A reforma tributária finalmente passou. É de se comemorar, sobretudo porque os pessimistas de sempre vaticinaram que nunca passaria. Mas um fato ocorrido no momento derradeiro de sua aprovação na Câmara dos Deputados merece uma análise mais detida.
Refiro-me à retirada do texto final aprovado da possibilidade de cobrança sobre armas de fogo do imposto seletivo, o chamado “imposto do pecado”.
Não quero fazer um julgamento moral sobre o fato, mas tentar explicar os motivos que levaram a isso e deixar um alerta para o futuro.
Deve-se recordar, antes, que a reforma foi pensada para criar um sistema simples, eficiente e seguro, mexendo sobretudo na tributação sobre o consumo com o estabelecimento de uma espécie de imposto único sobre o valor agregado (IVA), que mundialmente se baseia em duas premissas: o princípio do destino, de modo que quem deve pagar o tributo é o consumidor; e o princípio da neutralidade, fazendo com que carga tributária não seja um fator na consideração das escolhas dos agentes de mercado.
O IVA foi esboçado para uma era industrial na Europa do século 20, por isso é normal que seja atualizado para os problemas do mundo do século 21, em que a economia foi digitalizada e a questão da sustentabilidade entrou na gramática das preocupações humanas.
Nos países em que foi mais recentemente adotado, como Canadá e Nova Zelândia, o tributo ganhou nova roupagem, a de GST (Goods and Services Taxes), uma espécie de IVA 4.0.
No Brasil, em vez de IVA e GST, haverá uma tributação dual sobre o consumo via CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), ao qual se acrescem um imposto específico e finalístico esboçado para desestimular o consumo de bens e serviços considerados prejudiciais à saúde e ao meio ambiente, o imposto seletivo. Um IVA 5.0? Talvez.
De qualquer sorte, causa espécie não se poder cobrar o tal “imposto do pecado” sobre artefatos que, por excelência, são mortíferos. Não é a primeira perplexidade nesse processo de mudança tributária brasileira, pois nas etapas anteriores da reforma já se tinha retirado, por exemplo, a possibilidade de cobrar imposto seletivo sobre agrotóxicos. Nem parece que será a última.
Há quem possa esboçar explicações sociológicas para tudo isso, talvez sugerindo que a vida não é levada tão a sério entre nós, o que se coaduna a estudos mais recentes que colocaram em xeque as tais docilidade e cordialidade do povo brasileiro, tão cantadas em verso, prosa e ensaio ao longo dos anos.
Outra abordagem para a retirada da possível incidência do “imposto do pecado” sobre as armas de fogo e agrotóxicos é mostrá-la como um alerta sobre as dificuldades que ainda existem para se empreender verdadeiras reformas de Estado no Brasil.
É difícil empreender reformas de Estado num país tão polarizado socialmente e tão fragmentado politicamente, sobretudo com a miríade de partidos, bancadas e frentes parlamentares pululando no Congresso Nacional.
Por isso, tivemos que nos contentar com quatro faixas de alíquotas para IBS e CBS – alíquota zero, alíquota reduzida a 40%, alíquota reduzida a 70% e alíquota padrão – e com as limitações na cobrança do imposto seletivo.
A política, naquela consagrada ideia de ser a arte do possível, legou-nos uma reforma tributária também apenas possível, que, lembrando de preciosas lições de Maquiavel, indica a necessidade de virtude cívica para lidar com as limitações da realidade em que vivemos.
E se assim foi na reforma tributária em nível constitucional, como as novas etapas passam pela regulamentação de vários dispositivos por lei complementar, no mesmo Congresso Nacional, o alerta está dado para a necessidade de cautela e atenção nos processos legislativos que virão.