Direita manipula significado de liberdade para promover injustiça

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O grito do autointitulado ultraliberal Javier Milei ao finalizar seus discursos — inclusive no último domingo (19), quando foi eleito presidente da Argentina por 55% dos votos — se tornou ao longo da disputa o seu principal lema de campanha. Em bom espanhol, ¡Viva la libertad carajo!. Lá como aqui, durante a campanha de Jair Bolsonaro em 2022, o conceito de “liberdade” esteve no epicentro da linguagem política eleitoral com inúmeras ambiguidades.

Uma análise detalhada leva à conclusão de que a campanha eleitoral de Milei teve muitos pontos de conexão e poucas diferenças em relação à campanha bolsonarista. Enquanto os bolsonaristas evocavam “Deus, Pátria, Família e Liberdade” — que somava o antigo lema integralista à última palavra —, os discursos de Milei exaltaram a “vida, a liberdade e a propriedade”. Os modos como seus apoiadores se dirigem uns aos outros nas redes sociais — inclusive em grupos de Telegram — refletem essas sínteses. Os eleitores de Bolsonaro majoritariamente tratam-se como “patriotas”, enquanto os apoiadores de Milei se dirigem uns aos outros como “libertários”.

Seja na extrema direita argentina ou brasileira, uma palavra parece unir a visão desses líderes a apoiadores de vários matizes e seus modos de entender o mundo e as suas relações: a liberdade. Dentro do bolsonarismo, os sentidos desse substantivo oscilam dentro de quatro elementos principais: 1) o neoliberalismo presente na ideia de liberdade de mercado e fim de supostos privilégios; 2) o universo cristão conservador, acionando valores da “família” contra pautas de direitos; 3) o universo militar, que reflete a ideia de antiglobalismo e a exaltação do nacionalismo; e 4) o discurso antissistêmico que contrapõe a liberdade à censura, e se reflete tanto nas críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) quanto nas posições anti-iluministas tão caras ao bolsonarismo.

Já a campanha eleitoral e os discursos de Milei centram-se no campo econômico, enfatizando a ideia de liberdade de mercado. Ainda que o tipo de linguagem empregada seja diferente, o conteúdo do discurso econômico da extrema direita no Brasil e na Argentina apresenta semelhanças. Seja o liberalismo econômico de ocasião abraçado por Bolsonaro — que como deputado federal chegou a se opor a privatizações no fim dos anos 1990 —, seja o anarcocapitalismo de Milei, ambos fundamentam-se na intensificação da lógica predatória do ganho fácil e de uma percepção de que o Estado é incapaz de agir no campo social, cabendo aos governos tão somente a promoção de ideia de “self made man”, fundamentada nos conceitos de empreendedorismo e meritocracia.

Nesse contexto, emerge a defesa do dogma da santidade dos contratos “livremente” estabelecidos, a oposição à igualdade como ameaça à liberdade, o Estado como arena de coerção que se contrapõe ao mercado — concebido como a principal, senão única, arena possível de exercício da liberdade.

Há também similaridades acerca das perspectivas de controle sobre as mulheres e demais minorias sociológicas. Por exemplo, a alusão “à vida” no lema da campanha de Milei está ligada ao imenso debate sobre a descriminalização do aborto na Argentina, a chamada Maré Verde. Tal posicionamento dialoga com uma base do eleitorado cristão, de forma menos explícita, ao não falar em “Deus” nem na “família” como no Brasil, mas que não deixa de ser eficiente. A mesma posição contra o aborto pode ser encontrada nos discursos bolsonaristas, enquadrada como afronta aos valores cristãos e, portanto, como interferência indevida do Estado na moralidade tradicional e, assim, trata-se não de um direito das mulheres, mas de ameaça à sociedade.

Tanto Bolsonaro quanto Milei operam em um campo semântico em que há uma falsa equivalência entre esquerda, socialismo e comunismo. O último termo, por sua vez, é colocado como sinônimo exclusivo de ditadura e autoritarismo, numa lógica segundo a qual a direita jamais poderia sucumbir ao arbítrio. O ponto central não é tanto atacar os aspectos econômicos e sociais do comunismo, mas sim sublinhar os aspectos totalitários que o afastariam de um ideal de liberdade. Estamos diante da construção do inimigo, o qual passa a ser entendido como um vilão, facilitando, assim, o engajamento daqueles que já têm críticas ao status quo. Afinal, tendemos a ter medo e raiva das situações ou eventos negativos que nos ameaçam, e admiramos e esperamos pelas soluções positivas que podem nos salvar.

Medo e esperança foram centrais no processo de ascensão de Bolsonaro e Milei. A mobilização política de medos ocupa um papel importante na linguagem das franjas de extrema direita. Há, em suma, uma desordem cognitiva e semântica ao atribuir aos adversários a pecha de autoritários, dos quais a sociedade seria salva apenas pelo messianismo libertário encarnado nas figuras daqueles líderes que transgrediriam a hipocrisia e, portanto, estão supostamente incumbidos de combater o comunismo e expor verdades ocultas que conspirariam contra o povo.

No caso argentino, principalmente depois do primeiro turno, a campanha eleitoral manteve a mobilização de medos, ao mesmo tempo que se centrou em buscar romper o receio dos eleitores em relação a um candidato outsider e com ideias fora do padrão, procurando vincular renovação com liberdade e esperança.

Uma das imagens que circulou pelos grupos de Telegram depois do primeiro turno dizia o seguinte: “recordem-se que um louco fabricou una arca, e especialistas, o Titanic” — numa clara referência à figura bíblica de Noé em contraponto ao saber científico que fundamenta a engenharia moderna. Nessa mensagem, observamos a ideia de salvação de um perigo fatal iminente, a noção de que é necessário confiar no plano mesmo que seu mensageiro pareça ser louco.

Assim, Bolsonaro e Milei são arautos de uma noção de liberdade deslocada e antagônica à ideia de justiça. Retomando o texto de Angela Davis, sobre “Os sentidos da liberdade”, talvez seja inevitável que nos próximos combates contra a extrema direita o conceito de “liberdade” seja problematizado, desmistificado ou ao menos disputado, buscando associá-lo à noção de uma sociedade justa e equânime — ou seja, um contraponto à defesa daquilo que, na prática, perpetua desigualdades, discriminando, encarcerando e matado pobres, não brancos e toda sorte de minorias.