Danos morais coletivos em casos de violência doméstica contra a mulher

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Conforme já explorado em uma tríade de artigos publicados nesta coluna[1], o legislador brasileiro, quando da elaboração da Lei Maria da Penha, reconheceu uma faceta transindividual do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres (art. 37, caput, da Lei 11.340/2006[2]).

Nesta perspectiva, para além da utilização de todo o arcabouço normativo do microssistema do processo coletivo existente em nosso ordenamento jurídico (v.g., Lei da Ação Civil Pública, Código de Defesa do Consumidor e inúmeros outros diplomas), um ponto específico a respeito do tema ainda parece não ser discutido com a devida importância em nosso sistema de justiça: a possibilidade do reconhecimento de danos morais coletivos em casos cíveis e criminais envolvendo a temática do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher.

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Portanto, com o objetivo de conferir um olhar ainda mais acurado ao tema sob a ótica da tutela coletiva, a proposta do texto desta semana é muito simples: trazer aos leitores caminhos jurídicos possíveis – sempre a partir de um raciocínio conglobante entre lei, doutrina e jurisprudência – para a postulação pelo Ministério Público e o consequente reconhecimento pelo juízo de indenizações por danos morais coletivos em casos envolvendo a violação de direitos fundamentais de mulheres e meninas em contexto de violência doméstica e familiar.

A análise bifurcada da temática ocorrerá de maneira bifurcada. Inicialmente, sob perspectiva cível e, em um segundo momento, à luz do processo penal.

Violência doméstica contra a mulher e danos morais coletivos em âmbito cível

De acordo com a introdução deste texto, sustenta-se o raciocínio de que a Lei Maria da Penha engloba o microssistema de processo coletivo, sendo permitido, portanto, o seu diálogo com outras fontes, dentre elas, o Código de Defesa do Consumidor.

E é justamente no diploma consumerista que encontra-se previsto um dos fundamentos aptos a reconhecer a existência de danos morais coletivos em nosso ordenamento jurídico. Trata-se do art. 6º, inciso VI, do CDC, o qual prevê expressamente que: “São direitos básicos do consumidor: a efetiva prevenção e reparação de danos patrimoniais e morais, individuais, coletivos e difusos”.

Embora mulheres e meninas vítimas de violência doméstica e familiar não sejam consumidoras na perspectiva em debate neste texto, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é bastante consolidada no sentido de reconhecer a aplicação de um diálogo de fontes a partir de vasos comunicantes entre diplomas normativos e, a partir daí, admitir o a possibilidade da fixação de indenizações por danos morais coletivos em casos envolvendo outros interesses transindividuais para além daqueles salvaguardados pelo CDC.

Nesse sentido, é possível encontrar na jurisprudência do STJ acórdãos admitindo a fixação de danos morais coletivos em casos envolvendo a tutela do meio ambiente[3], o direito ao trânsito seguro[4], a exploração de jogos de azar[5], a proteção ao patrimônio cultural[6], dentre outros. Afasta-se de plano, nos termos da jurisprudência da Corte, o argumento de que indenizações por danos morais coletivos somente poderiam ser fixadas pelo Poder Judiciário em demandas consumeristas.

Ainda, e apenas como reforço argumentativo para sustentar a viabilidade da fixação de danos morais coletivos também em casos envolvendo o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, a própria Corte possui entendimento há mais de quinze anos no sentido de que: “O dano moral coletivo prescinde da comprovação de dor, de sofrimento e de abalo psicológico, pois tal comprovação, embora possível na esfera individual, torna-se inaplicável quando se cuida de interesses difusos e coletivos[7]”. Seguindo essa linha de raciocínio, a ideia central deste texto é absolutamente defensável. Vejamos dois exemplos.

Exemplo 1: Suponhamos que em determinado município brasileiro, o gestor público local oriente as unidades de saúde existentes sob o seu comando, no sentido de não proceder a notificação compulsória em casos de violência contra a mulher, nos termos da Lei 10.778/2003 e, mesmo após as reiteradas tentativas do Ministério Público em solucionar a questão pela via extrajudicial, a situação persiste na localidade. Neste caso, não restará outra saída ao membro do parquet senão o ajuizamento de ação civil pública objetivando regularizar a situação, sendo plenamente possível neste caso, a postulação do reconhecimento de danos morais coletivos em razão da violação do enfrentamento à violência contra a mulher enquanto interesse transindividual.

