A indisponibilidade do interesse público, arraigada em doutrina norteada pela potestade pública, cujos resquícios permaneceram no modelo de administração burocrática, por longo período serviu de fundamento para entraves ao avanço da autocomposição na Administração Pública. O atual cenário normativo impôs a superação dos aludidos paradigmas no plano teórico, mas a concretização dessa guinada em termos práticos depende de esforços para a implementação de uma cultura que valorize a administração consensual.
A evolução do modelo de administração pública burocrático para o gerencial, inspirado na Nova Gestão Pública, redesenhou a relação entre as esferas pública e particular. O movimento, que se evidencia em solo pátrio desde sua introdução no Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado de 1995 e, no plano constitucional, desde a positivação do princípio da eficiência, reconfigurou o Estado não apenas para acolher práticas privadas voltadas à eficiência sob o prisma da racionalidade econômica, mas também para incorporar na acepção de governança pública a racionalidade discursiva, como nos atos de “governar por contrato”, cunhados por Jean-Pierre Guadin[1], ou contratualização da ação pública, conforme a doutrina de Jacques Chevallier[2].
Na Administração Pública consensual, a democracia administrativa é pautada pela participação do particular no processo decisório, bem como pela priorização do diálogo na solução de conflitos. Os métodos adequados de solução de conflitos, sob a ótica da Nova Gestão Pública, passam a ser vistos como essenciais à produção dos resultados almejados pela ação administrativa. No Brasil, embora a influência de paradigmas obsoletos tenha atrasado a concretização dessa perspectiva, as inovações do Código de Processo Civil de 2015 referentes à promoção dos métodos adequados de resolução de conflitos também instaram o legislador a fomentar a adoção desses métodos na Administração Pública.
Com esse espírito, a Lei 13.140/2015 admitiu a atuação de câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos em controvérsias entre particulares e pessoas jurídicas de direito público, nos casos previstos no regulamento, inclusive em casos de recomposição de equilíbrio econômico-financeiro de contratos administrativos (art. 32, inciso II, e § 5º), bem como a mediação coletiva de conflitos relacionados à prestação de serviços públicos (art. 33, parágrafo único). No âmbito da União, promoveu, ainda, modificações na Lei 9.469/1997 para prever a criação de câmaras especializadas com o objetivo de analisar e formular propostas de acordos ou transações e afastou o limite de R$ 100 mil para a celebração de acordos, permitindo a fixação de outro montante máximo em regulamento[3].
Ainda no âmbito do Direito Público, a Lei 13.988/2020 admitiu, no âmbito da União, a transação resolutiva de litígio relativo à cobrança de créditos tributários ou não tributários, com a (i) concessão de descontos em multas, juros e encargos legais relativas a créditos irrecuperáveis ou de difícil recuperação; (ii) o oferecimento de prazos e formas de pagamentos especiais, incluídos o diferimento e a moratória; (iii) o oferecimento, a substituição ou a alienação de garantias e de constrições; e, com as inclusões da Lei 14.375/2022, (iv) a utilização de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa de Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); e (v) o uso de precatórios ou de direito creditório com sentença de valor transitada em julgado para amortização de dívida tributária principal, multa e juros.
A transação referente a créditos tributários da União tem se amadurecido sobremaneira na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). Essa experiência pode fornecer subsídios para o tratamento da dívida ativa das autarquias e fundações e de créditos não tributários da União passíveis de negociação, inclusive para estruturação de critérios uniformes no âmbito do ente público e para viabilizar negociações da integralidade de créditos geridos pelos órgãos da Advocacia-Geral da União (AGU) existentes contra devedores cuja capacidade de pagamento não é suficiente para liquidar todo seu passivo.
A negociação de ações judiciais para encerrar, mediante negociação, ações judiciais, ou prevenir a propositura delas, relativamente a débitos da União, disciplinada na Portaria PGU 11, de 8 de junho de 2020, inclusive com a previsão de Planos Nacionais de Negociação, também é medida com pleno potencial de ampliação em diversas matérias de Direito Público, para além do campo de atuação da Procuradoria-Geral da União. Propostas de acordo padronizáveis em matérias litigiosas tendem a solucionar de modo célere questões pacificadas na jurisprudência e a colaborar com a redução do sobrecarregamento do Poder Judiciário, o qual somente eleva custos para o próprio ente público.
Na evolução do tratamento consensual dos litígios na Administração Pública, o Tribunal de Contas da União (TCU) deu um sinal inequívoco dessa tendência ao criar a Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos (SEcexConsenso), que já vem apresentando resultados concretos e de alto impacto para a sociedade.
Atualmente, como se vê, os principais desafios para a consolidação de um modelo autocompositivo na Administração Pública não mais decorrem do plano legal, nem dos paradigmas teóricos que prevalecem na doutrina jurídica. A postura da Administração Pública em incorporar a perspectiva gerencial na dimensão regulamentar é essencial para que o potencial dos métodos adequados de solução de conflitos se converta em substanciais ganhos de eficiência.
