Os que acompanham o noticiário corporativo internacional certamente notaram a ampla divulgação conferida ao caso Purdue Pharma, que teve sua audiência perante a Suprema Corte dos Estados Unidos no último dia 4.
Trata-se de interessantíssimo caso que congrega várias das principais discussões em torno dos parâmetros da atividade empresarial e dos mecanismos de solução dos ilícitos corporativos, enfatizando as dificuldades decorrentes de abordagens excessivamente pragmáticas ou consequencialistas tanto no que diz respeito aos envolvidos como no que diz respeito às sinalizações e aos incentivos para o mercado como um todo.
Antes de ingressar nas discussões específicas do caso, vale a pena descrever brevemente os seus antecedentes, a fim de facilitar a compreensão do que está em jogo perante a Suprema Corte dos EUA. Nesse sentido, vale destacar que o problema está inserido no contexto da conhecida crise dos opioides nos Estados Unidos, que contou com grande protagonismo da Purdue Pharma.
Com efeito, a companhia é acusada de ofertar no mercado, por anos, o medicamento OxyContin, que, embora seja eficaz no alívio de dores, é altamente viciante. Daí ser considerado responsável por diversas mortes, suicídios e outros graves problemas de saúde nos Estados Unidos.
Pesa contra a empresa a acusação de que os riscos eram conhecidos e, mesmo assim, o produto continuou sendo ofertado sem a devida informação e os cuidados necessários. Vale ressaltar que, no âmbito criminal, a empresa já reconheceu a sua culpa em pelo menos duas oportunidades.
O caso sob a jurisdição da Suprema Corte diz respeito, entretanto, aos desdobramentos do problema sobre a responsabilidade civil da Purdue Pharma e seus controladores – a família Sackler – perante as milhares de vítimas ou suas respectivas famílias. A raiz mais direta da controvérsia diz respeito ao fato de a Purdue Pharma ter entrado com um pedido de falência em situação “delicada”, uma vez que, anteriormente, a família Sackler havia transferido US$ 11 bilhões do patrimônio da companhia para trustes familiares ou outras empresas do grupo.
No âmbito do procedimento falimentar, foi feito acordo não apenas com a companhia, mas também com os próprios Sacklers – que não são partes do procedimento falimentar – por meio do qual os controladores assumiram a obrigação de injetar US$ 6 bilhões no montante a ser destinado aos credores em troca da sua ampla imunidade no âmbito da responsabilidade civil. Com isso, seriam assegurados às vítimas US$ 8 bilhões a serem imediatamente disponibilizados.
A peculiaridade é que, como os credores incluíam estados, coletividades, hospitais e indivíduos, o acordo foi aprovado por todos os estados norte-americanos e por 96% dos indivíduos. Após ser homologado judicialmente, foi impugnado pela administração Biden em oito estados e assim chegou à Suprema Corte.
Parte das controvérsias submetidas à Suprema Corte diz respeito a questões específicas do procedimento falimentar: se os Sacklers poderiam participar de acordo em hipótese em que não são partes do processo de falência – mas tão somente a companhia – e se poderia ser válido um acordo no qual não houve consenso de totalidade dos credores, ainda que se tenha atingido um altíssimo percentual de aprovação.
Entretanto, para além das discussões mais específicas sobre os requisitos específicos para a aprovação do acordo e sobre as peculiaridades do processo falimentar nos Estados Unidos, a discussão coloca luz sobre a batalha entre a dimensão mais pragmática da solução do problema – disponibilização imediata de dinheiro para as vítimas – e a dimensão deontológica, que diz respeito aos princípios e valores que deveriam prevalecer em uma situação como essa.
Para os que defendem o acordo, a finalidade do processo falimentar é compensar as vítimas e não punir os envolvidos. Para os que são contrários, seria inadmissível que os Sacklers, na condição de controladores, não sofram todas as consequências dos seus atos, até porque, a prevalecer o acordo, continuarão com mais da metade da sua fortuna de bilhões de dólares. Assim, o acordo implicaria, na verdade, verdadeira chancela para a delinquência corporativa.
Como se verifica, a discussão envolve a própria utilização de acordos para a solução de problemas de delinquência corporativa, tema que tem sido cada vez mais debatido. A título de exemplo, vale mencionar o instigante livro de John Coffee Jr. Corporate Crime and Punishment: The Crisis of Underenforcement[1], em que o autor aborda como, por diversos motivos, a política de acordos tem sido ineficiente para conter a delinquência corporativa nos Estados Unidos.
