O Tribunal do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), recentemente, homologou aditivo apresentado pela Petrobras para renegociação de seu Termo de Compromisso de Cessação (TCC) celebrado com o Cade em julho de 2019, envolvendo o mercado brasileiro de gás natural. O TCC relativo ao segmento de refino foi também aditado, mas não será objeto deste texto.
Em síntese, o Cade aceitou que a Petrobras deixe de cumprir o compromisso de alienação da sua participação majoritária na Transportadora Brasileira Gasoduto Bolívia-Brasil S.A. (TBG), em contrapartida a compromissos comportamentais que a Petrobras passa a assumir com o aditivo.
A renegociação – procedimento bastante raro no Cade, ainda mais sem aplicação de multa relacionada ou reabertura de investigação, como foi o caso – foi motivada, principalmente, pela alteração do Plano Estratégico 2024-2028, que inclui, entre seus objetivos, que a Petrobras atue de forma competitiva e integrada no comércio de gás e energia, aprimorando seu portfólio.
De forma contraditória, em 2019, fomentar a competitividade foi um dos fundamentos para que o TCC fosse celebrado com o Cade e suspendesse investigações relacionadas envolvendo a Petrobras por alegadas condutas anticompetitivas, conforme processos administrativos iniciados antes da assinatura do TCC.
Quando a Superintendência-Geral do Cade recomendou a homologação do TCC ao Tribunal do Conselho, em 2019, fez considerações importantes sobre a participação da Petrobras no mercado de gás natural, demonstrando ser a empresa detentora de posição dominante, o que não parece ter mudado de forma muito significativa desde então.
Por exemplo, a participação da Petrobras no mercado de produção de gás natural no Brasil, em 2022, foi estimada por concessionário em cerca de 70% e em cerca de 90% por operador (Ato de Concentração nº 08700.009333/2023-13). A SG/Cade detalhou, ainda, como se dava a verticalização dentro da Petrobras dos diversos elos da cadeia do mercado de gás natural e concluiu que a verticalização da Petrobras “é absolutamente desfavorável ao ingresso de novos agentes independentes no mercado e à competição”.
Deste modo, o aditivo parece contraditório ao próprio posicionamento do Cade para a assinatura do TCC com a Petrobras sem apresentar fundamentos técnicos que justifiquem a mudança. Além disso, não há como negar que o aditamento frustra as expectativas de desverticalização do setor.
A necessidade de desverticalização do segmento de transporte foi reforçada pela Lei 14.134, de 8.4.2021, conhecida como nova Lei do Gás. A referida lei prevê expressamente a necessidade de independência e autonomia do transportador de gás natural em relação a agentes econômicos da indústria de gás natural (artigo 5º) e veda a relação societária direta ou indireta de controle ou de coligação entre transportadores e empresas ou consórcio de empresas que atuem ou exerçam funções nas atividades concorrenciais da indústria do gás natural (§ 1º do artigo 5º).
A possibilidade de certificação de independência na forma da regulação a ser expedida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), no caso de empresa ou consórcio de empresas que não atendiam aos requisitos e critérios de independência quando da publicação da nova Lei do Gás, não passa de regra transitória e em nada flexibilizou os objetivos regulatórios originalmente previstos no TCC e consolidados na nova Lei do Gás. Por isso há previsão de que a certificação de independência terá validade máxima até 4 de março de 2039 (i.e., prazo de validade das autorizações para a atividade de transporte convalidadas com a Lei do Gás anterior, de 2009).
Vale notar que a ANP tem tido dificuldades em cumprir com toda a agenda regulatória necessária à implementação do novo marco do setor de gás natural, incluindo a referida certificação de independência, agora ainda mais urgente e necessária. O Tribunal de Contas da União (TCU) disponibilizou relatório, em abril de 2024, do Processo 030.375/2020-7, em que reconhece a falta de recursos humanos na ANP, e recomenda o envio do relatório ao Ministério da Fazenda para ciência das consequências dessa situação, afetando o próprio “desenvolvimento do mercado de gás natural brasileiro”.
Além de representar divergência na abordagem concorrencial da questão envolvendo o aumento da competitividade no setor de gás natural, a homologação do aditivo em cenário de renegociação de TCC também é um precedente perigoso. Aditivos em TCCs do Cade são muito raros. O próprio Documento de Trabalho do Conselho sobre TCCs na Lei 12.529/2011, publicado em fevereiro de 2021, menciona que alterações futuras no conteúdo de TCCs ocorreram em apenas 1% dos acordos firmados com o Cade.
Na prática, o aditivo celebrado pela Petrobras não deve significar que empresas privadas terão êxito em renegociar TCCs com o Cade facilmente, nem que o caso da Petrobras seja uma justificativa para descumprimento de compromissos firmados. O precedente criado pode sugerir, na verdade, enfraquecimento da previsibilidade e da estabilidade regulatória, que parecem estar relacionadas ao mercado envolvido, bem como à mudança na composição dos órgãos regulatórios de tempos em tempos.
Ademais, a renegociação do TCC da Petrobras com o Cade suscita diversos questionamentos e preocupações sobre a abertura do mercado de gás natural no Brasil. Isso, principalmente considerando que o maior detentor de participação de mercado, como mencionado pelo próprio Conselho em diversos precedentes e, inclusive, nas razões para homologação do TCC ainda em 2019, parece conduzir a narrativa de como tal abertura se dará, reduzindo o espaço de atuação dos órgãos concorrenciais e regulatórios.