Devolução parcial de MP e mudanças no controle da ética parlamentar na Câmara

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Das notícias envolvendo o direito parlamentar nos últimos dias, duas chamaram a atenção: a primeira, a devolução parcial, no último dia 11, da MP 1227/2024, que previa condições para a fruição de benefícios fiscais e limites à compensação de créditos tributários da contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins; e a segunda, a aprovação, no último dia 12, da Resolução 11/2024, da Câmara dos Deputados, que alterou seu Regimento Interno (RICD) para disciplinar a suspensão cautelar do exercício do mandato parlamentar, por até seis meses, de deputado submetido à representação por quebra de decoro parlamentar de autoria da Mesa.

A coluna de hoje se dedica a comentar essas duas novidades e a explicar como essas medidas estão relacionadas.

A devolução de MPs já foi tratada outras vezes nesta Defensor Legis, como aqui e aqui. Desta vez, chamou a atenção de alguns que a devolução tenha sido parcial. Na verdade, isso não é inédito. Em 2019, o então presidente do Congresso Nacional, o senador Davi Alcolumbre (União-AP), devolveu um trecho da MP 886/2019, que dispunha sobre a organização a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos ministérios.

Tal MP pretendia atribuir a demarcação de terras indígenas ao Ministério da Agricultura, retirando essa competência do Ministério da Justiça e Segurança Pública. Ocorre que o assunto já tinha sido objeto de decisão na mesma sessão legislativa, por ocasião da conversão da MP 870/2019 em lei, quando as duas Casas se manifestaram pela manutenção da competência no MJSP.

Assim, a reinserção da temática na MP 886 caracterizou reedição de medida provisória, o que é vedado pelo art. 62, § 10, da CF. No Ato Declaratório do Presidente da Mesa do Congresso Nacional 42, de 2019, o trecho viciado foi considerado não escrito e foi declarada a perda de eficácia dessa parte. O mesmo fundamento constitucional (art. 62, § 10) serviu para a o STF suspender as expressões nas ADIs 6062, 6172, 6173, 6174 e 6175.

A recordação desse episódio anterior reforça a importância e a juricidade da devolução de medidas provisórias como providência legislativa adequada e necessária para impedir efeitos concretos de disposições manifestamente inconstitucionais editadas pelo presidente da República com força de lei.

Já a devolução mais recente da MP 1227 endossa o caráter democrático da medida por parte do presidente do Congresso Nacional, que – longe de atuar de forma autocrática, como sugeriria alguma literatura crítica a essa competência monocrática do presidente do Congresso – simplesmente atendeu à pressão dos próprios parlamentares para a devolução.

Como já enfatizado outras vezes nesta Defensor Legis, os presidentes das Casas Legislativas, na realidade, espelham a vontade dos próprios pares e dificilmente agem sozinhos, sem o suporte ou de forma contrária às maiorias. É por isso que qualquer análise sobre o desenho institucional de competências precisa ser conjugado com a aplicação prática dessas normas. Sob essa perspectiva, como se vê, a crítica da literatura não procede, pois não encontra endosso empírico.

A cada nova vez que ocorre, a devolução se consolida como procedimento de rejeição sumária de medidas provisórias, com a consequente finalização da sua tramitação no Congresso Nacional e o encerramento de sua vigência e eficácia de modo ex tunc. Sem esses efeitos jurídicos, a devolução perderia sua razão de ser, já que é instrumento destinado precisamente a impedir que a incidência de uma medida provisória manifestamente inconstitucional provoque, na prática, danos irreversíveis ou de difícil reparação.

No caso da MP 1227, a devolução se baseou no fato de que, ao limitar a compensação de créditos tributários de forma imediata, a partir de sua publicação (art. 7º), a MP implicou majoração da carga tributária sem a observância do art. 195, § 6º, da CF, pelo qual as contribuições destinadas ao financiamento da seguridade social só poderão ser exigidas após decorridos noventa dias da data da publicação da lei que as houver instituído ou modificado. Trata-se da anterioridade nonagesimal.

