A Emenda Constitucional 132/2023, que institui a reforma tributária do consumo, introduziu na Constituição relevante instrumento para atenuar os efeitos regressivos[1] dessa base tributária: a denominada “devolução personalizada”, também conhecida como cashback, consistente na devolução do IBS (art. 156-A, § 5º, VIII, e § 13) e da CBS (art. 195, § 18) com o objetivo de reduzir desigualdades de renda.
Quanto às operações de fornecimento de energia elétrica e GLP a consumidores de baixa renda, previu-se a obrigatoriedade da devolução do IBS (art. 156-A, § 13), restando à lei complementar o detalhamento das hipóteses de devolução, inclusive seus limites e beneficiários.
O cashback não é um instrumento inédito em nosso país. Depois da Nota Fiscal paulista, do estado de São Paulo, que devolvia parte do tributo pago aos consumidores finais, independentemente da renda, desde 2021 o estado do Rio Grande do Sul possui o programa Devolve ICMS (Lei Estadual nº 15.576/2020) com o objetivo de atenuar a natureza regressiva do imposto.
O programa Devolve ICMS é destinado às famílias registradas no CadÚnico beneficiárias do Bolsa Família ou que tenham familiar matriculado no ensino médio da rede pública estadual. Essas famílias recebem uma parcela fixa estimada e, ainda, uma parcela variável, de acordo com a renda e o consumo real ocorrido[2].
No recente PLP 68/2024[3] apresentado pelo Ministério da Fazenda, propõe-se um piso mínimo de devolução de: (i) 100% para a CBS e 20% para o IBS, no caso do gás de cozinha; (ii) 50% para a CBS e 20% para o IBS, no caso de energia elétrica, água e esgoto; e (iii) 20% para a CBS e para o IBS, nos demais casos.
Observa-se que o Projeto, além de respeitar as hipóteses mandatórias do texto constitucional, institui percentual mínimo e preserva a autonomia federativa ao prever que os entes poderão, por lei específica, fixar percentuais superiores de devolução da sua parcela da CBS ou do IBS, bem como estabelecer novas hipóteses de devolução não previstas na Constituição e na lei complementar.
Embora a reforma tributária pretenda uniformizar as regras de IBS e CBS, nos parece indiscutível a possibilidade de fixação de hipóteses diversas de cashback para o IBS e a CBS, como faz a própria EC 132/2023, que restringe a obrigatoriedade da devolução ao fornecimento de energia elétrica e GLP apenas ao IBS, não estendendo o caráter mandatório à CBS.
Isso porque as regras que se pretende uniformizar são aquelas relativas à arrecadação dos dois tributos, mantendo-se a autonomia dos entes tanto para instituição da alíquota do IBS vigente em seu território (art. 156-A, § 1º, V) quanto para utilização dos recursos arrecadados.
Apesar da centralização arrecadatória trazida pela reforma com a criação do Comitê Gestor (art. 156-B), responsável por arrecadar o imposto, efetuar as compensações e distribuir o produto da arrecadação entre estados, Distrito Federal e Municípios, a autonomia para gerir suas respectivas receitas é inalterada, sendo de competência de cada ente decidir o que fazer com os recursos repassados, inclusive quanto às hipóteses de devolução do tributo arrecadado.
Vale lembrar que, inicialmente, o Ministério da Fazenda mencionava os setores de saneamento e alimentos[4]. Apesar da relevância da devolução do IBS no saneamento, a parcela mais vulnerável da população sequer possui acesso a serviços de água tratada e coleta de esgoto.
Quanto ao consumo de alimentos, a extensão do cashback depende da abrangência dos produtos componentes da cesta básica nacional, aos quais a EC nº 132/23 assegurou desoneração total do imposto (art. 8º, parágrafo único).
Em uma federação de grandes proporções como o Brasil, torna-se ainda mais importante que estados, Distrito Federal e municípios exerçam suas autonomias para ampliar as hipóteses de cashback, dadas as peculiaridades regionais e de consumo da população, aumentando o potencial de aproveitamento desse importante instrumento de realização da justiça fiscal.
Apesar de autorizada alguma desoneração para os serviços de restaurantes no âmbito da reforma (art. 156-A, § 6º, IV), referidos entes poderiam criar regime de cashback que favorecesse a população de baixa renda que utiliza restaurantes populares[5].