A instituição da Rede Federal de Mediação e Negociação (Resolve) pelo Decreto 12.091, de 3 de julho de 2024, é mais um passo relevante para estimular a consensualidade na Administração Pública. A proposta surge com o objetivo de alçar a mediação e a negociação a política institucional prioritária de atuação dos órgãos contenciosos, bem como de estimular a formulação e melhoria da execução de políticas públicas com fundamento em procedimentos de mediação e atividades de negociação.
A Resolve possuirá um comitê gestor para promover, apoiar e acompanhar a implementação e desenvolvimento de suas atividades, e integrará as unidades setoriais de mediação como a Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal, as câmaras especializadas e os comitês de resolução de disputas, inclusive os referentes a controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis em contratos administrativos.
A Advocacia-Geral da União, como órgão central da Resolve, terá incumbências de viabilizar a atuação estratégica da Administração Pública federal nos procedimentos autocompositivos, fomentar a busca de soluções consensuais, promover a articulação entre órgãos, propor indicadores e parâmetros para o monitoramento gerencial da Resolve, monitorar e apoiar atividades das unidades setoriais e realizar ações de capacitação para formação e aperfeiçoamento de técnicas de mediação e negociação, bem como de articulação com outros órgãos correlatos de diferentes entes federativos e esferas do setor público.
O normativo abre margem a parcerias e atos de cooperação com câmaras de mediação ou negociação, ou outros órgãos e entidades que possuam competências nessas matérias, em todas as esferas da federação.
O regulamento originalmente estabeleceu a obrigatoriedade da participação e assessoramento da Advocacia-Geral da União em mediações e negociações que envolvessem a União ou as suas autarquias ou fundações, e a autorização do referido órgão jurídico para o ingresso de órgãos e entidades federais em procedimento de solução consensual no TCU. Essas disposições, porém, foram revogadas pelo recente Decreto 12.119, de 25 de julho de 2024, o qual, embora não dispense a atuação da AGU nas hipóteses disciplinadas na Lei 9.469/1997 e no Decreto n. 10.201/2020, privilegia a celeridade na deflagração de procedimentos de solução consensual no TCU, o qual pode ser iniciado por solicitações formuladas por autoridades máximas de órgãos e entidades federais ou por relator de processo em tramitação no TCU.
Há relevante preocupação da Rede Federal de Mediação e Negociação em (i) capacitar unidades para a implementação de soluções consensuais; (ii) sistematizar procedimentos referentes à mediação e negociação na Administração Pública, incorporando boas práticas e promovendo intercâmbio de informações sobre mediação e negociação; e (iii) identificar entraves no âmbito das unidades setoriais.
Esse modelo de gestão destinado à organização, promoção e aperfeiçoamento da consensualidade na Administração Pública se alinha às experiências internacionais. Nos Estados Unidos, a introdução de um modelo consensual na Administração Pública, por meio do Administrative Dispute Resolution Act (ADRA), em 1990, e sua consolidação permanente em 1996, já previam um especialista em resolução de conflitos designado por cada órgão e o enfoque na capacitação dos profissionais em técnicas autocompositivas.
Em 1998, foi criado em nível federal, naquele país, um órgão intergovernamental para coordenar os esforços para promover o uso dos métodos alternativos de solução de conflitos. Os resultados do monitoramento da evolução do instituto foram relatados em 2000, 2007, 2016 e 2021.
Os estudos são relevantes para a experiência brasileira, que tem dado os primeiros passos para implementar a cultura da consensualidade na Administração Pública. A título de exemplo, métodos alternativos como os minitrials e a atuação de ombudsmen em cada órgão, ainda pouco presentes na tradição nacional, figuram como práticas recomendadas que evoluíram no sistema norte-americano.
A determinação de períodos fixos para a consolidação de relatórios referentes às percepções de evolução dos mecanismos de solução consensual de conflitos também foi uma prática recomendada para a percepção de avanços e identificação de possíveis melhorias no sistema autocompositivo da Administração Pública. Medidas como a introduzida no Brasil por meio da instituição da Resolve, como o acompanhamento da matéria em nível interministerial, são apontadas como imprescindíveis.
A Resolve surge na expectativa de inserir na prática da Administração Pública federal o paradigma da consensualidade. Uma atuação que possua como norte o estabelecimento de coerência sistêmica, a ampliação do escopo dos métodos adequados de solução de conflitos e a constante interlocução com os órgãos dos quais se originam para identificação de oportunidades de solução consensual, inclusive preventivas, é essencial para que se logre a eficiência almejada e se consolide, na Administração Pública brasileira, a percepção das vantagens desse modelo.
[1] GAUDIN, Jean-Pierre. Gouverner par contrat: l’action publique en question. Paris: Presses de Sciences Politiques, 1999.
[2] CHEVALLIER, Jacques. Le droit administratif entre science administrative et droit constitutionnel. Curapp. Le droit administratif en mutation. Paris: Presses universitaires de France, 1993.
[3] Atualmente, o Decreto 10.201/2020 admite acordos inclusive superiores a R$ 50 milhões, desde que haja prévia e expressa autorização do Advogado-Geral da União e do Ministro de Estado a cuja área de competência estiver afeto o assunto.