O instituto do reconhecimento de dívida consiste em um procedimento administrativo voltado a viabilizar o pagamento de obrigação assumida pela Administração Pública sem a observância integral dos procedimentos regulares de contratação, seja por inexistência de instrumento contratual válido, seja por falhas formais no processo de empenho e liquidação.
Trata-se de medida excepcional, destinada a indenizar ou satisfazer o crédito do particular que tenha prestado serviço ou fornecido bem à Administração, evitando o enriquecimento sem causa do ente público.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
O procedimento também é cabível para o reconhecimento de obrigações relativas a exercícios anteriores não processadas na época própria, para a quitação de restos a pagar com prescrição interrompida e para o adimplemento de compromissos reconhecidos após o encerramento do exercício financeiro. Em todos os casos, a sua adoção pode ensejar a apuração de responsabilidades dos agentes públicos que deram causa à despesa irregular, preservando-se, contudo, a obrigação de adimplir prestações legítimas e devidamente comprovadas.
No plano principiológico, o reconhecimento de dívida se apoia no princípio da vedação ao enriquecimento sem causa, derivado da boa-fé objetiva e consagrado pelo Direito Civil, e nos princípios constitucionais da legalidade, moralidade e eficiência, consagrados no artigo 37, caput, da Carta Magna. A ideia central é que o Estado, mesmo zelando pela legalidade estrita, não pode se beneficiar indevidamente do trabalho ou do patrimônio de terceiros.
A base normativa do reconhecimento de dívida está dispersa em diferentes diplomas legais. O art. 60 da Lei 4.320/64 – que estatui Normas Gerais de Direito Financeiro para elaboração e controle dos orçamentos e balanços da União, dos estados, dos municípios e do Distrito Federal – estabelece que “é vedada a realização de despesa sem prévio empenho”.
O empenho, ato contábil e orçamentário, é a autorização formal para a realização da despesa e representa a reserva do crédito necessário ao pagamento. Sua ausência, portanto, configura irregularidade administrativa.
O artigo 59, da Lei 8.666/93[1], estabelecia que o dever de indenizar decorre principalmente da vedação ao enriquecimento sem causa – este preceito foi mantido pela Lei 14.133/21. Dessa forma, a nova Lei de Licitações e Contratos, em seus artigos 148 e 149, leciona o que segue:
Art. 148. A declaração de nulidade do contrato administrativo requererá análise prévia do interesse público envolvido, na forma do art. 147 desta Lei, e operará retroativamente, impedindo os efeitos jurídicos que o contrato deveria produzir ordinariamente e desconstituindo os já produzidos.
- 1º Caso não seja possível o retorno à situação fática anterior, a nulidade será resolvida pela indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e aplicação das penalidades cabíveis.
- 2º Ao declarar a nulidade do contrato, a autoridade, com vistas à continuidade da atividade administrativa, poderá decidir que ela só tenha eficácia em momento futuro, suficiente para efetuar nova contratação, por prazo de até 6 (seis) meses, prorrogável uma única vez.
Art. 149. A nulidade não exonerará a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que houver executado até a data em que for declarada ou tornada eficaz, bem como por outros prejuízos regularmente comprovados, desde que não lhe seja imputável, e será promovida a responsabilização de quem lhe tenha dado causa.
Nos dizeres de Celso Antônio Bandeira de Mello[2]:
Enriquecimento sem causa é o incremento do patrimônio de alguém em detrimento do patrimônio de outrem, sem que, para supeditar tal evento, exista uma causa juridicamente idônea. É perfeitamente assente que sua proscrição constitui-se em um princípio geral de direito.
Nesse sentido, a Orientação Normativa da Advocacia-Geral da União 04/2009 preleciona que: “A despesa sem cobertura contratual deverá ser objeto de reconhecimento da obrigação de indenizar nos termos do art. 59, parágrafo único, da Lei 8.666, de 1993, sem prejuízo da apuração da responsabilidade de quem lhe der causa”. Tal diretriz mantém-se pertinente, sobretudo em relação aos contratos celebrados sob a vigência da Lei 8.666/93, que podem permanecer em vigor durante o prazo de transição para a Lei 14.133/2021.
Além disso, a natureza do instituto é eminentemente indenizatória: não se trata de contratar ou gerar nova obrigação, mas de reconhecer formalmente uma obrigação preexistente, já executada, cujo inadimplemento colocaria a Administração em situação de enriquecimento ilícito, devendo ser excluída do valor cobrado qualquer parcela referente a lucro.
Por essa razão, o procedimento deve estar acompanhado de documentação robusta, como notas fiscais, laudos de recebimento, ordens de serviço, relatórios técnicos e demais elementos que demonstrem de forma inequívoca a execução e o benefício auferido pelo ente público. Também compreende a instrução processual a manifestação jurídica quanto à legalidade e eventual responsabilização, bem como a decisão da autoridade competente, seguida da liquidação e pagamento, com os devidos registros contábeis.
O pagamento como forma de indenização de gastos, além de estar previsto expressamente no supracitado artigo 149 do Estatuto Licitatório, é a forma mais adequada de ressarcimento ao particular que executa serviços desprovidos de respaldo contratual, buscando obter vantagem econômica por meio da ausência do devido procedimento licitatório. Assim, detectado que o vício decorreu de falha da administração, esta deve apenas indenizar o prestador dos serviços, nos termos da legislação.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
A execução da despesa pública, de modo geral, observa três fases: empenho, liquidação e pagamento. Com a publicação da Lei Orçamentária Anual e o cumprimento das normas de execução e programação financeira, as unidades orçamentárias podem utilizar suas dotações para a realização das despesas.
O princípio da anualidade orçamentária e a teoria do equilíbrio fiscal determinam que as receitas de um exercício sejam destinadas às despesas do mesmo exercício, de modo que os restos a pagar devem estar amparados por recursos equivalentes, conforme dispõe o artigo 36 da Lei 4.320/64[3]. Quando a despesa empenhada não é paga até 31 de dezembro, será inscrita como restos a pagar, processados ou não processados, conforme já tenha ou não ocorrido a liquidação.
Assim, o reconhecimento de dívida é um mecanismo que busca conciliar a observância da legalidade com a necessidade de resguardar o interesse público e a boa-fé nas relações entre administração e administrado. Embora de caráter excepcional, sua correta aplicação garante mais justiça nas relações contratuais e preserva a credibilidade do Estado, assegurando que obrigações legítimas sejam adimplidas, ainda que a formalidade não tenha sido observada no momento oportuno.
[1] Art. 59. A declaração de nulidade do contrato administrativo opera retroativamente impedindo os efeitos jurídicos que ele, ordinariamente, deveria produzir, além de desconstituir os já produzidos.
Parágrafo único. A nulidade não exonera a Administração do dever de indenizar o contratado pelo que este houver executado até a data em que ela for declarada e por outros prejuízos regularmente comprovados, contanto que não lhe seja imputável, promovendo-se a responsabilidade de quem lhe deu causa.
[2] MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Boletim de Licitação e Contratos Administrativos. São Paulo: NDJ, abr. 1998. p. 193.
[3] Art. 36. Consideram-se Restos a Pagar as despesas empenhadas mas não pagas até o dia 31 de dezembro distinguindo-se as processadas das não processadas.
Parágrafo único. Os empenhos que correm à conta de créditos com vigência plurianual, que não tenham sido liquidados, só serão computados como Restos a Pagar no último ano de vigência do crédito.