O setor elétrico tem sido alvo de questionamentos que podem ter efeitos de longo prazo, afetando o valor das tarifas e a qualidade do fornecimento de energia. No centro das discussões estão as distribuidoras de energia, que atendem o público em geral e passam por momento de transformação.
Em todo o mundo, a atividade das distribuidoras está cada vez mais atrelada à distribuição (gestão de utility ou do “fio”) e menos ao suprimento de energia propriamente dito. O aprimoramento tecnológico, natural em setores de infraestrutura, cujos projetos são executados, como regra, com base em contratos de longo prazo e incompletos, permitiu o fim do monopólio natural das distribuidoras para venda de energia aos consumidores. Isso afeta, diretamente, deveres e receitas das empresas de distribuição.
Atualmente, elas possuem as obrigações de fornecer energia e manter a rede de distribuição, aspectos que integram o objeto de seus contratos de concessão, datados, em geral, da década de 1990. Além disso, assumiram novas funções, sem fazer jus a receitas adicionais. É o caso das atividades de supervisão e fiscalização de geração distribuída (essenciais nos dias de hoje), por exemplo. Ainda, não raro se cogita obrigá-las a fazer enterramento de cabos, apesar de o escopo, de custo altíssimo, não estar previsto nos contratos de concessão.
Há tendência de que as distribuidoras operem como mantenedoras da infraestrutura na qual clientes e fornecedores transacionam seus produtos. Todos dependem, portanto, da viabilidade econômica e jurídica da atuação de tais empresas.
Devem ser somados a essa mudança de papel no setor outros fatores relevantes, que impactam a prestação de serviços pelas distribuidoras:
(1) eventos climáticos, que têm sistematicamente afetado o cabeamento aéreo e gerado transtornos ao redor do mundo, não apenas no Brasil;
(2) ausência de atuação da Administração Pública, por exemplo, na correta e rotineira poda de árvores, bem como no policiamento para impedir furto de energia e de fiação.
Neste cenário, episódios recentes de falta de suprimento de energia em determinados lugares têm gerado comoção pública na defesa de término antecipado de determinadas concessões, a denominada caducidade da concessão.
Em que pese os problemas causados pela ausência de eletricidade, tais eventos, por si só, não funcionam juridicamente como base para o término antecipado de concessão.
As normas vigentes são claras na proteção do negócio jurídico perfeito. Ele tem guarida constitucional (art. 5º, XXXVI, da CF/1988) e legal (art. 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Ainda, a caducidade apenas pode ocorrer em casos de descumprimento comprovado, nos exatos termos das disposições contratuais e regulamentares, e mediante pagamento de indenização à concessionária pelos investimentos realizados em bens reversíveis que ainda não tenham sido devidamente amortizados ou depreciados.
A declaração da caducidade da concessão deve ser precedida da verificação da inadimplência da concessionária em processo administrativo específico, no qual lhe deve ser assegurado o direito à ampla defesa. Ademais, o processo administrativo de inadimplência não pode ser instaurado antes de comunicados à concessionária, detalhadamente, os descumprimentos contratuais a ela imputados, dando-lhe prazo para corrigir as falhas e transgressões apontadas e para o enquadramento, nos termos contratuais. Tais pontos, que dialogam diretamente com o devido processo legal e com a segurança jurídica, são resguardados pela Lei de Concessões (Lei 8.987/1995).
Para aferir a qualidade do fornecimento das distribuidoras, há parâmetros e regras sobre tempo de falta de suprimento e outros índices estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel). Tais índices afetam a remuneração anual das distribuidoras, de forma a manter o equilíbrio entre o nível de prestação de serviços e a remuneração recebida. A caducidade da concessão pode ocorrer apenas em casos extremos de sucessivos não atendimentos de tais índices, que devem ser provados em processos administrativos específicos, como mencionado.
Fatos isolados e meras declarações não podem servir de base para caducidade de concessões, sob pena de absoluta insegurança jurídica. Há necessidade de obediência ao direito, em qualquer circunstância.
Não faltam exemplos recentes das consequências deletérias que voluntarismos e desrespeitos aos contratos geraram no setor. A famigerada Medida Provisória 579, de 11 de setembro de 2012, até hoje encarece a tarifa de energia e serviu para afugentar investidores. Os aumentos de custos dela decorrentes são estimados em quase R$ 200 bilhões para o consumidor.[1]
O setor também já enfrentou episódio em que estado da federação tentou declarar a caducidade de concessão federal. Tal caso, se tivesse prosperado, colocaria em xeque o modelo de concessões de todo o país, afetando não apenas o setor elétrico, mas todos os demais, notadamente pelo fato de que a outorga dos serviços é realizada pela União, de modo que apenas ela pode aplicar penalidade às concessionárias. Isso afugentaria o setor privado, responsável pela maior parte do incremento de prestação de serviço público no país.
Recentemente, outros episódios de descumprimento de contratos ocorreram, tal como a limitação para reajuste tarifário no Amapá. Por mais nobre que seja a tentativa de atribuir aos usuários tarifas mais módicas, novamente está-se diante de descumprimento contratual. Pior: a empresa distribuidora, tendo sua receita frustrada, fatalmente terá menos capacidade de investimento, afetando a qualidade da prestação dos serviços concedidos.
O resultado dos casos relatados foi o inverso do desejado. Resultaram em: (1) aumento de custo da tarifa; (2) queda na qualidade do fornecimento, uma vez que as distribuidoras se veem cada vez mais afetadas, minando a capacidade de fazerem correto investimento; (3) aumento de risco para potenciais investidores, que diminuem seu apetite para exercício da atividade (como ocorreu com a transmissão de energia elétrica com a MP 579), podendo resvalar inclusive em outros setores da economia (saneamento, por exemplo).
Embora haja a saudável busca por tarifas mais acessíveis e fornecimento de qualidade para todos, tal objetivo deve ser alcançado por outros meios institucionais. Pode passar, por exemplo, pela redução de subsídios cruzados e de impostos sobre energia e pela reestruturação do setor, preservando o negócio jurídico perfeito e os contratos de concessão celebrados. Vale sempre lembrar que, sem distribuição de energia adequada, não existe setor elétrico viável.
[1] Disponível em: <https://www.abdib.org.br/2019/04/26/medida-provisoria-579-provocou-impacto-de-quase-r-200-bilhoes-nas-tarifas-diz-aneel/>. Acesso em: 04.abr.2024.