Derrubada de vetos mostra que já vivemos sob semipresidencialismo

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O recente tsunami de derrubada de vetos empreendido pelo Congresso Nacional contra o governo Lula 3 aponta para uma nova temporada de embate entre os Três Poderes e sugere que elementos cruciais do bolsonarismo estão mais vivos do que nunca na agenda política nacional.

Ainda que o líder-mor da extrema direita esteja inelegível, a agenda de retirada de direitos e expansão de privilégios sob o verniz liberal segue a todo vapor. Foram derrubados nove vetos integralmente e outros quatro parcialmente em sessões nesta quinta-feira (14). A derrota do governo ofuscou o triunfo do dia anterior, quando o Senado aprovou a indicação do ministro da Justiça, Flávio Dino, ao Supremo Tribunal Federal (STF).

Não importa se os parlamentares vestem os pés com botas, coturnos ou sapatênis. Todos esses calçados deixam pegadas no terreno movediço da antessala do colapso institucional rumo a um único caminho: o fim do contrato social inaugurado pela Nova República e a consequente desidratação das garantias legadas pelos constituintes de 1988. Ademais, a capacidade do Legislativo em emparedar o Executivo e eventualmente o Judiciário dá sinais inequívocos de que já vivemos um semipresidencialismo de fato.

Ainda que sirva de anteparo para a manutenção de privilégios de corporações, a atual Constituição foi aquela que em nossa história melhor procurou equilibrar os direitos individuais, tão consagrados pelas cartas outorgadas pelo Império e a República Velha, mas que, sem direitos sociais, viraram colunas da hipocrisia de um país cujas elites arrogavam-se civilizadas, porém sem sufrágio universal e legando o povo à miséria.

A partir da Revolução de 1930, as Constituições procuraram assegurar direitos coletivos. No entanto, venceram sobretudo as corporações. Foi apenas com o fim da ditadura militar que se atingiu um mínimo equilíbrio entre garantias individuais e proteção contra a tirania do Estado, enquanto direitos específicos não ficaram restritos a corporações, tendo sido estendidos às minorias como indígenas e trabalhadores rurais.

Por exemplo, com a imposição de vetos à lei do marco temporal, Lula procurou reequilibrar esse jogo a favor dos indígenas. Porém, com a derrubada de 41 dos 47 pontos vetados pelo presidente, criou-se uma situação pior que aquela existente durante os últimos 30 anos em termos de proteção de indígenas e seus territórios. O governo já avisou que vai recorrer ao STF, que tinha declarado o marco inconstitucional.

Todavia, o mais chocante é a desfaçatez de líderes do centrão e da direita que se assume como tal, notadamente o maior partido de oposição, o PL, principal morada do bolsonarismo. Em entrevistas às pencas, repetiram feito papagaios que a derrubada do fim da desoneração de 17 setores econômicos é uma vitória do liberalismo. Na verdade, trata-se do mais puro suco de corporativismo — ou seja, o meio pelo qual as oligarquias e as elites em geral mantiveram boa parte de seu poder nos últimos 93 anos depois do fim da República Velha.

Mesmo com a força da direita, não vamos voltar ao Brasil pré-1930 tal como o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) parecia ambicionar. No entanto, parece que os parlamentares que cerraram fileiras contra o governo buscam um país em que se pede ao povo sem pão que se alimente de leis. Hoje quem devora a Constituição são velhas e novas elites que empoderadas economicamente e simbolicamente querem a todo custo nos afastar do pacto civilizacional iniciado com a Constituição de 1988.

O semipresidencialismo de fato, que convenientemente favorece posições à direita, é o principal sintoma desse afastamento. Ironicamente, políticos do PL e seus satélites enrustidos — pois não se assumem como ultradireita — afirmam haver uma ditadura do STF. Esse discurso deve ganhar força nas redes de eleitores desse segmento com a indicação do “comunista” Dino — nas palavras de Lula — para a corte.

Com a judicialização do marco temporal e outros aspectos relevantes da questão indígena no horizonte, o cenário está armado para que um novo tsunami chegue a Brasília em pleno ano eleitoral. A direita tende a ampliar sua força nacionalmente em meio à relativa estagnação econômica e um identitarismo reacionário que impede a adesão de segmentos conservadores ao atual governo.

Assim, no nosso semipresidencialismo extraoficial, a centro-esquerda está no poder, mas não governa. Lula tem, no máximo, comando sobre prerrogativas de chefe de Estado. A chefia do governo está em múltiplas mãos, a maioria delas em corpos de homens que tipicamente sempre deram as costas para o povo, sejam eles vestidos em fardas, ternos ou jaquetas de couro.