Direito das Famílias: entre a autonomia das partes e a intervenção estatal

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“Quem um dia irá dizer que existe razão nas coisas feitas pelo coração e quem irá dizer que não existe razão.”
(Renato Russo, “Eduardo e Mônica”)

O princípio da legalidade, expresso no art. 5º da Constituição Federal, estabelece como direito fundamental que a liberdade das pessoas somente poderá ser limitada pela lei, ou seja, o constituinte originário garantiu que o particular poderá fazer tudo aquilo que não for vedado pela lei.

Assim, a intervenção do Estado na liberdade das pessoas é estabelecida a partir de limitações – sempre proporcionais e adequadas – previstas pelo legislador, o que se aplica a todos os ramos do direito (seja no Direito Penal, Direito Civil, Direito Processual etc.). Tais limitações legais, por sua vez, não podem contrariar as normas constitucionais, no sentido de impor limitações desproporcionais ou desarrazoadas à liberdade das pessoas.

No que toca especificamente ao Direito das Famílias – tanto material quanto processual –[1], constata-se um prestígio crescente à autonomia da vontade[2][3] dos sujeitos interessados, chancelando a intervenção mínima do Estado nas relações familiares ou do chamado Direito das Famílias Mínimo, que preconiza que o Estado não deve se imiscuir no seio da família, mas sim resguardar o espaço de autodeterminação afetiva de cada pessoa humana que compõe o núcleo familiar, sob pena de “asfixiar a autonomia privada” e “restringir a liberdade das pessoas”.[4]

Pode-se exemplificar essa tendência com a previsão legal da possibilidade de escolha e mudança do regime de bens do casamento (artigo 734, CPC/2015) e da união estável (artigos 547 e 548 do Código Nacional de Normas do Foro Extrajudicial – CNNFE CNJ); da coexistência da paternidade/maternidade socioafetiva (artigos 505 a 515, CNNFE CNJ) com a filiação biológica e com a adoção; da possibilidade de escolha entre casamento e união estável (e, no caso desta, a possibilidade de optar entre diferentes modos de formalização, com níveis de segurança jurídica distintos, conforme artigo 94-A da Lei de Registros Públicos)[5]; alteração de nome (artigos 55, §4º, 56 e 57 da Lei de Registros Públicos); alteração de gênero (artigos 516 a 524 do CNNFE CNJ), dentre outras previsões que permitiram o exercício da vontade dos particulares para a produção de efeitos jurídicos, em diversas hipóteses independentemente da atuação judicial.

No Direito Processual, a ordem pública processual se faz presente, limitando a liberdade das partes, contanto que lastreada na “preocupação com valores fundamentais de uma determinada sociedade”[6], ou seja, não se trata da regra aplicável indistinta e absolutamente a qualquer hipótese. Muito ao revés. Esse ramo do Direito evolui precisamente no sentido de prestigiar a autonomia das partes, o que se infere a partir da cláusula geral de negociação processual prevista no art. 190 do CPC vigente, a flexibilização procedimental e a crescente desjudicialização da solução de litígios,[7] com o oferecimento de diversos mecanismos extrajudiciais que se colocam ao lado da solução adjudicada estatal, a demonstrar que a realidade está cada vez mais distante de um processo que se desenvolve a partir do Estado e com contornos estritamente publicistas.

No âmbito do Direito das Famílias, Maria Berenice Dias esclarece que houve substituição do “modo autoritário, institucional e hierarquizado pelo modelo pluralista, democrático e igualitário da família”, que “coincide com a crescente atribuição de poder político e reivindicativo a todas as pessoas que adquirem a pretensão de serem cidadãos com iguais direitos e deveres”. A autora assevera, com razão, que “o afeto ganhou status de princípio jurídico fundamental e norteador das relações familiares, conjugais e parentais”[8].

