Desafios à universalização do saneamento básico

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No último dia 14 de junho, foi publicada a Lei 14.898/2024, que institui diretrizes nacionais para a Tarifa Social da Água e Esgoto, fixando critérios e percentuais mínimos a serem aplicados pelos titulares dos serviços públicos de água e esgoto.

A tramitação do projeto no Congresso Nacional, que se alongou por 11 anos, revela um dos principais desafios para as políticas públicas para o saneamento: a necessidade de conciliar e balancear de um lado a capacidade de pagamento das tarifas pelos usuários, e de outro a sustentabilidade econômico-financeira dos projetos no setor de forma a garantir os recursos necessários à universalização do acesso aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário e

Nos termos da nova lei, a tarifa social, no montante de 50% da tarifa aplicável à primeira faixa de consumo, será direcionada aos usuários com renda per capita de até 1/2 salário-mínimo que atendam às condições previstas.

Com vistas à manutenção da viabilidade econômico-financeira da concessão de tarifa social pelas prestadoras, a lei também prevê que o desconto somente será aplicado aos primeiros 15 m³ de consumo por residência classificada no benefício, podendo-se cobrar a tarifa regular sobre o excedente de consumo.

Ademais, a eficácia e a alteração da tarifa social estão condicionadas à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro do contrato da prestação de serviço de saneamento e sua implementação deverá ser financiada, prioritariamente, por meio de subsídio cruzado, com o rateio de seu custo entre as demais categorias de consumidores finais atendidas pelo prestador do serviço e com possibilidade de subsídio pelo Poder Executivo com os recursos da Conta de Universalização do Acesso à Água.

Nota-se, nestes aspectos, uma clara tentativa do legislador em conciliar a modicidade tarifária, com a aplicação de tarifas sociais, e a manutenção do patamar de sustentabilidade econômico-financeira dos serviços de água e esgoto principalmente ao condicionar os descontos ao reequilíbrio econômico-financeiro.

Considerando que a Lei 14.898/2024 veda a aplicação de um limite máximo de incidência da tarifa social (ou seja, todos os usuários que se enquadrarem nos requisitos mínimos legais devem ser beneficiados com o desconto tarifário), o grande desafio aqui será pensar em formas viáveis de implementar esse reequilíbrio sem prejudicar a capacidade de pagamento dos demais usuários e sem inviabilizar o atingimento das metas de universalização do novo marco legal.

Isto é, considerando que a incidência da tarifa social pode causar desequilíbrio relevante para os contratos de concessão, apenas a majoração da tarifa cobrada dos demais usuários pode não ser suficiente para reequilibrar os respectivos contratos, sendo necessário recorrer a outras formas de compensação. Todo cuidado deve ser tomado para que esses contratos não se tornem irreequilibráveis.[1]

Outro episódio recente de tentativa de equilíbrio entre modicidade tarifária e sustentabilidade econômico-financeira da prestação dos serviços de saneamento foi verificado no âmbito do Judiciário pela revisão da tese fixada no Tema Repetitivo 414 do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1937887, REsp 1166561 e REsp 1937891), referente à forma de cálculo da tarifa de água e esgoto em condomínios com hidrômetro único.

Conforme a tese fixada em 2010, a cobrança de tarifa em condomínios com um só hidrômetro deveria ser feita pelo consumo real aferido, de modo que o condomínio era considerado como uma unidade de consumo única. Como a apuração considerava o consumo real global, o volume consumido considerado para o faturamento usualmente se encontrava nas faixas de consumo mais altas e, por conseguinte, o ensejava a aplicação de tarifa de maior valor por metro cúbico de água.

Todavia, muitos condomínios pleiteavam e obtinham decisões judiciais pela aplicação de um método híbrido – via de regra, sem aparo contratual – que contava todas as economias do condomínio para definição do patamar de aplicação da tarifa mínima, mas que considerava o condomínio como uma única unidade consumidora para de aplicação da tarifa, tendo por consequência dispensar cada unidade de consumo do condomínio da tarifa mínima exigida pela estrutura tarifária contratual. A aplicação desse método híbrido gerava grave distorção entre os usuários, privilegiando os condomínios com múltiplas economias e apenas um hidrômetro em detrimento dos demais usuários residenciais.

Em uma tentativa de favorecer a isonomia entre os condôminos e a modicidade tarifária – isto é, garantir que o serviço público seja oferecido a preço justo ao usuário –, a primeira seção do STJ revisou essa tese em junho desse ano. Com isso, foram afastados o critério de consumo real global e o método híbrido, prevalecendo critério no qual o valor aferido pelo hidrômetro é repartido entre as múltiplas unidades consumidoras do condomínio.

Assim, a tarifa deverá ser aplicada com base em uma parcela fixa a ser paga por cada uma das unidades consumidoras e correspondente à tarifa mínima da primeira faixa de consumo, e uma parcela variável, exigida apenas quando o consumo real aferido pelo hidrômetro exceder o valor total da franquia de consumo pela primeira faixa de consumo considerando a soma de todas as unidades consumidoras. Com a fixação desta nova tese, pretende-se uma maior isonomia na aplicação das tarifas de água, de modo que os condôminos paguem pelo que efetivamente consumiram, sem que haja uma distorção decorrente da aplicação das faixas de consumo mais elevadas ou do critério hibrido.

No intuito de equilibrar a modicidade tarifária e a necessidade de remuneração da prestadora para viabilizar a prestação dos serviços de saneamento básico, diferentes aspectos das modelagens regulatórias também têm sido exploradas nas licitações de saneamento no Brasil.

Em artigo anterior, discutimos esta temática utilizando como exemplo a estrutura tarifária proposta para o contrato de concessão da Sabesp que entrará em vigor com o processo de desestatização da companhia. Naquele caso, foi estabelecido que a universalização dos serviços de abastecimento de água e tratamento e coleta de esgoto deveria ocorrer até 31 de dezembro de 2029 na área atendível.

Para contrabalancear os vultuosos investimentos necessários para tal, foi elaborada uma regulação tarifária com abordagem backward looking, isto é, com incorporação do valor dos investimentos na tarifa após a sua realização. Tal estrutura confere maior segurança à remuneração dos custos incorridos pela concessionária, que ocorrerá após o reconhecimento do investimento realizado, evitando que haja um descasamento entre as tarifas e o CAPEX.

Nota-se que a busca por um ponto de equilíbrio entre a modicidade tarifária e a viabilidade econômico-financeira dos projetos é um desafio constante no setor de saneamento, especialmente tendo em vista as metas de universalização impostas pelo novo Marco do Saneamento Básico. Conforme o novo marco regulatório do setor, até 2033, deverá haver o fornecimento de água tratada para 99% e de esgotamento sanitário para 90% da população.

A universalização deve ser combinada à modicidade tarifária, garantindo-se que a população não tenha apenas acesso físico aos serviços, mas também condições de fato, inclusive financeiras, para utilizá-los. De outro lado, para levar os serviços de saneamento a todas as regiões do país são necessários vultuosos investimentos por parte dos prestadores de serviço, o que impacta significativamente a viabilidade econômico-financeira da prestação dos serviços.

Desta forma, é essencial pensar em medidas legislativas e regulatórias que conciliem os dois lados, fomentando um desenvolvimento sustentável do setor de saneamento e, simultaneamente, viabilizando a universalização do acesso físico e efetivo aos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário no país.

[1] BOGOSSIAN, André Martins. O poder-dever de renegociação dos contratos ‘irreequilibráveis’ de concessão comum e PPP. Revista de Contratos Públicos [recurso eletrônico]. Belo Horizonte, v.7, n.13, mar./ago. 2018.