De volta ao dilema da última palavra na interpretação da Constituição

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Cada vez mais, a presença central do Supremo Tribunal Federal gera incômodos em outros setores da política. Se, no tempo do Mensalão e da Lava Jato, a interferência do Judiciário na política pela via criminal gerou fortes críticas à esquerda, atualmente, em tempos de proeminência do bolsonarismo, tem se intensificado uma crítica conservadora à corte na sua função de controle de constitucionalidade das leis, especialmente quando é chamada a resolver dilemas morais como a descriminalização do aborto ou o uso recreativo da maconha. No passado, essa crítica conservadora, pautada em uma defesa do cristianismo contra a moralidade iluminista laica apregoada pelo Supremo, teve como fruto uma Proposta de Emenda à Constituição objetivando ampliar o acesso do controle de constitucionalidade das leis a instituições religiosas (a PEC 99/2011) e culminou na eleição de um presidente que tinha como bandeira indicar à corte um ministro que fosse “terrivelmente evangélico”.

Hoje, essa crítica atingiu o próprio modelo de controle de constitucionalidade vigente no país. Tivemos notícia de Proposta de Emenda à Constituição que permitiria ao Congresso Nacional derrubar decisões do STF que, na visão dos congressistas, afrontassem a Constituição. Além da possibilidade de transformação da própria dinâmica de controle de constitucionalidade, o parlamento brasileiro também se mostra disposto a atacar decisões específicas da corte, por meio de emendas constitucionais que lhe retirem validade. Foi o que aconteceu como consequência de decisão do STF que proibia vaquejadas, e é o que tem caminhado para acontecer quanto à atuação do tribunal sobre o marco temporal de demarcação de terras indígenas, a descriminalização do consumo da maconha e a descriminalização do aborto.[1]

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O fenômeno de reação do Legislativo a supostas interferências do Judiciário em seu trabalho – no que costuma ser chamado de judicialização da política – é fenômeno conhecido, tanto nas reações a decisões específicas, no chamado backlash legislativo, quanto em configurações institucionais que trazem para o controle de constitucionalidade órgãos outros que não as cortes constitucionais, ou então, que limitam os poderes dessas cortes. Isso nos leva de volta a um debate que, a meu ver, em vão, muitos autores tentaram dar por superado: o debate a respeito de quem deveria ter a última palavra sobre o significado da Constituição.[2] Diferentes respostas a essa questão levam a diferentes modelos de controle de constitucionalidade, que podem indicar que, dentro da clássica tripartição de poderes, essa última palavra pertence a instituições do Judiciário, do Legislativo, do Executivo, ou ao próprio povo a ser consultado diretamente sobre o tema.

As perspectivas que delegam o controle de constitucionalidade diretamente ao povo, ou apostam na supremacia do poder Executivo não serão discutidas aqui. Para a presente apresentação, interessa focar o conflito que nos diz respeito mais diretamente, entre as interpretações constitucionais do Judiciário, via STF, e do Legislativo, via Congresso Nacional ou uma de suas casas. Neste texto, apresento embasamentos teóricos para essas duas opções de última palavra em controle de constitucionalidade, judiciária ou parlamentar, que vincularei aos ideais políticos liberais e republicanos, com seus fundamentos e consequências. A tese liberal sustentaria a última palavra da corte constitucional, com a supremacia do STF nas decisões de controle de constitucionalidade. Já a tese republicana, daria respaldo a críticos que entendem que essa última palavra deveria ser do Poder Legislativo, sustentando o exercício dessa função no Congresso Nacional. Para minha argumentação, irei me embasar nas diferentes visões sobre a política, os direitos e a democracia que derivam das teorias políticas liberal e republicana, representadas nas visões sobre o controle de constitucionalidade de Ronald Dworkin e Richard Bellamy.

Dworkin aparecer como principal arauto de um controle de constitucionalidade judicial – ou, ao menos, politicamente independente[3] – decorre de sua relação com o liberalismo político americano e a forma como ele se entende, de alguma forma, seguidor do grande expoente intelectual do pensamento liberal americano do final do século passado, John Rawls. Ainda que não haja dúvidas de que Dworkin seja um democrata e ainda que não haja dúvidas de que ele não tem problemas com o amplo debate público sobre questões constitucionais – apenas acha que isso não é uma solução em si mesma – é necessário ter em mente que ele é antes um liberal do que um democrata. Para Dworkin, os direitos garantidores das liberdades individuais têm prioridade perante a deliberação democrática que, por sua vez, só se justifica por sua relação com esses direitos individuais. Trocando em miúdos, as decisões políticas por formação de maiorias não têm valor em si mesmas, mas se sustentam no fato de que seriam a melhor forma de tratar os cidadãos como sujeitos dotados de direitos fundamentais que merecem igual consideração e respeito (DWORKIN, 2011, p. 390-392).

