A Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, instituiu como requisito de admissibilidade dos recursos especiais a relevância das questões de direito federal infraconstitucional. Entre os temas em que há presunção de tal relevância estão (i) ações penais; (ii) ações de improbidade administrativa; (iii) ações cujo valor ultrapasse 500 (quinhentos) salários-mínimos; (iv) ações que possam gerar inelegibilidade; (v) hipóteses em que o acórdão recorrido contrariar jurisprudência dominante do STJ; e (vi) outras hipóteses previstas em lei.
O legislador deixou de apontar como hipótese de relevância presumida quaisquer referências ao Direito das Famílias. É sabido, no entanto, que os processos que envolvem a temática material do Direito das Famílias possuem caráter quase sempre urgente e emergencial, já que intimamente atrelados ao bem-estar social e à dignidade da pessoa humana, princípio constitucional (art. 1º da CF88) e fundamento do Estado Democrático de Direito.
Nesse contexto, urge a análise acerca da desnecessidade da exigência de comprovação de relevância da matéria tratada em sede de recursos especiais, especialmente em casos que tratam de Direito das Famílias, uma vez que traz consigo conceitos e definições próprios que devem ser observados pelo Poder Judiciário com foco social amplo porque alcançam a todos os jurisdicionados, sem qualquer exceção.
Entretanto, considerando o contexto de alta judicialização perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no dia 15 de julho de 2022, entrou em vigor a EC 125, chamada “PEC da Relevância”, que criou (novo) requisito de admissibilidade para o recurso especial, semelhante à repercussão geral, existente no recurso extraordinário.
A PEC da Relevância possui como objetivo principal reduzir consideravelmente a quantidade de recursos especiais que chegam ao Superior Tribunal de Justiça, tendo em vista que, por exemplo, “em 2018, o STJ julgou praticamente um processo por minuto. Foram mais de 500 mil decisões em um único ano”[1].
Ainda que se entenda ser recomendável a preservação do papel constitucional conferido ao STJ, não se pode perder de vista que o direito das famílias, no âmbito do STJ, deve ser tratado de maneira cautelosa e extremamente técnica. Isso por se tratar de matéria deveras sensível socialmente que, em diversas vezes esbarra no óbice sumular 7 do tribunal da cidadania, é certo que as transformações nos costumes e na forma como a sociedade enfrenta as relações familiares, nos seus mais variados aspectos e dogmas, devem ser acompanhadas pelos tribunais.
A entrada em vigor do Código Civil de 2002 ampliou consideravelmente o campo de proteção familiar, notadamente se comparado a diplomas legais anteriores. O ponto de grande relevo foi a ampliação de valores como a dignidade, a igualdade de tratamento perante a lei e o direito de filiação, gradualmente reconhecidos como os mais estimados à pessoa humana.
O legislador, ainda que dedicado a isso, não é capaz de antever todas as nuances das relações familiares e as mudanças dinâmicas incorridas décadas após décadas. Portanto, o papel do STJ, em unificar a tomada de decisão dos demais órgãos do Poder Judiciário, deve ser assegurado.
Dentre as matérias atinentes ao direito das famílias, exemplificam-se temáticas extremamente relevantes definidas pelo STJ:
A caracterização da união estável é uma das mais presentes através dos recursos especiais interpostos. Cite-se um dos entendimentos formados de maior relevância, qual seja, o “de que o relacionamento amoroso, paralelo a casamento válido, não pode ser reconhecido como união estável (é concubinato), salvo se configurada separação de fato ou judicial entre os cônjuges”[2].
Já no que diz respeito à presença dos elementos necessários para a concessão da pensão alimentícia, especialmente para majorar o “quantum” fixado, ou, até mesmo, para reconhecer a desnecessidade desta verba, o STJ, pacificamente, entende pela impossibilidade de revisão, a teor da Súmula n.º 7, por implicar o revolvimento do extenso conjunto probatório dos autos.
Outro tema de extrema relevância diz respeito ao reconhecimento de paternidade biológica, definido como Informativo nº 577 de Jurisprudência.
No que tange à repropositura de ação de investigação de paternidade, o Superior Tribunal de Justiça aduziu que, no mesmo sentido da jurisprudência do STF[3], quando na primeira causa, diante da precariedade da prova e ausência de exame de DNA, tiver julgamento de improcedência, será possível a relativização da coisa julgada, pois a efetiva existência de vínculo genético não foi consignada.
Com vistas nos casos exemplificativos acima delineados, conclui-se que a jurisprudência do STJ acompanhou as evoluções sociais da seara do direito das famílias, fazendo-se imprescindível para fixação de teses que, ao passar dos anos, inovam-se e destacam-se no cenário nacional.
Há de se reconhecer que o conflito familiar é o que se tem de mais relevante para a sociedade. Ao se falar em “relevância”, conforme a Emenda Constitucional 125, de 14 de julho de 2022, deve-se, portanto, incluir os processos que tratam de direito de família no rol do parágrafo 2º que traz as ações ou matérias que se entendeu por presumidamente relevantes.
É no mínimo paradoxal, para não dizer avesso à moralidade, constar da nossa Constituição Federal que são relevantes do ponto de vista técnico-processual “ações cujo valor da causa ultrapasse 500 (quinhentos) salários mínimos” e excluir de tal lista tácita a definição da vida de uma criança, que tem seu direito garantido também pela mesma Constituição (art. 227).
Em outras palavras, o que se busca é demonstrar que as demandas que envolvem Direito das Famílias exigem uniformização pelo E. STJ para que se tenha uma aplicação uníssona e previsível acerca das questões familiares em âmbito nacional.
O volume e a sobrecarga de processos em trâmite no Superior Tribunal de Justiça também não foram desconsiderados, por certo, para tal conclusão. Entretanto, não se deve considerar o assoberbamento de um tribunal como fator preponderante para se limitar direitos – e direitos esses que veem enraizados na alma do jurisdicionado. O Direito das Famílias deve ter preferência sob qualquer outro porque está intimamente ligado à dignidade humana.
Ora, conferindo-se acesso ao STJ para se firmar teses específicas para casos de Direito de Família, fecha-se um leque interpretativo das normas cíveis que é o que justamente assoberba o Poder Judiciário de modo geral.
Assim, (i) a especificidade dos casos concretos que envolvem conflitos de famílias; (ii) a dinâmica mudança nas estruturas familiares; (iii) a ausência de previsibilidade legislativa acerca das alterações de contextos familiares, bem como (iv) a necessidade de fixação de teses-conceitos a viabilizar aplicação vinculante aos processos de direito de família, são justificativas para se conferir acesso ao STJ e justificam, portanto, a defesa da inclusão ao rol do parágrafo 3º, do art. 105, da Constituição Federal, “todos os processos que envolvem matéria de direito das famílias”.
[1] SALOMÃO, Rodrigo da Cunha Mello. A relevância da questão de direito no recurso especial. Curitiba: Juruá, 2021. Pg. 170.
[2] STJ – AgRg no Resp nº 650.826 – RJ – 3ª Turma – Rel. Min. Vasco Della Giustina – DJ 27.08.2010
[3] RE n. 363.889/DF