Farias, Rosenvald e Braga Netto afirmam, com propriedade, que não mais se sustenta a afirmação da absoluta supremacia do interesse público sobre o privado, merecendo destaque a seguinte passagem:

“Nota-se certo corte autoritário na afirmação absoluta do interesse estatal. Temos, hoje, diante do Estado, cidadãos titulares de direitos fundamentais (lembremos, com Alexy, que o Estado não é titular de direitos fundamentais. É, portanto, bastante questionável afirmar que há hierarquia entre interesses estatais e interesses dos cidadãos. Lembremos que, sob tais pretextos, houve lamentáveis equívocos históricos”.[9]

É a partir desta perspectiva que ora se analisa a decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), em 08 de novembro de 2023, no julgamento do Recurso Extraordinário 1167478, Tema 1053 da repercussão geral, em que restou estabelecida a seguinte tese:

Após a promulgação da Emenda Constitucional 66/2010, a separação judicial não é mais requisito para o divórcio, nem subsiste como figura autônoma no ordenamento jurídico. Sem prejuízo, preserva-se o estado civil das pessoas que já estão separadas por decisão judicial ou escritura pública, por se tratar de um ato jurídico perfeito.

Para se compreender a questão, é necessário um pequeno esclarecimento sobre as alterações implementadas pela Emenda Constitucional 66/2010 e sua repercussão no ordenamento jurídico.

O texto original da CF/88 estabelecia, em seu art. 226, §6º que “o casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio, após prévia separação judicial por mais de um ano nos casos expressos em lei, ou comprovada separação de fato por mais de dois anos”. Após a EC 66/2010, a redação passou a ser a seguinte: “O casamento civil pode ser dissolvido pelo divórcio”.

Ou seja, retirou-se do texto constitucional a exigência da prévia separação – de fato ou judicial – para a realização do divórcio. Apenas isso. Assim, não ficou o legislador ordinário obrigado a respeitar o requisito temporal da separação imposto pelo constituinte originário. Em nenhum momento a retirada de tal exigência constitucional tornou proibida a separação judicial ou a tornou incompatível com a CF/88. Apenas deixou de ser obrigatória a sua realização prévia.

A separação judicial, ao contrário do divórcio, rompe apenas com a sociedade conjugal, não dissolvendo o casamento. Assim, casais que não estão totalmente convictos de que querem romper com o vínculo matrimonial tinham a alternativa legal de escolher entre o divórcio e a separação (artigos 1571, §1º e 1577, CC/2002). Posteriormente, caso quisessem (autonomia privada), poderiam escolher entre restabelecer a sociedade conjugal ou formalizar o divórcio, somente então com a ruptura do vínculo matrimonial.

Nesta perspectiva, portanto, quando o STF estabelece que a separação, judicial ou extrajudicial, não mais existe, está indo na contramão da evolução de tais ramos do Direito, pois suprime a autonomia do casal, que deveria ter o direito de escolher entre institutos com efeitos jurídicos diversos. Na realidade, há diferenças essenciais entre os institutos da separação e do divórcio que podem conduzir as partes a escolher um ou outro conforme o momento de vida e as relações existentes entre si no seio familiar.

De um lado, a separação extingue a sociedade conjugal (artigo 1571, CC/2002), importa a separação de corpos e a partilha de bens (artigo 1575, CC/2002), põe termo aos deveres de coabitação e fidelidade recíproca e ao regime de bens (artigo 1576, CC/2002), mas não extingue o vínculo matrimonial, permitindo, pois, o restabelecimento da sociedade conjugal (artigo 1577, CC/2002), o que não é permitido em caso de divórcio.

Por conseguinte, se houve um desentendimento entre o casal e, em sua avaliação – visto que não é dado a terceiros, menos ainda ao Estado, se imiscuir na dinâmica familiar –, nada justifica que lhes seja suprimido o direito de obter a proteção jurídica da separação, com os efeitos antes mencionados, sem serem compelidos a se valer de instituto mais drástico e irreversível, o divórcio.

De se ressaltar que a separação, judicial ou extrajudicial (artigo 733, §2º, CPC/2015), depende de assistência jurídica obrigatória, razão pela qual o advogado de confiança das partes cuidará de lhes explicar previamente os efeitos jurídicos diversos decorrentes da separação ou do divórcio, a fim de garantir que a decisão tomada expresse genuinamente os seus interesses.