Tal exigência constitucional, como sabido, não se cumula ao disposto no art. 150, inciso III, alínea b, da CF, ou seja, não é necessário que a lei que institua ou aumente as contribuições para a seguridade social seja publicada no exercício financeiro anterior. Entretanto, mesmo em se tratando de contribuições para a seguridade social instituídas ou majoradas via medidas provisórias, é preciso aguardar os 90 dias contados da sua publicação. Assim, a rigor, a MP 1227 somente poderia produzir efeitos a partir do 91º dia.

O Ato Declaratório ainda mencionou que o entendimento encontra assento na jurisprudência do próprio STF, na ADI 7181. Nessa ação, considerou-se que a vedação do direito de compensar créditos tributários implica aumento indireto da carga tributária, submetendo-se à não-surpresa nos termos da anterioridade nonagesimal. A menção à decisão do STF em caso semelhante novamente revela que inexiste atuação abusiva na devolução da MP 1227. Eventual controle judicial da MP implicaria o mesmo desfecho.

Dito isso, passa-se ao comentário sobre as mudanças no controle do decoro parlamentar na Câmara. De acordo com a justificação do Projeto de Resolução da Câmara 32/2004, seu objetivo é “prevenir a ocorrência de confrontos desproporcionalmente acirrados entre parlamentares, que, em algumas ocasiões, têm culminado inclusive em embates físicos”. Ainda conforme o documento: “Esses incidentes não só desvirtuam o ambiente parlamentar, mas também comprometem o funcionamento democrático e a imagem institucional do parlamento”.

As palavras aludem claramente aos episódios da reunião do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara do último dia 6. Para quem não viu, a sessão foi repleta de altercações, primeiro entre os deputados Zé Trovão (PL-SC) e André Janones (Avante-MG), depois entre este último e o deputado Nikolas Ferreira (PL-MG), que quase foram às vias de fato. Foi preciso a intevenção da Polícia Legislativa para contê-los.

Já se explicou a questão do decoro parlamentar em coluna passada. Na ocasião, enfatizou-se que a esse instituto subjaz a preocupação com a manutenção da imagem de alto altor e prestígio das Casas Legislativas perante a sociedade. Os mecanismos de controle disciplinar dos parlamentares têm sobretudo um caráter protetivo da honra institucional dos parlamentos. A ideia é punir os parlamentares cuja conduta individual não esteja à altura ou coloque em risco a legitimidade do Legislativo.

Como também já indicado em outro texto passado, a institucionalização do controle da ética é repleta de críticas e encontra diversos limites na prática. No plano federal menos, mas em diversas Casas Legislativas estaduais e municipais existem acusações de que a cassação por quebra de decoro parlamentar com base no art. 55, inciso II, da CF estaria sendo instrumentalizada pelos parlamentares da base do governo para perseguir e calar a oposição. Ao menos no âmbito do Senado, pesquisa empírica descarta essa hipótese.

Já na Câmara dos Deputados, especificamente, a leitura dos dados sobre as representações junto ao Conselho de Ética ao longo dos anos sugeriria precisamente o contrário: a oposição parlamentar costuma fazer uso dos mecanismos de controle disciplinar pelos pares para – por meio do controle dos parlamentares da base de apoio – controlar o governo via Poder Legislativo. É dizer, o controle do decoro parlamentar acaba servindo como estratégia de obstrução e entra como moeda de troca no tomá lá dá cá.

Daí que, por vezes, amplos acordos são realizados e, de lado a lado, penalidades deixam de ser aplicadas. Embora pareça criticável, isso faz parte da natureza política desse tipo de responsabilização, como já comentado aqui.

Voltando aos termos da Resolução 11/2024, recém-aprovada pela Câmara, a principal novidade está na previsão de que a Mesa pode propor a suspensão cautelar do exercício do mandato parlamentar, por até seis meses, desde que o faça no prazo decadencial de cinco dias úteis, contado do conhecimento do fato que ensejou a representação por quebra de decoro em face do deputado.

