Em setembro, repercutiu na mídia uma decisão da 8ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Recurso de Revista[1], em que se discutia a validade de convenção coletiva firmada entre entidades representativas de empregadores e empregadas domésticas.[2] Partindo dessa decisão, esse texto se propõe a refletir sobre o direito à negociação coletiva de trabalhadoras domésticas, bem como sobre as funções do direito do trabalho.
O direito do trabalho brasileiro se dedicou nas suas origens especialmente à regulação de trabalhadores urbanos, na indústria e serviços. A Constituição Federal de 1988 avançou no alargamento formal desse escopo, equiparando trabalhadores urbanos e rurais e listando mais de 30 direitos individuais e coletivos a eles. No entanto, em relação às trabalhadoras domésticas, a evolução foi mais tímida, garantindo-se tão somente nove direitos.
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Anteriormente, a Lei 5.859 de 1972 havia reconhecido direitos à categoria, de maneira rasa e insuficiente. As demandas por ampliação de direitos ganharam novos contornos quando trabalhadoras domésticas brasileiras se envolveram diretamente na adoção da Convenção 189 – Convenção sobre Trabalhadores e Trabalhadoras Domésticas junto à Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2011).
No plano interno, a Emenda Constitucional 72 de 2013 foi adotada expandindo de 9 para 25 os direitos reconhecidos para essas trabalhadoras. Esse aumento substancial contemplou não somente direitos individuais, mas coletivos: o art. 7º, XXVI, prevê o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho.
Além do texto constitucional, a Convenção 189 da OIT, ratificada pelo Brasil em 2018, determina que se respeite “(a) a liberdade de associação e a liberdade sindical e o reconhecimento efetivo do direito à negociação coletiva […]” (art. 3º).
Nesse sentido, o direito à negociação coletiva da categoria foi reconhecido pela Constituição Federal e também pela Convenção 189 da OIT. Esse direito, todavia, não foi regulamentado pela Lei Complementar 150 de 2015, como foram os demais, tornando a sua efetivação uma questão ainda mais complexa.
Para ilustrar, tomamos por base a decisão proferida pelo TST, mencionada no início deste texto. O caso invoca o reconhecimento da categoria econômica dos empregadores domésticos como contraponto à categoria profissional.
Esses conceitos foram estabelecidos na CLT, no art. 511. Categoria econômica refere-se à solidariedade de interesses econômicos, como empresários que realizam atividades em um mesmo setor. Por sua vez, a categoria profissional diz respeito aos trabalhadores empregados em atividades econômicas iguais, similares ou conexas.
Essas definições datam dos anos 1940, o que não é um argumento para sua invalidade, mas um convite para refletir quem eram trabalhadores e empregadores na época. Um olhar atento percebe que trabalhadoras domésticas não eram sequer reconhecidas como profissionais e, portanto, excluídas da CLT.
Na sessão da 8ª Turma do TST, o desembargador Camargo Rodrigues de Souza reconheceu a dificuldade do conceito de categoria econômica acomodar empregadores domésticos, pela finalidade não lucrativa. Não obstante, para conferir-lhe eficácia, afirmou ser preciso “superar isso” e assegurar a possibilidade de negociação.
Em contrapartida, os ministros Pinto Martins e Dezena da Silva apresentaram divergência, não vislumbrando a possibilidade de negociação coletiva. Nas palavras do ministro Pinto Martins, “não existe categoria econômica, [uma vez que] não existe interesse de lucro”. Consequentemente, a decisão negou o direito à negociação coletiva, contrariando a Constituição e a Convenção da OIT.
É fato que trabalho doméstico é um ‘trabalho como nenhum outro’ já que que realizado no âmbito doméstico, permeado por intimidade e proximidade próprias de um trabalho de cuidado. No entanto, o trabalho doméstico é igualmente um ‘trabalho como qualquer outro’ pelas similaridades com outros trabalhadores.[3] Há caminhos para pensar um tratamento igualitário que o reconheça como um ‘trabalho como nenhum outro, trabalho como qualquer outro’? Para nós, a resposta é sim.
Primeiro, frisamos que o reconhecimento das negociações coletivas é um direito assegurado na Constituição e na Convenção nº 189 da OIT. São normas de hierarquia superior à própria CLT, com status constitucional e supralegal, respectivamente.[4] Assim, há amparo constitucional e convencional para se reconhecer a negociação coletiva da categoria.
Segundo, considerando que a dinâmica da organização e representação sindical de trabalhadoras domésticas e empregadores domésticos mimetiza a dinâmica das demais categorias – inclusive com registro das entidades sindicais no Ministério do Trabalho e Emprego –, seria juridicamente possível se valer do art. 8º da CLT para fundamentar o reconhecimento da entidade sindical de empregadores domésticos e, consequentemente, a negociação coletiva.
O art. 8º da CLT dispõe que, na falta de disposições legais ou contratuais, a Justiça do trabalho decidirá o caso “[…] pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado […]”.
Assim, seria viável recorrer ao mecanismo da analogia para estender a formalidade procedimental de formação de uma categoria por empregadores domésticos, à luz do art. 511 da CLT. Valer-se desse mecanismo não seria novidade para o tribunal, que se fundou na analogia para estender aos digitadores a pausa garantida no art. 72 da CLT a trabalhadores em serviços de mecanografia (Súmula 346 do TST). A equidade também poderia servir de fundamento, pois permite a “suavização do rigor da norma abstrata, tendo em vista as circunstâncias específicas do caso concreto posto a exame judicial”.[5]
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Por fim, também poderia ser útil o direito comparado, já que trabalhadoras e empregadores domésticos negociam coletivamente em outras jurisdições, como França[6] e Itália[7]. Há, portanto, fundamentos jurídicos que sustentam a possibilidade da negociação coletiva da categoria.
A Justiça do Trabalho sempre teve uma vocação de promoção da justiça social. Reconhecer a negociação coletiva das trabalhadoras domésticas é uma oportunidade de reforçar esse compromisso, além de contribuir para saldar uma dívida histórica que o direito do trabalho brasileiro tem com a categoria.
[1] Processo nº 11495-35.2021.5.15.0140.
[2] Ao longo do texto, as autoras optaram por adotar o feminino universal já que se trata de um trabalho desempenhado majoritariamente por mulheres.
[3] BLACKETT, A. Everyday transgressions: domestic worker‘s transnational challenge to international labour law. Ithaca: ILR Press, 2019.
[4] Entendimento do STF no RE 466.343, em que se definiu que tratados sobre direitos humanos não aprovados conforme o rito do artigo 5º, §3º da CF possuem hierarquia supralegal (e infraconstitucional).
[5] DELGADO, M. G. Curso de direito do trabalho. 18 ed. São Paulo: LTr, 2019, p. 207.
[6] MAILLARD, S; ENCINAS DE MUÑAGORRI, R. Le travail domestique en droit social: unité ou fragmentation ? Droit Social, v. 9, p. 668-673, 2022.
[7] SEIFFARTH, M. Collective bargaining in domestic work and its contribution to regulation and formalization in Italy. International Labour Review, v. 162, n. 3, p. 505-528, 2023.