De volta para o futuro da transição energética

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Depois de um “sabático” de seis meses, retomo o espaço de uma coluna regular sobre energia, agora no JOTA. Neste artigo inaugural, abordo um tema que me é muito caro: a renovação das concessões de eletricidade, objeto do recentemente publicado Decreto 12.068/2024. Sem ser exaustiva, pretendo discutir aqui alguns pontos simples. Uma análise cuidadosa demanda espaço maior e mais apropriado.

Viés de alta

Tempo. O decreto tardou, mas não falhou. Propõe uma regulamentação de diretrizes para a renovação das concessões de distribuição de eletricidade com tempo suficiente para recepcionar mesmo o processo da EDP ES, cujo termo final é julho do próximo ano. A economia política não permitiu maior antecedência.

As condições ainda precisam ser desenhadas com mais acuidade para melhor compreender os riscos para a maior parte das companhias. Mas no capítulo da instrução processual o decreto apresenta um calendário factível, com tempos e movimentos estabelecidos e limites aplicáveis ao próprio Executivo, o que é sempre bem-vindo. Ademais, permite a adesão de outras distribuidoras cujos contratos não estejam a vencer, mas que considerem o novo compacto atraente. Esse foi o caso de Enel e Light, que aderiram ao contrato desenhado em 2015. Falta só implementar!

Também na perspectiva de mitigar riscos, o decreto traz para o Executivo o processo de estabelecer as condições para uma eventual prorrogação. Alguns dos requisitos são bem-vindos e no geral atendem a anseios da sociedade, mobilizada pelo conceito de uma transição energética justa. Não menos importante, a proposta não conflita com a tendência inarredável de avanço da liberalização. E cria condições para que as distribuidoras exerçam outras atividades empresariais e ofereçam novos serviços aos usuários.

Faz opção quase explícita pela prorrogação sujeita ao atendimento de conjunto de critérios, que incluem qualidade e sustentabilidade econômico-financeira. Companhias com desempenho adequado – de acordo com os critérios a serem estabelecidos na regulamentação e no termo aditivo ao contrato de concessão – poderão renovar seus contratos por igual período de 30 anos.

Acolhe explicitamente incentivos para a adoção de novas tecnologias, investimentos em modernização e estímulos à digitalização gradual de redes e medidores. A manifestação explícita nesse tema é muito importante, pois emana do Poder Concedente o comando para investir em modernização, rumo ao conceito do Operador do Sistema de Distribuição (o DSO, da sigla em inglês). O decreto prevê ainda que diretrizes do Ministério de Minas e Energia deverão balizar esse processo.

Também coerente com modernização, o decreto sinaliza preocupações com resiliência. Adaptações regulatórias para recepcionar o tema ainda são difíceis de entender e implementar. As ameaças à resiliência em decorrência de eventos extremos na escala e frequência em que se está experimentando são fenômenos novos e pouco compreendidos ao redor do globo. Mas sua importância é atestada pela pesquisa de Percepção de Riscos Globais 2023-2024 do Fórum Econômico Mundial. Os resultados apontam eventos climáticos extremos como o risco de impacto mais severo no longo prazo.

A regulamentação e inclusão explícita da resiliência na agenda do setor contribuem para garantir condições para fazer os investimentos custo-efetivos e com foco no critério distributivo. Os dashboards desenvolvidos pelo FGV-CERI contribuem para análises de alta resolução (granularidade), que chegam a trazer informações para cada conjunto elétrico. E se o foco ainda for justiça, o Índice de Vulnerabilidade Social do FGV-CERI (IVS CERI) permite entender como as pessoas são afetadas no nível do setor censitário. Ou seja, se o objetivo for promover ET justa e inclusiva, há instrumentos para focar investimentos em quem mais precisa.

Coerente com o que escrevi reiteradas vezes em minha coluna no Broadcast, festejo a inclusão explícita da separação de fio e energia. Estamos diante do fim de um ciclo na indústria de eletricidade e início de outro. Tal como na ET, esse processo é lento e com sobreposição entre a arquitetura anterior e a nova.  Os primeiros 30 anos das concessões foram um período de regulação por incentivos em que o mecanismo de price cap resolvia (quase) tudo.

Mas a abertura de mercado – muito incentivada por arbitragem regulatória – transfere custos, não raro em desfavor de quem pode menos. No caminho da descentralização, o net energy metering (NEM) sobrerremunera a energia injetada. O mecanismo teve méritos por introduzir nova tecnologia; porém, sua maturidade não tem sido acompanhada de redução de incentivos (não supreendentemente).

O novo ciclo da distribuição, que tem no DSO o seu centro, requer condições para estrutura hígida em que a prestação dos serviços de rede é monopólio natural, mas a comercialização não. O decreto prevê que as concessionárias de distribuição realizem a “separação tarifária e contábil das atividades de comercialização regulada de energia e de prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica, conforme prazos e diretrizes estabelecidos pela Aneel, assegurado o equilíbrio econômico-financeiro”.  Melhor assim. Os contratos já contemplarão essa previsão, cuja operacionalização vai se dar com o tempo. Mas está lá.

