A esclerose múltipla é uma doença rara que atinge cerca de 40 mil brasileiros. No entanto, a insuficiência de políticas públicas para atender esses pacientes compromete tratamentos desde o diagnóstico
A situação é agravada pela dificuldade de acesso à Atenção Especializada, e também a medicamentos e linhas de cuidado. Por acometer principalmente pacientes jovens, os impactos não se restringem ao campo da saúde, mas, em última instância, também as atividades econômicas.
Os avanços nos cuidados e desafios para o tratamento da esclerose múltipla e de doenças raras foram o tema de dois painéis na Casa JOTA nesta terça-feira (11/6). O evento foi patrocinado pela Merck.
Para os especialistas convidados a debater o tema, a incorporação de novas tecnologias de tratamento aprovadas pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), ligadas ao Ministério da Saúde, tem de ser aprimorada para que os pacientes consigam obter a medicação sem precisar recorrer aos tribunais.
Cenário do sistema de saúde
A esclerose múltipla é uma doença autoimune que provoca danos à mielina, uma cobertura de gordura que protege o sistema nervoso. Sem essa proteção, fibras do cérebro e da medula espinhal ficam suscetíveis a lesões que comprometem funções como a visão, a fala e a coordenação motora.
O transtorno neurológico é crônico, e pode levar a outros comprometimentos, como fadiga, problemas de equilíbrio, espasmos, fraqueza muscular, perda cognitiva, transtornos emocionais e sexuais. A maior parte dos pacientes são jovens de 20 a 50 anos, e atinge principalmente as mulheres.
Por isso, a neurologista Fernanda Ferraz ressaltou que os impactos da esclerose múltipla não se restringem apenas à progressão das sequelas que levam o paciente à incapacitação, mas têm reflexos sociais e previdenciários, já que os pacientes estão em plena idade economicamente ativa e reprodutiva.
Ela ressalta que os casos de esclerose múltipla estão em alta. “A exposição a essas infecções virais pode estimular o sistema imunológico de uma pessoa pré-disposta, e aumenta o risco de a doença se manifestar”, afirmou a médica, que é diretora científica da Associação de Pessoas com Esclerose Múltipla (Apemigos). Além disso, segundo ela, o avanço de tecnologias de diagnóstico deve elevar o número de casos e pressionar os sistemas de saúde público e privado.
Protoloco ineficaz
Com a perspectiva de aumento de casos, há a necessidade que a oferta de tratamentos acompanhe a complexidade dos casos. No Brasil, o protocolo clínico para esclerose múltipla estabelece três linhas de tratamento como norte aos profissionais de saúde. Para cada linha, são indicados medicamentos específicos, conforme os sintomas.
Para a neurologista Ferraz, o escalonamento de tratamentos descritos pelo protocolo para a linha de cuidados prejudica os pacientes e precisaria ser revisto – atribuição que é capitaneada pela Conitec, como órgão consultivo do Ministério da Saúde aos profissionais. “As terapias de alta eficácia não deveriam ter uma ordem de entrada, deveriam estar disponíveis para que pudéssemos indicar aos pacientes”, disse.
Por isso, a advogada da Associação Brasileira de Esclerose Múltipla, Sumaya Afif, diz que o protocolo atual é ineficaz. “O paciente com alta atividade é submetido a drogas de controle que não fazem mais sentido”, afirmou. “Médicos deveriam ter liberdade de prescrever o que já está incorporado no SUS”.
Incorporação de tecnologias
Para serem disponibilizadas no SUS, as terapias são avaliadas pela Conitec com base em, dentre outros fatores, parâmetros de custo-efetividade – ou seja, a comissão analisa se o preço do produto se justifica pela eficiência.
A deputada federal Rosângela Moro (União-SP), e coordenadora da Frente Parlamentar Mista da Inovação e Tecnologias em Saúde para Doenças Raras, diz que a Conitec deveria ampliar a análise de tecnologias que serão incorporadas para além dos critérios de custo-efetividade.
“É preciso fazer a conta com base no paciente já diagnosticado. No caso das doenças raras, toda a família fica doente. Dependendo da gravidade das sequelas, alguém abre mão da rotina e do trabalho para se dedicar aos cuidados”, afirmou.
O professor da Faculdade de Saúde Pública da USP Fernando Aith ponderou que em relação às doenças raras, o critério do custo-efetividade para a incorporação de tecnologias de tratamento é inválido.
“De um lado se tem um custo muito alto e benefícios duvidosos ou de difícil comprovação porque o ‘n’ [número] de pesquisas é pequeno, e isso não se encaixa na lógica da Conitec. Mas o paciente raro se encaixa no SUS, que é universal. Por isso, tem que fazer esforços para viabilizar o medicamento”, disse.