Exemplo 2: Imaginemos que em determinadas repartições policiais de uma respectiva unidade federação, o atendimento realizado às mulheres vítimas de violência doméstica e familiar não esteja sendo realizado a partir dos parâmetros protetivos mínimos estabelecidos pelo art. 10-A da Lei Maria da Penha (v.g., prestado preferencialmente por servidoras públicas do sexo feminino, não contato entre ofendida e agressor, não revitimização da depoente etc.). Após inúmeras tratativas extrajudiciais promovidas entre o Ministério Público e o governo do respectivo estado, as negociações restaram infrutíferas, não restando outra saída senão a judicialização da questão. Neste caso, dentre os pedidos da ação civil pública, será possível a formulação da condenação do estado em danos morais coletivos.

Em ambos os exemplos, o valor poderá ser revertido para o Fundo Estadual de Direitos Difusos ou para o Fundo Estadual dos Direitos da Mulher (nas unidades da federação onde houver o respectivo fundo).

Portanto, o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher pela via da tutela coletiva perpassa – em determinados casos – pela postulação da condenação da parte demandada ao pagamento de danos morais coletivos.

O tema ainda parece estar em estágio de discussão embrionário em nosso país, porém, na visão deste autor, a medida se apresenta como providencial em âmbito cível, não apenas em termos reparatórios à coletividade, mas – e sobretudo – em razão do caráter pedagógico de eventual condenação aos entes públicos e/ou instituições privadas que negligenciam direitos fundamentais de mulheres e meninas vítimas de violência doméstica e familiar.

Violência doméstica contra a mulher e danos morais coletivos em âmbito criminal

Em âmbito criminal, os Tribunais Superiores reconheceram pela primeira vez, no ano de 2023, a possibilidade de fixação de danos morais coletivos no bojo de processos criminais, também com fulcro no artigo 387, IV, do Código de Processo Penal.

Em maio do referido ano, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Ação Penal 1025, e condenar diversos réus pela prática de crimes contra a administração pública e associação criminosa, ainda impôs aos sentenciados, de forma solidária, o pagamento de R$ 20 milhões a título de danos morais coletivos, em benefício do fundo previsto no artigo 13 da Lei da Ação Civil Pública[8].

Em dezembro de 2023, o Superior Tribunal de Justiça também passou a reconhecer o cabimento da fixação de danos morais coletivos no processo penal. Vejamos o que decidiu à época a 5ª Turma do STJ: “É em tese cabível no processo penal, então, a condenação ao pagamento de valor indenizatório mínimo por danos morais coletivos, nos termos do art. 387, IV, do CPP, cabendo às instâncias ordinárias a tarefa de aferir se tais danos realmente ocorreram[9]”.

De lá pra cá, a jurisprudência do STJ se consolidou nesse sentido, admitindo a fixação de danos morais coletivos em casos envolvendo a violação de bens jurídicos coletivos (v.g., saúde pública, moralidade administrativa etc.)[10].

Assim, uma vez cabível o reconhecimento de danos morais coletivos no processo penal, seria possível a sua fixação em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher? Este autor entende que, excepcionalmente, sim, e para defender esta posição, será necessário destrinchar o assunto.

Segundo o STJ, o dano moral coletivo ostenta caráter autônomo, “revelando-se independentemente de ter havido afetação a patrimônio ou higidez psicofísica individual[11]”. Ainda, sua caracterização é deduzida in re ipsa, dispensando-se a necessidade de comprovação de prejuízos concretos[12], bastando que sejam atingidos de forma intolerável e injusta, “valores essenciais da sociedade de caráter metaindividuais[13].

A partir das referidas premissas delineadas pela Corte, é possível atestar algumas conclusões: a) a caracterização de dano moral individual em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher não inibe, per si, a possibilidade do mesmo fato também caracterizar danos morais coletivos, a depender da magnitude do dano, da extensão de suas consequências e dos valores atingidos para além da esfera individual da vítima determinada; b) não sendo necessária a comprovação do prejuízo concreto, mas tão somente da violação de valores essenciais da sociedade – segundo a interpretação do STJ – é plenamente factível imaginarmos também em âmbito penal que determinado caso atinja o enfrentamento à violência doméstica e familiar enquanto valor transindividual.

Exemplo 1: Suponhamos que em um pequeno e pacato município com aproximadamente 3.000 habitantes, um homem pratica um feminicídio contra sua esposa, mediante o desferimento de inúmeros golpes de faca, na única e principal da rua asfaltada da cidade, em plena luz do dia e em frente à Delegacia de Polícia, local onde a vítima havia se dirigido para requerer medidas protetivas de urgência.