Segundo o autor, por uma série de circunstâncias, os acordos têm sido uma solução fácil para que empresas e sua alta administração se livrem de acusações ou tenham uma série de vantagens ou facilidades que, no fim das contas, não atribuem aos infratores as consequências de suas ações, até porque, em muitos casos, nem mesmo o reconhecimento da ilicitude ou culpa é exigido. Daí propor uma série de restrições a tais acordos, como a sua limitação aos casos de denúncia espontânea do ilícito por parte da empresa.
Não é sem razão que a revista The Economist dedicou ao caso uma recente matéria cujo título é bastante provocador: The Supreme Court may toss out Purdue Pharma’s bankruptcy settlement. The deal is a case study in unsavoury trade-offs. A reportagem lembra artigo de 40 anos de Owen Fiss contra esse tipo de acordo, exatamente por entender que várias de suas características, tais como a ausência de reconhecimento de culpa em tais situações, impedem o estabelecimento de valores e a própria realização da justiça.
É por essa perspectiva que a conclusão da The Economist é a de que o acordo Purdue suscita precisamente o conflito entre justiça e compensação, o que é potencializado no caso concreto quando se verificam os números: enquanto os Sacklers drenaram US$ 11 bilhões da companhia para trustes familiares e holdings, vão contribuir com apenas US$ 6 bilhões para o montante indenizatório das vítimas; enquanto as vítimas individuais receberão indenizações que variam entre US$ 3.500 a US$ 48 mil, os Sacklers continuarão com suas fortunas bilionárias.
Para além de tais problemas, acordos como o verificado no caso Purdue Pharma são normalmente “costurados” e aprovados em situações nas quais as vítimas podem estar em estado de extrema necessidade, razão pela qual podem admitir grandes restrições a seus direitos diante do pior cenário de não receberem nada ou terem que aguardar muito tempo até a definição final do assunto.
Vale ressaltar que esse tipo de trade-off – ou a vítima recebe agora o que a empresa tem a lhe oferecer ou corre o risco de não receber nada no futuro – é outro grave problema desses acordos, até porque decorre de escolhas empresariais cuidadosamente arquitetadas e executadas pelas companhias, que criam o problema e depois criam as dificuldades para resolvê-lo.
O caso sob questão é um bom exemplo disso: a mesma família que transferiu dinheiro da companhia agora se propõe a recompor o montante destinado aos credores, desde que de acordo com os limites que entende razoáveis e, em qualquer caso, mediante a exigência de ampla imunidade no âmbito da responsabilidade civil.
É por essa razão que não há exagero em se afirmar que o caso sob exame não diz respeito apenas a um problema pontual de falência e compensação de vítimas: ele diz respeito a um dos pontos nevrálgicos do capitalismo atual, ao desvelar por completo a tensão entre o que seria a solução justa e o que seria a solução útil a curto prazo.
Entretanto, a discussão vai além de uma oposição entre posturas consequencialistas e deontológicas. Como já se teve oportunidade de tratar em outras oportunidades[2], consequencialismo não diz respeito apenas a consequências econômicas a curto prazo, mas sim à avaliação de todas as consequências, incluindo as não econômicas, bem como as de médio e longo prazo.
Logo, chancelar o acordo Purdue Pharma, no caso concreto, pode ter como consequência imediata a indenização das vítimas, mas pode ter como consequências mediatas a manutenção de um sistema perverso de incentivos, por meio dos quais as companhias se sentem à vontade para delinquir, pois sabem que sempre lhes restará a via do acordo, ocasião em que normalmente terão posições privilegiadas e grande poder de barganha para negociar soluções que sejam “amenas” e que não comprometam de forma significativa a fortuna pessoal dos controladores.
Todos esses debates estiveram presentes, de certa forma, na audiência realizada na Suprema Corte dos EUA no último dia 4, sendo que várias dessas preocupações foram exteriorizadas por alguns Justices. Resta saber agora qual será a decisão final da corte.
Uma coisa é certa: a decisão transcenderá o caso concreto. Muito mais do que um veredito sobre a compatibilidade do acordo com o Direito Falimentar, o que está em jogo é a validade de um sistema de sinalizações e incentivos que reforça o capitalismo selvagem e a delinquência corporativa, bem como confere proteções especiais aos mais ricos e poderosos.
[1] COFFEE JR., John C. Corporate Crime and Punishment. The Crisis of Underenforcement. Berrett-Koehler Publishers, 2020.
[2] Ver, por todas, FRAZÃO, Ana. Consequencialismo inconsequente. Jota. https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/constituicao-empresa-e-mercado/consequencialismo-inconsequente-15062022