O noticiário recente aborda uma suposta tensão entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional[1], desta vez decorrente da decisão da Corte que refutou a teoria do marco temporal indígena (Tema 1.031) e da decisão monocrática da ministra Rosa Weber na ADPF 442 (descriminalização do aborto).
O debate é o mesmo: temas de alta complexidade moral e social que sugerem posições estanques e conflituosas dos poderes instituídos, na intrincada tarefa de escolher entre a supremacia judicial ou parlamentar na interpretação constitucional, um embate que colocaria em xeque o próprio regime democrático.
Conrado Hübner[2], contudo, propõe uma interação deliberativa entre os poderes, de tal modo que a última palavra sobre o sentido da Constituição Federal seria apenas provisória, precária e relativa, estimulando novas rodadas de discussão acerca do alcance da norma constitucional, seja pela superação legislativa, seja pela reapreciação do tema pela Suprema Corte após a reação popular, ambos produtos do efeito backlash.
O efeito backlash, nessa linha, constitui meio natural do próprio regime democrático, fortalecendo-o, numa perspectiva de abertura das instituições no desafio de interpretar a Constituição Federal.
Na lição de Bernardo Gonçalves: “Essa interação seria proposta como um ideal atrativo na separação dos poderes, visando afastar uma separação dos poderes que fosse apenas “adversarial” (uma disputa institucional com ganhadores e perdedores traduzindo-se em um jogo de soma zero). Isso só seria possível tendo em vista um diálogo em sentido forte, ou seja, com os diálogos institucionais sendo levados a sério”[3].
Não se trata de retirar do Supremo Tribunal Federal a guarda da Constituição Federal, mas de entender que outros autores também devem participar da interpretação constitucional, ainda mais considerando a instável cultura democrática do país.
Em 2015, o próprio Supremo, na ADI 5105, endossou a precariedade da última palavra. Conforme o voto do ministro Luiz Fux, “é preferível adotar-se um modelo que não atribua a nenhuma instituição” – nem do Judiciário, nem do Legislativo – direito de errar por último, abrindo-se a permanente possibilidade de correções recíprocas no campo da hermenêutica constitucional, com base no diálogo, em lugar da visão tradicional, que concede a última palavra ao STF”.
Nesse ínterim, o Constitucionalismo Democrático, idealizado pelos professores de Direito da Universidade Yale, Robert Post e Reva Siegel, encontra terreno fértil, ampliando o alcance e a extensão dos diálogos para além das esferas institucionais, na medida em que afirma o papel representativo dos cidadãos na garantia constitucional.
É dizer: a luta pelo sentido constitucional também se realiza nas decisões legislativas, nos pronunciamentos da administração pública e nas reivindicações dos movimentos sociais, foros igualmente autorizados e relevantes para a definição constitucional.[4]
Essa postura estimula a educação em direitos e o engajamento de todos os intérpretes constitucionais, elevando o nível do debate e provocando decisões com fundamentação densa, plural e transparente nos mais diversos palcos democráticos.
O juiz Hércoles, de Ronald Dworkin, cede espaço ao juiz Péricles e ao juiz minimalista, que pertencem a uma mesma malha dialógica aberta à aceitação de outras visões de mundo, conforme preceitua o jurista norte-americano Cass R. Sunstein.
Nessa linha, em que pese a posição contramajoritária do Supremo Tribunal Federal, decisão sobre matérias ainda não consolidadas na consciência social, lastreada no ativismo judicial, exige a escuta atentados demais intérpretes da Constituição, rechaçando ou acolhendo os seus argumentos, sob pena de provocar um retrocesso jurídico capaz de criar uma situação normativa ainda pior do que havia antes da decisão judicial.
Ou, ainda, requer da Corte até mesmo o silêncio eloquente, aguardando o amadurecimento do tema no seio social e, assim, a atuação de outras instâncias.
O professor Flavio Martins, a título de exemplo, cita o caso julgado pela Suprema Corte norte-americana em 1973, ajuizado por Norma McCorvey (Jane Roe) contra Henry Wade. A Suprema Corte decidiu que a mulher amparada no direito à privacidade – sob a cláusula do devido processo legal da décima quarta emenda, podia decidir por si mesma a continuidade ou não da gravidez. A decisão obrigou a modificação de toda a legislação que restringia ao aborto.
Segundo o eminente constitucionalista, reações persistem muitos anos depois: segundo reportagem do jornal The Guardian, de 2013, “quarenta anos depois de Roe vs Wade, a decisão da Suprema Corte que tornou o aborto legal em toda a América, o Partido Republicano se lançou como nunca num discurso radicalmente pró-vida”.
Evidente que a captura política de decisões deste calibre, em última análise, provoca o efeito contrário daquele desejado pelo julgador.
Isso, todavia, não conduz a uma dependência da Suprema Corte, diante da necessária tutela dos direitos fundamentais das minorias, mas, na esteira do constitucionalismo democrático, impõe uma análise interna e externa das consequências da decisão, considerando também o estágio democrático do país.
