O Supremo Tribunal Federal formou maioria para afastar a atual interpretação do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que condiciona a responsabilização civil das plataformas digitais à existência de ordem judicial prévia para a remoção de conteúdos ilegais.
Ainda que o julgamento esteja em curso, já se formou maioria para superar esse modelo: os ministros Luiz Fux e Dias Toffoli, relatores, votaram pela inconstitucionalidade do dispositivo; os ministros Gilmar Mendes, Edson Fachin, Flávio Dino e Luís Roberto Barroso defenderam em diferentes graus uma nova interpretação conforme à Constituição. Apenas o ministro André Mendonça votou até agora pela plena constitucionalidade do artigo.
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A questão central — e que deve guiar qualquer redirecionamento normativo — é que o Brasil é parte de tratados internacionais de direitos humanos que impõem condições estritas à limitação da liberdade de expressão.
Tanto o artigo 19.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos quanto o artigo 13.2 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos exigem que qualquer restrição à liberdade de expressão esteja previamente fixada em lei, seja necessária para proteger fins legítimos (como direitos de terceiros ou a ordem pública) e seja proporcional ao objetivo pretendido.
Essas cláusulas foram concebidas justamente para evitar soluções casuísticas, abertas ou improvisadas — e têm aplicação obrigatória no direito brasileiro, com status supralegal.
O afastamento da literalidade do artigo 19 do Marco Civil, sem nova definição legal aprovada pelo Congresso Nacional, tenciona esse arcabouço. Independentemente de se optar por uma declaração de inconstitucionalidade ou por uma interpretação conforme, o fato é que se estabelecerá uma nova regra de responsabilização sem a chancela do legislador. Isso compromete o princípio da legalidade — não apenas no plano interno, mas também diante do direito internacional.
Jurisprudências internacionais reforçam essa exigência. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), por exemplo, já afirmou reiteradamente que a legalidade é o primeiro filtro de validade das restrições à liberdade de expressão. No caso Herrera Ulloa vs. Costa Rica (2004), declarou inválida uma sanção baseada em norma penal genérica e ambígua.
Em Kimel vs. Argentina (2008), reafirmou que a previsibilidade e a clareza da norma são condições indispensáveis à sua legitimidade. E nos Princípios de Joanesburgo sobre Liberdade de Expressão e Segurança Nacional (1995), adotados por relatores da ONU e de sistemas regionais, enfatiza-se que nenhuma restrição é válida se não estiver prevista em lei precisa e acessível.
Mesmo reconhecendo que as plataformas exercem um papel ativo na mediação de conteúdos — muitas vezes amplificando discursos nocivos —, isso não autoriza uma responsabilização jurídica sem base legal clara. A tendência, nesses casos, é o chamado chilling effect: o receio de sanções leva à remoção excessiva de conteúdos legítimos, prejudicando o pluralismo e o debate público.
A democracia exige que o combate à desinformação e à violência no ambiente digital seja feito com instrumentos legítimos — e não com atalhos. O Congresso Nacional tem competência para rever o marco normativo. Mas enquanto isso não ocorre, o Judiciário deve se conter nos limites de sua competência. Criar, por via jurisprudencial, uma nova regra de responsabilização pode parecer funcional, mas é institucionalmente errado.
Nos termos do direito internacional, não basta que uma restrição à liberdade de expressão seja razoável ou bem-intencionada. Ela precisa estar prevista em lei. Fugir desse princípio é abrir mão da previsibilidade, da transparência e, no limite, da própria legitimidade democrática.