É por isso que, para Dworkin, “a ideia de direitos humanos é mais básica que a ideia de democracia” (DWORKIN in BADINTER; BREYER, 2004, p. 109). Consequentemente, se são os direitos individuais que fundamentam a democracia, não há problema e não é antidemocrático que um fórum de discussão de princípios morais e jurídicos independente da política proteja os direitos dos cidadãos contra a própria política. Logo, um controle de constitucionalidade efetivamente isolado da política ofereceria a vantagem de proteger os direitos fundamentais dos indivíduos contra maiorias políticas eventuais, qualificando positivamente a democracia. Nesses termos, devolver o debate sobre direitos fundamentais a um órgão como o Congresso Nacional não implicaria nenhum ganho real, apenas invertendo a lógica de subordinar a política aos direitos, subordinando, por sua vez, os direitos à política, na contramão de qualquer perspectiva liberal, como a de Dworkin.

Se retomamos sob essa ótica o exemplo das recentes decisões do STF sobre o aborto, ou a descriminalização da maconha, e as possíveis reações do Congresso nacional a elas, fica muito claro que, se se trata, de fato, de um caso de defesa de um direito fundamental, que não pode ser violado pela regra da maioria,[4]  a rediscussão política do direito já protegido pela corte não seria positiva. Em vez de se pensar em uma nova rodada de debate num órgão de natureza legislativa e pautado pela regra da maioria, faria mais sentido, sob a ótica liberal, aperfeiçoar uma instituição que seja capaz de funcionar como fórum de princípios que decida questões relativas a direitos individuais sob a lógica da correção moral e não, por exemplo, sob a lógica da satisfação de maiorias ou da barganha política.

Uma visão completamente diferente emerge quando autores como Bellamy clamam por um constitucionalismo político e não jurídico. Como é comum no uso da tradição republicana contra a tradição liberal, o autor defende que a liberdade humana não deve ser pensada no sentido meramente negativo de evitar a interferência indevida do governo na vida das pessoas, mas sim num sentido positivo de autodeterminação política de uma coletividade. Invertendo a lógica utilizada por Dworkin de justificar a democracia pelos direitos individuais, Bellamy justifica os direitos individuais pela democracia. Segundo o autor, “é apenas quando o próprio povo delibera dentro de um processo democrático que as pessoas podem ser vistas como iguais e aos seus multifacetados direitos e interesses pode ser concedida igual consideração e respeito”. Assim, ele continua, “o sistema de “uma pessoa, um voto” provê os cidadãos com mais ou menos os mesmos recursos políticos” e “decidir pela regra da maioria trata suas opiniões de forma justa e imparcial”. Nessas condições, ele completa, “a competição de partidos nas eleições e nos parlamentos, institucionaliza um balanço de poder que encoraja os vários lados a escutar uns aos outros, promovendo reconhecimento mútuo pela construção de compromissos”. De acordo com essa concepção política, portanto, “o processo democrático é a Constituição” (BELLAMY, 2007, p.5).

Logo, sob essa visão, retirar o debate sobre direitos fundamentais da deliberação política não é uma forma de proteger tais direitos, mas, pelo contrário, de invalidá-los. Afinal, a partir do momento que delegamos a um corpo de juízes a decisão a respeito de uma controvérsia sobre a interpretação desses direitos, a opinião de tais juízes passa a ter mais peso que a dos demais cidadãos, corrompendo o ideal de igual consideração e respeito por todos e de liberdade republicana como possibilidade de não ser dominado por determinado grupo – a consequência, nesse caso, seria ser dominado pelo grupo de juízes detentores da palavra final sobre o que significa a Constituição. Sob esta ótica, portanto, o mais justo seria que, como qualquer outro tipo de desacordo que divide uma comunidade política, o desacordo sobre o significado da Constituição fosse discutido e decidido politicamente pelo povo e/ou seus representantes.

Roberto Gargarella ilustra bem essa distinção entre a perspectiva liberal e republicana sobre direitos e democracia, fazendo uso, inclusive da perspectiva dworkiniana para ilustrar a vertente liberal. Segundo ele, para Dworkin, os direitos devem ser vistos como “trunfos” contra qualquer perspectiva de melhoria social por parte da coletividade. Já para os republicanos, a relação se inverteria: os direitos encontrariam limites justamente nas políticas de bem-estar coletivo. Garagarella explica que isso seria consequência das principais ameaças políticas identificadas por essas duas tradições. Do lado do liberalimo, essa ameaça seria a “tirania da maioria”, contra a qual seria fundamental proteger um conjunto de direitos individuais invioláveis, concebendo “a liberdade como “liberdade contra a vontade democrática” – ou seja, como limite, e não como continuidade à política democrática”. O oposto disso é observado na tradição republicana, que, segundo o autor, “busca mais apoiar-se na (do que impor limites à) vontade majoritária”. Isto porque, para essa vertente, a principal ameaça política não seria a tirania da maioria, mas a “potencial ameaça de minorias opressoras”. Diante disso, o republicanismo tenderia “a conceber a liberdade não como liberdade contra as maiorias, mas como consequência do autogoverno da comunidade” (GARGARELLA, 2008, p. 201-202).

