonçalves Acunha afirmou que a empresa “tem todo interesse em melhorar a remuneração dos autores”, já que ela própria recebe um percentual desses valores.
Segundo ele, o caso trata de questões infraconstitucionais e não há ofensa direta ao texto constitucional. “A editora não pegou os direitos patrimoniais dos autores e os deixou com zero. Não temos aqui nenhum tipo de violação a direito de autor. O que a gente tem no caso é o único preceito constitucional que está em discussão: a proteção do ato jurídico perfeito, que foi garantido pelas instâncias ordinárias”, declarou.
Paulo Rosa, presidente da Pro-Música Brasil, que reúne Produtores Fonográficos, afirmou que a transição do analógico para o digital trouxe uma série de impactos na receita e nas remunerações dos titulares dos direitos e dos artistas.
Existe transparência das plataformas sobre execução das músicas, diz ele, mas ela exige um “acompanhamento sofisticado” para uma compreensão adequada. “Um demonstrativo de contas pode conter de 10 a 15 mil linhas que precisam ser analisadas”, completou.
Conforme Rosa, a definição do caso quando vier a ser julgado demandará uma “calibragem bastante cuidadosa” para não prejudicar a continuidade dos investimentos em novas músicas e novos artistas e garantir um “mínimo de previsibilidade para o mercado musical e segurança jurídica”.
A advogada Letícia Provedel, representante do cantor e compositor Gilberto Gil, criticou a postura das editoras e disse que, hoje, o mercado é totalmente diferente do que foi na década de 1960.
“Os contratos foram assinados em 1960, na era do rádio. O streaming é uma nova era”, frisou. Ela disse que a gestão do artista hoje é mais facilitada, o que dispensa a necessidade de intermediários, como as editoras.
No fim da sessão, Toffoli elogiou os 22 expositores, dizendo que foram eficazes e trouxeram contribuições importantes. “Foi importante essa audiência. A gente julga de tudo. É impossível saber da realidade do que acontece no dia a dia de cada área que a gente tem que analisar e julgar”, disse.