Cumpre advertir que tampouco seria adequado afirmar que o instituto da separação estaria em desuso no Brasil, visto que a 5ª edição do Relatório Cartório em Números, elaborada pela Associação de Notários e Registradores do Brasil, demonstra ter havido 55.484 separações formalizadas nas serventias extrajudiciais pátrias – sem contar, portanto, as separações realizadas em juízo – e ter havido 8.247 restabelecimentos de sociedades conjugais formalizados extrajudicialmente – novamente sem computar aqueles realizados perante o Poder Judiciário – entre 2007 e 2023.[10]

Portanto, o entendimento firmado no Tema 1053 suprime a liberdade de escolha dos sujeitos diretamente interessados (o casal) em uma seara eminentemente privada. Parece-nos uma visão estatizante e paternalista, que destoa da evolução de ambos os ramos do Direito nas últimas décadas e subverte, inclusive, o entendimento do próprio STF, ad exemplum tantum, ao julgar a ADPF 132/RJ,[11] que reconheceu a constitucionalidade do casamento entre pessoas do mesmo sexo.

Isso porque, nesse julgamento, o tribunal prestigiou precisamente a autonomia da vontade das pessoas naturais no Direito das Famílias e a sua consequente liberdade para formar uma entidade familiar segundo os seus interesses e baseando-se nas relações de afeto existentes entre si.

Correlatamente, parece-nos coerente garantir a mesma autonomia da vontade e a mesma liberdade às pessoas naturais para se autodeterminar quanto ao momento em que o vínculo matrimonial estaria definitivamente extinto, podendo, caso queiram, optar pela separação em um primeiro momento para, ao depois, divorciarem-se.

Acrescente-se que, com o incremento no número de separações extrajudiciais, nem seria dado afirmar que a extinção do instituto da separação teria como razão a política e a gestão judiciária, com o intuito de reduzir os custos de manutenção do Poder Judiciário e a sua sobrecarga.

Diante da evolução doutrinária e jurisprudencial em prol do incremento da autonomia da vontade em todos os ramos do Direito, e particularmente no Direito das Famílias, entende-se que o STF, ao fixar, no Tema 1053, que o instituto da separação, seja judicial, seja extrajudicial, não mais existiria em nosso ordenamento jurídico, suprime relevante opção que legitimamente era dada aos casais. Com isso, lamentavelmente, o STF limita a liberdade dos sujeitos diretamente envolvidos em uma relação eminentemente privada, que toca precipuamente a eles, não ao Estado, e sem qualquer previsão constitucional que justificasse, in casu, a limitação da liberdade dos particulares.

Se o Direito Processual e Material das Famílias ruma para tutelar o afeto, então, ninguém melhor do que o próprio casal para externar como e em qual medida essa tutela resguardará os seus sentimentos. Um entendimento jurisprudencial limitante não terá o condão de mudar os sentimentos do casal; apenas criará um crescente descontentamento na sociedade, que não mais disporá de um instituto do qual possa se valer para formalizar juridicamente a sua legítima vontade, vendo-se, assim, compelida a, ou divorciar-se (ainda que, a rigor, considerasse prematuro), ou separar-se apenas de fato, sem receber, portanto, a tutela jurídica de que até então dispunha, em nítido retrocesso.

Não é dado ao Direito definir se e quando “existe razão nas coisas feitas pelo coração”, mas sim acolher e tutelar a vontade dos particulares sempre que não contrariar a Constituição, como nos parece ser o caso da separação. Tanto no início quanto no fim do casamento, ninguém melhor do que o próprio casal para definir quando e de qual forma pretendem orientar as suas relações conjugais, cabendo ao Direito estar a postos para tutelar e conferir efeitos jurídicos à legítima vontade dos sujeitos diretamente envolvidos. Nem mais nem menos.