Exemplo 2: Em um município pequeno, com aproximadamente dois mil e quinhentos habitantes, um homem (adulto) se dirige até um evento festivo na cidade e, percebendo que sua ex-esposa encontra-se sob o efeito de álcool e incapaz de resistir, a arrasta mediante o uso de força física para o seu carro e pratica, mediante o uso de violência e grave ameaça, conjunção carnal não consentida (art. 217-A do Código Penal – estupro de vulnerável). Não satisfeito, o autor da violência sexual filma a prática do delito e compartilha em grupos de whatsapp da cidade em conjunto com dizeres misóginos (art. 218-C do Código Penal).

Para além dos danos morais individuais suportados pelas vítimas (ou seus familiares) nos exemplos mencionados, parece, ao menos na opinião deste autor, que o enfrentamento à violência contra as mulheres enquanto valor transindividual foi atingindo de maneira direta e frontal pelos episódios de violência narrados, sendo possível, em tais casos, a fixação de danos morais coletivos a serem revertidos em prol do Fundo Estadual dos Direitos Difusos ou do Fundo Estadual dos Direitos da Mulher.

Vale ressaltar que, o próprio Direito Internacional dos Direitos Humanos prevê a reparação integral do dano causado às mulheres vítimas de violência como um standard a ser obedecido[14].

Logo, uma vez reconhecida pela própria Lei Maria da Penha em seu art. 37, caput, a existência de uma faceta transindividual do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher, seria possível transportar in utilibus, também no processo penal – e em casos excepcionais –, sempre a partir das balizas traçadas pela jurisprudência STJ, a fixação de danos morais coletivos em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.

Contudo, reitera-se que, em tais ocasiões, o quantum indenizatório reconhecido a título de danos morais coletivos em desfavor do réu não afasta o dever de indenizar a vítima e/ou seus familiares (em caso de falecimento da ofendida) pelo abalo moral suportado.

A magnitude do episódio de violência doméstica e familiar subjacente, seguida da extensão das consequências e dos valores atingidos para além da esfera individual da vítima é que definirá, à luz das métricas do STJ, o cabimento de danos morais coletivos ao caso concreto, tratando-se a questão no processo penal como uma exceção à regra, diferentemente do que ocorre em processos cíveis.

Parece-nos que o aperfeiçoamento do enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher na perspectiva da tutela coletiva decorre de um caminho até então pouco explorado: a postulação de danos morais coletivos.

Espero que tenham gostado.

Até a próxima!


[1] HEEMANN, Thimotie Aragon. Tutela coletiva e combate à violência contra a mulher. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/tutela-coletiva-e-combate-a-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher. Acesso em 03 de setembro de 2025.

[2] Art. 37. A defesa dos interesses e direitos transindividuais previstos nesta Lei poderá ser exercida, concorrentemente, pelo Ministério Público e por associação de atuação na área, regularmente constituída há pelo menos um ano, nos termos da legislação civil.

[3] STJ, AgInt no AREsp n. 2.699.877/MT, relator Ministro Gurgel de Faria, Primeira Turma, julgado em 13/5/2025

[4] STJ, REsp n. 1.908.497/RN, relator Ministro Teodoro Silva Santos, Primeira Seção, julgado em 27/11/2024

[5] STJ, REsp n. 1.464.868/SP, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 22/11/2016

[6] STJ, AgInt no AREsp n. 2.323.422/MG, relator Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 24/6/2024

[7] STJ, REsp 1.057.274/RS, Rel. Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, DJe 26/2/2010

[8] STF, AP 1025, Rel. Min. Edson Fachin, Rel. p/ Acórdão: Min. Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 31/05/2023.

[9] STJ, REsp n. 2.018.442/RJ, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, julgado em 12/12/2023

[10] STJ, REsp n. 2.144.002/MG, relatora Ministra Daniela Teixeira, Quinta Turma, julgado em 18/2/2025

[11] STJ, REsp n. 1.838.184/RS, Rel. Min. Luís Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 5/10/2021

[12] STJ, EREsp n. 1.342.846/RS, Rel. Min. Raul Araújo, Corte Especial, julgado em 16/6/2021

[13] STJ, REsp 1502967/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 07/08/2018

[14] Nesse sentido, é o teor do art. 8º, alínea ‘e’, da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará): “Os Estados Partes convêm em adotar, progressivamente, medidas especificas, inclusive programas destinados a promover e apoiar programas de educação governamentais e privados, destinados a conscientizar o público para os problemas da violência contra a mulher, recursos jurídicos e reparação relacionados com essa violência”.