Acredito que, não obstante a passagem do tempo, as críticas mútuas, e as eventuais tentativas de embasar normativamente um diálogo entre os poderes,[5] o embate acima descrito entre o liberalismo e republicanismo ainda nos fornece o principal substrato normativo sobre como pensar o controle de constitucionalidade das leis. Se a crítica republicana estiver correta e a lógica liberal que subjaz ao desenho de um tribunal de controle de constitucionalidade de tipo jurídico for tida como afronta à democracia, a melhor alternativa é devolver esse controle às instituições propriamente políticas. Contudo, se são os liberais que estão corretos quando entendem ser um arranjo institucional positivo possuir uma corte constitucional politicamente independente, a alternativa que resta é aprofundar as dimensões do trabalho dessa corte que dariam a ela as virtudes esperadas pela teoria normativa liberal, que seriam a independência política e a capacidade de emitir bons juízos sobre questões atinentes a direitos fundamentais.

Portanto, ainda que essas instituições políticas e jurídicas possam interagir no controle de constitucionalidade e, muitas vezes, o façam, seja de forma ríspida ou amistosa, é importante ter em mente que existem, por trás desse diálogo, embasando o funcionamento de cada uma dessas instituições, diferentes tradições políticas que oferecem diferentes retratos e fundamentos para a relação entre a democracia e os direitos humanos. Por conseguinte, tais tradições fundamentam diferentes visões sobre como decidir os casos em que as próprias noções de democracia e direitos humanos estão em xeque, isto é, os casos em que o que está em jogo é a correta interpretação da Constituição.

Referências

BADINTER, Robert; BREYER, Stephen (eds). Judges in Contemporary Democracy. New York/London: New York University Press, 2004.

BELLAMY, Richard. Political Constitutionalism: a republican defense of the constitutionality of Democracy. Cambridge: Cambridge University Press. 2007.

DWORKIN, Ronald. Justice for Hedgehogs. Cambridge/London: Belknap Press of Harvard University Press, 2011.

GARGARELLA, Roberto. As teorias de justiça depois de Rawls: um breve manual de filosofia política. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

MENDES, Conrado Hübner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. Tese de doutorado. Curso de Ciência Política, Departamento de Ciência Política da faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.

[1] Nesse sentido ver: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/pec-que-permite-derrubada-de-decisoes-do-stf-e-protocolada-na-camara/#:~:text=Com%20a%20assinatura%20de%20175,do%20Equil%C3%ADbrio%20Entre%20os%20Poderes. Acesso em 01/10/2023.

[2] Partidários de uma ideia de “diálogos institucionais” entre instituições diversas no controle de constitucionalidade, por exemplo, entendem que, ainda que seja necessário estipular uma “última palavra provisória” no controle de constitucionalidade das leis, este seria, “um mero detalhe”, para o qual “não há resposta de princípio geral e abstrata” (MENDES, 2008, p. 203). Conforme ficará mais claro adiante, meu argumento é de que há sim resposta de princípio geral e abstrata para a pergunta e que a questão continua central, mesmo que se adjetive tal palavra final de provisória, o que, por mais realismo que dê ao debate, do ponto de vista normativo, tem pouca importância.

[3] Para Dworkin (2011, p. 395-399) esse controle pode ser exercido por uma corte de natureza jurídica, mas não necessariamente. Ele chega mesmo a admitir hipóteses em que um controle de constitucionalidade das leis sequer seria necessário a um país, aditando, contudo, que a história não é pródiga em exemplos de contextos que nos permitiriam abrir mão dele. Ao longo de sua carreira, portanto, o autor pareceu aceitar que é mais importante que essa corte seja politicamente independente do que formada por juristas.

[4] Não adentrarei aqui no mérito dos argumentos das questões que têm suscitado o embate entre Legislativo e Judiciário no controle de constitucionalidade das leis, apenas assumindo que, caso sejam de tipo que justifique o controle de constitucionalidade, podemos conjecturar como deveria ocorrer esse controle e, por conseguinte, refletir sobre a instituição mais apropriada ao exercício dessa função. Além disso, dizer que o controle de constitucionalidade deve ser feito por uma corte constitucional, ou pelo parlamento, não implica aceitar que a corte ou o parlamento farão este controle sempre da melhor maneira, cabendo sempre a possibilidade de, superada a crítica de quem deve realizar o controle de constitucionalidade, adentrar na crítica de se este controle foi feito de forma correta, ou mesmo de se seria realmente um caso no qual caberia o controle de constitucionalidade.

[5] V. nota 2.