[1] “Registre-se ainda que o processo civil, não só no Brasil, como também em outros países, caminha para uma maior disponibilidade de suas regras e uma maior participação das partes no manejo dos atos e do procedimento, característica que deve ser considerada e absorvida como parte integrante de um sistema remodulado, não mais pautado na clássica dicotomia entre o público e o privado, e cujo objetivo é a realização de um processo cada vez mais condizente com a maturidade social e jurídica da atualidade, inclusive aceitando-se  a utilização de técnicas processuais formuladas ou sugeridas pelas partes, flexibilizando a tradicional rigidez do sistema”. CABRAL, Trícia Navarro Xavier. Ordem Pública Processual. Brasília: Gazeta Jurídica. 2015.p. 83.

[2] No âmbito do Direito Civil, Flávio Tartuce prefere a adoção do termo autonomia privada, por ele assim definida: “Sobre a definição do que seja a autonomia privada, essa pode ser conceituada como a liberdade de autorregulamentação negocial, ou seja, a liberdade que a pessoa tem de regular os seus próprios interesses“. TARTUCE, Flávio. Autonomia privada e Direito de Família: algumas reflexões atuais. Disponível em: https://ibdfam.org.br/artigos/1742/Autonomia+privada+e+Direito+de+Fam%C3%ADlia+-+Algumas+reflex%C3%B5es+atuais Consulta realizada em 25/01/2024.

[3] Pedro Henrique Nogueira considera que, no âmbito do Direito Processual, a terminologia mais adequada consiste em “autorregramento da vontade”, visto que transcende o espectro estritamente do Direito Privado, irradiando-se para todos os ramos do Direito. O autor considera que esse instituto consiste no “complexo de poderes, que podem ser exercidos pelos sujeitos de direito, em níveis de amplitude variada, de acordo com o ordenamento jurídico. Do exercício desse poder, concretizado nos atos negociais, resultam, após a incidência da norma jurídica, situações jurídicas (e não apenas relações jurídicas)”. NOGUEIRA, Pedro Henrique. Negócios jurídicos processuais. 3. Ed. Salvador: JusPodivm. 2018. pp. 156 e 158.

[4] FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. BRAGA NETTO, Felipe. Op. Cit. p. 1674.

[5] Para maiores esclarecimentos sobre a certificação eletrônica de União Estável e a eficácia erga omnes da definição extrajudicial da data de início e/ou fim da união estável, no caso de seu registro no livro E, vide HILDEBRAND, Cecília Frutuoso. HILL, Flávia Pereira. CORTEZ, Renata. A certificação eletrônica de União Estável perante o Registro Civil de Pessoas Naturais: o necessário equilíbrio entre desburocratização e segurança jurídica. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/coluna-cpc-nos-tribunais/a-certificacao-eletronica-da-uniao-estavel-perante-o-registro-civil-02072023 Consulta realizada em 23/01/2024.

[6] APRIGLIANO, Ricardo de Carvalho. Ordem Pública e Processo. O tratamento das questões de ordem pública no Direito Processual Civil. São Paulo: Atlas. 2011. P. 104.

[7] HILL, Flávia Pereira. Lições do Isolamento: reflexões sobre Direito Processual em tempos de pandemia. Niterói: edição do autor. 2020. Disponível em: https://www.academia.edu/44334920/LIVRO_LI%C3%87%C3%95ES_DO_ISOLAMENTO_FL%C3%81VIA_HILL Consulta realizada em 24/01/2024.

[8] DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto. 3. Ed. Salvador: JusPodivm. 2022. Pp. 28e 33.

[9] FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. BRAGA NETTO, Felipe. Manual de Direito Civil. 2. Ed. Salvador: JusPodivm. 2018. p. 130.

[10] ASSOCIAÇÃO DE NOTÁRIOS E REGISTRADORES DO BRASIL (ANOREG BR). Cartório em Números. 5. Ed. Brasília. 2023.

[11] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, ADPF 132/RJ. Relator Ministro Ayres Brito. Plenário. Decisão unânime. Julgado em 05/11/2011.