O mesmo vale para o transporte intermunicipal de passageiros, cuja extensão da desoneração do IBS ainda é desconhecida (art. 156-A, § 6º, VI, e art. 9º, § 1º, VII, da EC nº 32/23).
Um cashback mais amplo pode também ser um instrumento de redução da informalidade e sonegação fiscal, bem como de estímulo à economia, aumentando, por consequência, a arrecadação. Foi o que se observou no estado do Rio Grande do Sul, em que o Devolve ICMS auxiliou o combate à sonegação e gerou maior consumo para a população favorecida[6].
A gestão do cashback estadual e municipal pode seguir dois modelos distintos: ser centralizada no Comitê Gestor, que implementaria as hipóteses de devolução previstas na legislação dos entes, como faculta o art. 112 do PLP 68/2024, ou ser da competência de cada ente que as instituiu. Esta última alinha-se melhor com a autonomia financeira dos entes, pois permite que recebam o repasse do IBS, sem retenção pelo Comitê Gestor, e, após, devolvam os valores aos beneficiários.
Na experiência internacional, o Canadá, que inspirou aspectos da nossa reforma tributária, convive com essas duas situações. Lá, o governo federal concede crédito a pessoas de baixa renda, pelo sistema de imposto de renda, para atenuar a regressividade do IVA (GST/HST)[7].
Também as províncias possuem autonomia para conceder créditos semelhantes, sejam aquelas participantes do Harmonized Sales Tax, como Ontario, sejam aquelas que adotam o Provicial Sales Tax, como British Columbia. Na primeira hipótese, em regra, esses créditos são administrados de forma integrada para as províncias e o governo federal, por meio da Canada Revenue Agency, ao passo que, na segunda, podem ser administrados pelas próprias províncias[8].
Três ressalvas ao cashback estadual e municipal são necessárias, porém: 1) a autonomia dos entes na decisão e gestão do cashback não pode implicar custos de conformidade adicionais ao contribuinte; 2) o cashback deve evitar a produção de distúrbios concorrenciais, como pela criação de incentivos artificiais para atração de empreendimentos; e 3) o repasse deve ser feito com recursos do ente que voluntariamente o instituiu.
Por exemplo, se são beneficiadas famílias de baixa renda residentes no estado de São Paulo, cabe a este ente a devolução do IBS, com seus próprios recursos. A lógica difere das hipóteses de cashback obrigatório (energia elétrica e GLP), em que os recursos devem ser compartilhados proporcionalmente entre os entes que receberam o repasse do IBS, independentemente do Estado de localização dos consumidores, sob pena de transformação do programa em política assistencialista.
[1] Na tributação sobre o consumo, nem sempre é possível realizar o ideal de tributação conforme a capacidade contributiva do cidadão. A depender das curvas de oferta e demanda, os tributos sobre consumo podem ou não ser repassados integralmente para o consumidor final. Quando isso ocorre, as famílias menos favorecidas tendem a arcar com um ônus maior de tributação sobre o consumo do que as famílias mais ricas, proporcionalmente à sua renda: a isso se denomina de regressividade da tributação sobre o consumo.
[2] Para um panorama geral do programa, ver: https://www.devolveicms.rs.gov.br/devolve-icms-registra-o-maior-repasse-de-valor-extra-aos-beneficiarios-em-janeiro.
[3] De acordo com o Projeto, o beneficiário será o responsável por unidade familiar de família de baixa renda cadastrada no Cadastro Único (“CadÚnico”) para Programas Sociais do Governo Federal, desde que possua renda familiar mensal per capita declarada de até meio salário-mínimo nacional, seja residente em território nacional e possua inscrição ativa no CPF.
[4] Sobre o ponto, ver: https://www.estadao.com.br/economia/reforma-tributaria-cashback-saneamento-alimentos-appy/.
[5] Atualmente, os restaurantes populares contam com isenção de ICMS autorizada pelo Convênio ICMS nº 89/2007 e prorrogada pelo Convênio ICMS 226/2023, para os Estados ali listados.
[6] Tonetto, Jorge Luis, Fochezatto, Adelar e da Silva, Giovanni Padilha, Refunds of Consumption Tax to Low-Income People: Impact Assessment Using Difference-in-Difference. Economies 11:153, 2023, p. 3.
[7] Sobre o GST/HST, ver https://www.tbs-sct.canada.ca/pol/doc-eng.aspx?id=32652.
[8] https://www.canada.ca/en/revenue-agency/services/forms-publications/publications/rc4210/gst-hst-credit.html#toc0