Positivo também reconhecer necessidade de flexibilização e avanço nos mecanismos tarifários, permitindo ao regulador definir tarifas em função de critérios técnicos, locacionais e de qualidade, a serem aplicados de modo não discriminatório. Áreas mais complexas, com perdas mais elevadas, poderão se beneficiar de mecanismos de incentivos diferenciados.  Experimentação é forma de inovar. Que na regulamentação a Aneel estabeleça caminhos para a transparência e compartilhamento de conhecimento sobre as lições aprendidas com os diversos sandboxes tarifários que versam sobre o tema.

Neutro

O processo: chamando as partes para a mesa, com atuação responsável e transparente.

A regulamentação do Decreto 12.068/2024 e a aprovação de nova minuta de contrato exigirão muito trabalho da Aneel em pouco tempo. Aqui vai uma reflexão inspirada no passado. No tempo em que integrei a diretoria, a ABRADEE protocolou (encaminhou formalmente) documento em que apresentava visão algo articulada sobre problemas, pontos de atenção e demandas para o ciclo de revisões tarifárias periódicas que estaria por vir.

Privatizadas em grande medida na segunda metade da década de 1990, as distribuidoras já tinham enfrentado um primeiro ciclo no qual a agência aprendeu fazendo – trocou o pneu com o carro andando. Nos idos de 2000, o regulador já era mais capacitado, com espírito crítico sobre o que tinha dado certo e o que nem tanto.

A diretoria da Aneel, que tinha Jerson Kelman como diretor-geral, estabeleceu um ciclo de reuniões internas regulares com frequência semanal. Naquelas quartas-feiras toda a diretoria se reunia presencialmente por longas horas com as áreas técnicas para avaliar o tema e como avançar. Foi um grande aprendizado, em que se seguia a máxima de que boas ideias não têm pai nem mãe.

Ao longo dos anos recentes mais distribuidoras e companhias do setor passaram para a titularidade privada. O setor se tornou mais complexo. A descentralização do sistema elétrico traz novos participantes, inclusive consumidores de menor porte, que se tornam produtores. As tendências no futuro próximo são de disseminação do armazenamento e, se a regulação incentivar, mais resposta da demanda.

Ainda que o Poder Executivo seja maestro desse processo, com a ajuda da Aneel, vejo espaço para uma proposta articulada que reflita a visão do segmento de distribuição para subsidiar as discussões com governo, regulador e sociedade. A meu ver, é necessário. Mas que seja com discussão ampla e transparente sobre o escopo e a forma do que vai restar de comercialização regulada. Abertura tem que ser bom para quem vai e para quem fica. Dizer que vai ser total é desconhecer a experiência internacional no tema.

A transição energética justa tem na justiça procedimental uma de suas dimensões. Que as discussões sobre a regulamentação e o novo contrato sejam inclusivas. O Decreto 12.068/2024 até prevê mais um ente, a Rede Nacional dos Consumidores de Energia Elétrica. Contudo, se a governança das associações requer atualização, não vai ser suficiente criar mais uma para resolver o problema de representatividade do consumidor.

Minha avaliação de neutro para o processo decorre do fato de que sua condução vai determinar a qualidade do resultado.

Viés de baixa

O comando de igualdade de garantir condições de qualidade em toda a área de concessão não é factível e não cabe no bolso. Não é isso que o consumidor quer, pois a conta vai ser impagável. O que precisa é ter tarifas que reflitam efetivamente a qualidade recebida e percebida. O decreto tem caminhos para isso quando enfatiza a importância dos indicadores de qualidade (duração e frequência de interrupção) como balizadores. Aqui espero evolução, pelo menos na implementação.

Saldo final

O Decreto 12.068/2024 é entrega efetiva do ministro Alexandre Silveira e de sua equipe, que traz avanços importantes. Em retrospecto, vejo que se alinha a nossa visão refletida no livro Concessões no Setor Elétrico – Evolução e Perspectivas, escrito em coautoria com Mario Engler e fruto de projeto de P&D da Aneel junto à EDP. Nossa conclusão é de que a renovação é possível no arcabouço legal vigente. Dever-se-iam estabelecer condicionantes para abarcar quem presta serviço adequadamente. E pavimentar caminho para contratos que reflitam o futuro da distribuição, e não os 30 anos passados.

Ainda há muito trabalho pela frente, principalmente para a Aneel, nas etapas de regulamentação e no desenho do aditivo do contrato. As companhias de distribuição podem ajudar muito compartilhando conhecimento de realidades nas quais têm experiência – muitas já prestam serviços em mercados com pressões e demandas regulatórias de liberalização, digitalização e descentralização. Que o processo seja participativo e transparente.

Nosso futuro é descentralizado e as redes são habilitadoras da transição energética justa, inclusiva e com equidade. Nos cenário das políticas anunciadas (APS) da Agência Internacional de Energia (IEA), mais de 80 milhões de km de redes de transmissão e distribuição são adicionados ou expandidos nas duas próximas décadas. A maior parte desse aumento se dá em economias emergentes e em desenvolvimento.

Para atingir os objetivos assumidos de descarbonização, precisamos contar com boas distribuidoras, prestando bons serviços e fazendo bons investimentos, em redes resilientes. E que atentem para os preceitos de capacidade de pagamento dos usuários (affordability) e competitividade das empresas. Sem isso, as companhias correm o risco de comprometer sua licença social, ficando a mercê de oportunismo político, que se quer evitar. Mas isso é tema para uma próxima coluna.