Sumaya Afif argumentou que, em vez desse parâmetro, deveria ser adotado um modelo mais próximo do aplicado pelo National Health System (NAS), o sistema público de saúde do Reino Unido, que serviu de inspiração ao SUS. “Trata-se de método multicritério, mas ainda estamos muito longe disso”, avaliou.
Além disso, o processo de participação da sociedade civil poderia ser aprimorado. Afif contou que já participou de reuniões da Conitec, mas no momento da votação sobre incorporações, teve de sair da sala: “Qual a transparência? Penso que as ferramentas poderiam ser mais expostas. Nas associações temos voz, mas quem nos ouve?”.
Em relação a isso, tramita na Comissão de Constituição de Justiça (CCJ) da Câmata dos Deputados, o projeto de decreto legislativo 26/2024, de autoria da Rosângela Moro, para alterar a composição da Conitec e criar uma cadeira para que as associações que representam os pacientes participem das discussões.
Financiamente da saúde
Outra ponto em relação ao processo de incorporação é que, na prática, a Conitec faz uma recomendação ao Ministério da Saúde, que decide se irá seguir o entendimento. E, depois de uma decisão em favor da incorporação, a pasta tem 180 dias para incorporar o medicamento ao SUS.
A questão é que, frequentemente, uma incorporação é aprovada, mas não há recursos destinados a garantir que ele será disponibilizado aos pacientes dentro do prazo definido.
O coordenador-geral da Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde, Rodrigo Cariri afirmou que uma das dificuldades na ampliação do acesso à saúde é um descompasso entre a incorporação de novos medicamentos e a definição do orçamento para a Saúde – que precisa ser aprovado pelo Congresso Nacional durante a votação da Lei Orçamentária Anual (LOA), no início do ano.
“O tempo de desenvolvimento e incorporação do produto é diferente do orçamento. O recurso é limitado. Especialmente quando se fala de doenças raras as perspectivas terapêuticas são limitadas e de alto custo. O que temos hoje é um grande passivo de incorporações que foram realizadas sem previsão orçamentária”, comentou Cariri.
Em meio a esse cenário, os especialistas e autoridades ressaltaram que a judicialização da saúde se tornou um mecanismo de acesso a medicamentos que não estão disponíveis no SUS. Cariri mencionou dados da Saúde que estimam o impacto desses processos judiciais envolvendo a condição de pacientes com doenças raras é de cerca de R$ 10 bilhões. “Isso é 10% do orçamento, é o valor para 150 mil brasileiros em hemodiálise”.
Já Fernando Aith argumentou que “essa judicialização é previsível e vem desde os anos 2000”. Por isso, para ele, o Ministério da Saúde já deveria contar com esse gasto no orçamento.
“Se não for adequadamente tratada no início, a doença entra em neurodegeneração”, ressaltou Fernanda Ferraz. “Não podemos ser omissos e massacrar a judicialização como se esse fosse o grande problema”, ponderou Sumaya Afif.
Além disso, uma vez que a incorporação prevê a negociação dos tratamentos diretamente pelo Ministério da Saúde, a perspectiva é que isso reduz os custos – uma vez que eventuais compras são feitas considerando o total de pacientes, e não em negociações pontuais, que podem ser menos vantajosas financeiramente.
Implementação de políticas
Políticas públicas que abordam as doenças raras já existem, mas não foram implementadas, na avaliação de Fernando Aith. Em 2014, o então ministro da Saúde Alexandre Padilha editou uma portaria que trata da Política Nacional de Atenção Integral às Pessoas com Doenças Raras, por exemplo.
“Ali tem todos os aspectos, desde a atenção básica, passando pela parte ambulatorial, diagnóstico, atenção especializada e integral dos pacientes. Precisa ser resgatada. Já foram dez anos e muito pouco se avançou, apesar de ser um plano bem feito”, afirmou.
De acordo com os painelistas, uma vez que pacientes com doenças raras estão em número reduzido, ainda que organizados em associados, têm pouca capacidade de pressão política sobre as políticas e definição do orçamento.
“A sublocação de recursos para saúde é um problema crônico, não acompanha as necessidades de 200 milhões de brasileiros”, afirmou Aith. “Considero muito desleal o argumento em relação a doenças raras de que tira dinheiro de hipertenso e diabético, o debate não é esse. Tem é que alocar mais recursos”.
Rodrigo Cariri, do Ministério da Saúde, diz que a pasta trabalha para aplicar critérios de inteligência clínica na gestão da fila de pacientes encaminhados da atenção primária para a especializada.
“O que estamos construindo é um mecanismo financeiro para remunerar a rede e o prestador diferentemente para que o serviço seja feito em tempo hábil. Estamos começando pelo câncer, e isso pode melhorar o percurso dos pacientes”, afirmou.