A suspensão cautelar do exercício do mandato, de acordo com o inciso XXX inserido no art. 15 do RICD, depende da iniciativa da Mesa e somente pode recair sobre deputado contra quem a própria Mesa tenha protocolizado representação por quebra de decoro parlamentar. Tal proposta de suspensão cautelar será imediatamente comunicada ao Conselho de Ética, que a decidirá em votação ostensiva, no prazo de 3 dias úteis, com prioridade sobre todas as demais deliberações.

Da decisão do Conselho de Ética sobre a suspensão cautelar caberá recurso ao plenário, que o apreciará na sessão imediatamente subsequente em votação ostensiva, exigido o voto da maioria absoluta para que seja aprovada ou mantida a suspensão do exercício do mandato. Tal recurso pode ser apresentado somente pelo deputado representado (se for suspenso do mandato) ou pela Mesa (se o Conselho de Ética decidir contra a suspensão).

Se não houver decisão do Conselho de Ética no prazo de três dias úteis, a proposta de suspensão cautelar do mandato será enviada pela Mesa diretamente ao plenário, que a deliberará na sessão imediatamente subsequente, com prioridade sobre todas as demais deliberações, exigido o voto da maioria absoluta para que seja aprovada a suspensão do exercício do mandato.

Como se vê, a decisão sobre a suspensão é, em última instância, sempre do plenário e por maioria absoluta. Inclusive, esse foi o principal ponto durante os debates do PRC 32/2004, já que a proposta original pretendia autorizar a suspensão por decisão da própria Mesa ad referendum do Conselho de Ética. Eliminada essa possibilidade por emenda parlamentar, a proposta foi aprovada com 400 votos a favor, 29 contra e 1 abstenção, uma ampla maioria.

De fato, a Resolução 25/2001, da Câmara dos Deputados, que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar, não contava com uma previsão tão clara de suspensão do exercício do mandato em caráter cautelar, mas tão somente enquanto penalidade aplicável após o processo (art. 10). O art. 7º, § 7º, previa tão somente a possibilidade de afastamento da função de membro do Conselho de Ética no caso de instauração de processo no âmbito do próprio conselho, quando presente prova inequívoca da acusação. Nesse caso, o afastamento é aplicado de ofício por decisão do presidente do Conselho de Ética.

A Resolução 11/2024 não trouxe de forma expressa os critérios para a suspensão cautelar do exercício do mandato, mas – fazendo o paralelo com o art. 15-A, § 2º, da Resolução 20/1993 do Senado, que institui o Código de Ética e Decoro Parlamentar – é possível exigir a presença de: a) indício da alegação de prática de ato incompatível com o decoro parlamentar; e b) fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação à imagem da Casa Legislativa.

Já é possível antever que a regulação da suspensão cautelar do exercício do mandato parlamentar poderá funcionar como uma antecipação da pena, com potencial até para esvaziá-la em alguns casos, e enorme poder dissuasório de condutas graves de quebra de decoro. Mas, da simples análise normativa, não dá para antever se a novidade será utilizada seletivamente para perseguição de parlamentares aliados ou adversários políticos do governo. Será preciso ver os próximos acontecimentos.

Dito isso, chega-se à pergunta central: de que maneira se relacionam os episódios da devolução de medidas provisórias e da nova possibilidade de suspensão cautelar do exercício do mandato? Em ambos, fica evidenciado que os presidentes das Casas Legislativas não podem tudo, nem agem sozinhos. No caso da devolução, o presidente do Congresso atendeu a pedidos dos próprios parlamentares. No caso da suspensão cautelar do mandato, a Resolução aprovada diferiu bastante da versão inicial, e a proposta de suspensão cautelar não vem do presidente, mas da Mesa, órgão colegiado, por maioria absoluta.

As duas ocorrências mostram as sutilezas do direito parlamentar, cuja lógica é, mais do que em outros ramos, permeada pelas práticas, por instituições informais e por costumes que vão se impondo e ditam limites de lado a lado, inclusive ao demais poderes Executivo e Judiciário.