Nas palavras de Robert Post e Reva Siegel, “se os Tribunais interpretam a Constituição de forma totalmente divergente dos cidadãos, estes encontrarão maneiras de comunicar suas objeções e resistir aos julgamentos judiciais”[5].
Como forma de baliza neste mister, as teorias internas e externas de Christine Bateup[6], oriundas dos diálogos institucionais, facilitam a aludida análise. Entre elas destaca-se a teoria do minimalismo judicial, a teoria do equilíbrio e a teoria da parceria, todas citadas por Bernardo Gonçalves.
Quanto à primeira, Cass R. Sunstein sugere que a Corte deve adotar a estratégia de dizer não mais que o necessário, deixando o máximo possível não decidido; essa autocontenção jurisdicional das Cortes parte da perspectiva de que as decisões devem ser estreitas e superficiais; a segunda, por sua vez, defendida por Barry Friedman, salienta a importância da opinião pública e destacam a capacidade das Cortes em facilitar e fomentar um largo debate acerca do significado da Constituição; a última, busca estimular um diálogo amplo na sociedade, propondo a necessidade de implantação de arranjos institucionais capazes de absorver as distintas contribuições de cada poder (sem qualquer hierarquia ou privilégio entre eles), que se resumiria em um efetivo diálogo constitucional[7].
Em suma, a Constituição seria o ponto de equilíbrio entre as várias perspectivas ideológicas em um mundo em constante evolução, e o Supremo Tribunal Federal um palco acolhedor desta interação deliberativa.
Nesse sentido, o constitucionalismo democrático, diferente do constitucionalismo popular, não retira do Poder Judiciário a sua importância central no judicial review, admitindo a necessária tecnicidade jurídica do intérprete, mas alerta que a sensibilidade do direito constitucional à opinião popular potencializa a sua legitimidade democrática, pois a autoridade para impor a Constituição depende, em última instância, da confiança dos cidadãos.
A sociedade aberta de intérpretes da Constituição, idealizada pelo jurista alemão Peter Haberle, reforça tal sensibilidade.
Noutro vértice, a população também deve assumir o protagonismo da interpretação constitucional.
Conforme preceitua Flavio Martins[8], deve o estudante de Direito estudar com seriedade o texto constitucional, com suas implicações (com essa base constitucional, terá capacidade de identificar atos inconstitucionais por parte do poder público e questioná-los social e judicialmente); deve o eleitor exigir do candidato a exposição de suas ideias políticas; devem os movimentos sociais questionar atos do Poder Público, inclusive fiscalizando as políticas públicas, acionando o judiciário; e devem os movimentos sociais se organizar para defender os direitos legítimos das minorias.
Vários instrumentos democráticos podem ser considerados na rede dialógica, entre outros: o plebiscito, o referendo, a audiência pública, a consulta pública, os instrumentos de participação digitais, backlash, o veto executivo, os canais de informação de grupos de interesse, os grupos acadêmicos eamicus curiae.
Em razão disso, os diálogos constitucionais constituem o espaço propício ao constitucionalismo democrático, pois possibilitam enxergar pontos até então obscuros e tendem a fomentar a defesa e o desenvolvimento dos direitos humanos, além de aprimorar o regime democrático, superando o sistema de contrapesos meramente adversarial.
HUBNER, Conrado Mendes. Direitos Fundamentais, Separação dos Poderes e Deliberação. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011
FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional – 9. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPODIVIM, 2017
MARTINS, Flavio. Curso de Direito Constitucional – 5. Ed – São Paulo: Saraiva Educação, 2021
POST, Robert; SIEGEL, Reva. Constitucionalismo Democrático: por una Reconciliación entre Constituición y Pueblo
BATEUP, Christine A. The Dialogic Promise. Assessing the Normative Potential of Theories of Constitutional Dialogue. 2005
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/constituicao-que-determina-harmonia-entre poderes-completa-35-anos-em-meio-a-embates-entre-legislativo-e-judiciario/
[1] https://www.cnnbrasil.com.br/politica/constituicao-que-determina-harmonia-entre-poderes-completa-35-anos-em-meio-a-embates-entre-legislativo-e-judiciario/. Acesso em 19/10/2023
[2] HUBNER, Conrado Mendes. Direitos Fundamentais, Separação dos Poderes e Deliberação. São Paulo: Ed. Saraiva, 2011.
[3] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional – 9. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPODIVIM, 2017.
[4] MARTINS, Flavio. Curso de Direito Constitucional – 5. Ed – São Paulo: Saraiva Educação, 2021.
[5] POST, Robert; SIEGEL, Reva. Constitucionalismo Democrático: por una Reconciliación entre Constituición y Pueblo.
[6] BATEUP, Christine A. The Dialogic Promise. Assessing the Normative Potential of Theories of Constitutional Dialogue. 2005.
[7] FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional – 9. ed. rev., ampl. e atual. – Salvador: JusPODIVIM, 2017
[8] MARTINS, Flavio. Curso de Direito Constitucional – 5. Ed – São Paulo: Saraiva Educação, 2021