O Brasil responde por mais de um terço dos deslocamentos internos por desastres nas Américas, com 745 mil pessoas afetadas, conforme relatório do Centro de Monitoramento de Deslocamento Interno das Nações Unidas divulgado em maio. É o maior número contabilizado pelo Brasil desde o início dos registros em 2008.
Neste momento, o Rio Grande do Sul contabiliza mais de meio milhão de pessoas nessas condições, com 40 mil vivendo em abrigos. As áreas mais atingidas são as que reúnem pessoas de baixa renda. Calcula-se que 9,5 milhões de brasileiros moram em uma das mais de 28 mil áreas de risco existentes no país. O deslocamento climático não é um espectro futuro, mas um fenômeno contínuo que já ocorre em nível global.
Pessoas e comunidades deslocadas internamente são aquelas “forçadas a fugir ou a deixar seus locais de residência como resultado de ou para evitar os efeitos de conflitos armados, violência generalizada, violações de direitos humanos, desastres naturais ou causados pelo homem, e que não cruzam uma fronteira internacionalmente reconhecida”, conforme os Princípios Orientadores das Nações Unidas relativos aos Deslocados Internos, de 1998.
Ainda que pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas não tenham status formal reconhecido pela legislação internacional considerando apenas essa condição de deslocamento, os Princípios das Nações Unidas sobre Deslocados Internos, oferecem diretrizes relevantes para orientar a ação dos estados para o atendimento dessas populações.
A causalidade e responsabilidade internacional devem ser consideradas quanto às pessoas deslocadas pelas mudanças climáticas. Os países historicamente responsáveis pela crise climática investem mais recursos protegendo suas fronteiras do que enfrentando a crise que resulta no deslocamento.
A maioria dos deslocados por mudanças climáticas e desastres permanece dentro do próprio país. O Estado tem o dever de proteger e promover os direitos humanos dessas pessoas, sem discriminação. Os Princípios das Nações Unidas sobre Deslocados Internos estabelecem medidas de prevenção, adaptação e proteção a pessoas deslocadas e a processos de retorno, reconstrução ou realocação.
Dentre as medidas preventivas e adaptativas há o mapeamento de áreas de risco, melhorias dos sistemas de alertas, (re)construção de edificações e infraestruturas mais seguras e sustentáveis, reflorestamento, restauração dos ecossistemas danificados e diversificação dos cultivos para adaptação a climas mutáveis. No RS há indícios de que estado e diversas prefeituras não adotaram medidas preventivas e tampouco se prepararam para situações emergenciais diante dos alertas emitidos.
As pessoas deslocadas por força de eventos climáticos ou desastres mantêm uma gama de direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos que devem ser respeitados enquanto vivem nessa condição. Os Princípios das Nações Unidas afirmam que elas não devem ser confinadas em campos de deslocados. Nos casos excepcionais, a permanência não deverá durar mais do que o exigido pelas circunstâncias.
Projeto de lei da deputada federal Erika Hilton (PSOL-SP) institui a Política Nacional dos Deslocados Ambientais e Climáticos em que todos os entes federativos deverão garantir proteção, resposta humanitária, atenção integral, recuperação e reparação aos indivíduos e comunidades afetadas, priorizando aqueles que sofrem impactos desproporcionais em razão de sua raça, idade, deficiência, etnia, identidade, condição migratória, origem social ou renda. Entretanto, é necessário que os entes federativos se responsabilizem, em consulta aos deslocados, pelos processos de retorno seguro e/ou reassentamento adequado.
Para as 40 mil pessoas que estão em abrigos públicos, o governo do estado oferece quatro acampamentos de lona a serem gerenciados pela ONU Migrações. As “cidades temporárias”, com até 10 mil pessoas em cada, serão montadas em Porto Alegre, Canoas, São Leopoldo e Guaíba, endereços de 65% dos desabrigados. Serão guetos monumentais construídos em locais distantes, com acesso precário a serviços básicos, de duração indeterminada, risco de doenças, aumento de conflitos sociais e violência doméstica.
No Brasil, (re)assentamentos temporários tendem a se tornar permanentes frente ao descaso governamental. É o caso do auxílio-aluguel criado nos anos 2000 para ajudar moradores em situações emergenciais a alugarem uma moradia temporariamente, até que uma definitiva fosse providenciada. Em muitas cidades, ele se converteu em medida desprovida de solução habitacional definitiva.
Traçando um paralelo com o caso do furacão Katrina que atingiu a Costa do Golfo dos Estados Unidos em 2005, o programa habitacional de emergência da Agência Federal de Gerenciamento de Emergências dos EUA (FEMA) consistiu no alojamento das famílias afetadas em trailers. Três anos após o desastre, 48 mil trailers ainda abrigavam famílias afetadas na Louisiana.
A urgência de moradia decorrente da calamidade pública justificaria a utilização, pelo estado e pelos municípios, da requisição administrativa de imóveis vazios privados para atender aos abrigados, prevista na Constituição e Lei 8.080 de 1990. Os dados do Censo de 2022 apontam que Porto Alegre possui 101.013 imóveis vagos.
Quais são os direitos dos afetados após o cessamento ou arrefecimento das condições que deram causa ao deslocamento? Os Princípios de Restituição de Moradia e Propriedade para Refugiados e Deslocados Internos, de 2005, elaborados pelo então Relator das Nações Unidas para o tema, professor Paulo Sérgio Pinheiro, estabelecem que essas pessoas têm o direito de retornar à moradia, terra ou propriedade de que tenham sido arbitrária ou ilegalmente privadas.
O denominado direito à restituição deve ser a solução a ser priorizada como elemento-chave de justiça restaurativa aos deslocados climáticos. O retorno e a restituição devem ocorrer de forma voluntária, digna e segura.
A Colômbia, com cerca de 7 milhões de deslocados internos pelo conflito armado, aprovou leis nos anos 2000 que protegem o patrimônio e a população afetada. Dentre as medidas há a obrigatoriedade do registro das moradias e terras abandonadas em um cadastro especial que inclui, além dos proprietários, os possuidores, ocupantes, detentores, e as propriedades coletivas dos povos indígenas e comunidades tradicionais, bem como uma abordagem diferenciada de gênero e idade. Isso porque o alto nível de informalidade na posse da terra aumenta a vulnerabilidade das pessoas deslocadas. O objetivo do registro é impedir a transferência ou a toma dos imóveis, salvaguardando os direitos dos detentores, e dar publicidade à proteção aos bens dos deslocados.
Quando não for possível o retorno às terras ou moradias por terem sido danificadas de forma permanente e irreversível, os Princípios Pinheiro reconhecem o direito dos afetados à reparação justa pelas perdas que sejam impossíveis restaurar. Isso inclui indenização, reassentamento ou outras formas de compensação adequadas.
Para isso, o Estado deve estabelecer procedimentos, instituições e mecanismos equitativos, independentes, transparentes e não discriminatórios para atender à população deslocada. Os inquilinos, detentores de direitos possessórios, direitos territoriais coletivos e de uso social de moradia devem ser reconhecidos como beneficiários dos programas de restituição, compensação e adaptação, incluindo idosos, mulheres chefes de família, pessoas com deficiência, indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais.
É fundamental acessar recursos internacionais e nacionais para financiar a proteção dos direitos dos deslocados. Frente à relevância do acesso à terra nos processos de resolução do deslocamento climático torna-se relevante a constituição de Bancos de Terras mediante aquisição de áreas privadas e reserva de terras públicas para fornecer soluções sustentáveis. O mais importante, entretanto, é que as medidas de proteção às pessoas deslocadas e seus bens sejam definidas de forma democrática e participativa.