Da polêmica sobre a cobrança pelas plataformas privadas de licitações

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Importante registrar que as plataformas privadas estabelecem um preço a ser pago por todos os licitantes, seja para uma licitação específica ou para um período determinado, como um ano, trimestre ou seis meses, de acordo com o interesse de cada licitante.

Como registrou, inclusive, o Ministério Público de Contas junto ao TCE-SC, a simples cobrança de “taxa” ao licitante interessado não constitui irregularidade[1]. Realmente, mesmo quando a plataforma é pública e não cobra valores dos fornecedores, obviamente, nada ali é gratuito[2].

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Os custos para implementação e operação são altíssimos, mas a alocação desses custos é transferida para a sociedade como um todo e não para o fornecedor usuário. A título de informação, vale pontuar que o orçamento destacado para o funcionamento do PNCP é de milhões de reais por ano, apenas para sua operação e manutenção!

Não sendo cobrado nada do fornecedor para usar a plataforma, esse custeio é transferido para a sociedade como um todo, em detrimento do cidadão em geral, que não participa de licitação e que muitas vezes vive em condições econômicas precárias.

Trata-se, então, de uma questão econômica de alocação dos custos necessários para que a plataforma funcione. A opção de cobrança aloca esses custos em seus usuários (fornecedores); a opção de gratuidade transfere para terceiros esse custeio, mesmo não sendo eles usuários da plataforma.

Em um país onde não sobram recursos públicos, parece mais justo que os usuários da plataforma, que se beneficiam de sua operação, suportem o seu custeio com taxas/tarifas/mensalidades para participação.

Neste raciocínio, até as plataformas públicas de licitação deveriam cobrar dos fornecedores usuários. Esta opção faz a alocação do custeio para quem é beneficiado pelo serviço, reduzindo o risco de abuso em seu uso. A gratuidade da plataforma apenas contribui para um quadro similar ao representado pela tragédia dos comuns, teoria popularizada por Garrett Hardin[3], permitindo que empresas aventureiras e sem experiência entrem no mercado das licitações, mergulhem preços e posteriormente não forneçam o bem ou serviço nas condições ofertadas.

Podemos aproveitar para fazer uma comparação entre a cobrança nas plataformas para processos licitatórios e nos concursos públicos, pois ambos os contextos apresentam desafios semelhantes: assegurar a participação de interessados genuínos e comprometidos, enquanto se evita a sobrecarga administrativa e a alocação ineficiente de recursos. Assim, esses valores cobrados exercem um papel estruturante na eficiência e qualidade dos processos, promovendo equilíbrio entre inclusão e racionalidade administrativa.

Nos concursos públicos, o pagamento da inscrição cumpre uma dupla função: custear parte do processo seletivo e funcionar como um sinal de comprometimento por parte dos candidatos. Esse “screening”[4] reduz significativamente a participação de indivíduos sem intenções genuínas, concentrando esforços nos candidatos mais aptos e contribuindo para a eficiência administrativa.

De forma análoga, em licitações, a cobrança pelas plataformas incentiva uma participação mais qualificada, restringindo o ingresso de empresas despreparadas ou aventureiras que poderiam comprometer a eficácia e a qualidade dos contratos.

A literatura econômica sobre incentivos e filtragem (screening) destaca que o valor da taxa/tarifa/mensalidade deve ser calibrado de modo a não desestimular os participantes qualificados, mas suficiente para sinalizar o compromisso necessário.

Esse princípio é particularmente relevante no contexto das licitações, onde a gratuidade irrestrita pode levar a fenômenos como a tragédia dos comuns, como vimos acima[5]. Empresas sem capacidade técnica ou com estratégias predatórias podem participar indiscriminadamente, causando distorções como preços artificialmente baixos e descumprimento das obrigações contratuais[6].

Nesse sentido, a cobrança não deve ser vista necessariamente como um entrave à competitividade, mas como uma ferramenta que aprimora o processo seletivo, desde que haja modicidade dos valores a serem pagos. Ao mitigar práticas oportunistas e promover a entrada de licitantes qualificados, as taxas/tarifas/mensalidades reforçam a integridade e a eficiência do sistema. Além disso, ao alinhar os custos de participação aos benefícios esperados, assegura-se uma alocação mais justa dos recursos administrativos e financeiros envolvidos.

A cobrança para a participação em processos licitatórios eletrônicos, inspirada na lógica dos concursos públicos, pode representar uma estratégia para alcançar resultados de maior qualidade e confiabilidade. Essa abordagem, além de promover um ambiente mais equilibrado, contribui para a racionalidade administrativa e para o fortalecimento das contratações públicas como um instrumento de desenvolvimento econômico e social. A reflexão sobre o tema reforça a importância de estratégias bem delineadas para garantir processos inclusivos, eficientes e orientados aos resultados esperados pelo interesse público.

A preocupação com o preço cobrado pelas plataformas privadas se justifica por basear-se na preservação da competitividade das licitações; contudo, deve-se ter certa cautela com o argumento de necessária modicidade, pois, obviamente, como não possuem a alternativa de deslocar seu custeio para a sociedade como um todo, como faz uma plataforma “pública”, as plataformas privadas precisarão cobrar dos fornecedores os custos de sua atuação.

Noutro diapasão, o pagamento como condição para participação representa empecilho à participação na licitação. Assim, surge, naturalmente, a pergunta: não estaria o pagamento da taxa/tarifa se materializando como uma condição habilitatória?

O Tribunal de Contas da União (TCU) exarou o Acórdão 1121/2023-Plenário, de relatoria do ministro Augusto Sherman, dispondo que a cobrança exclusiva por meio de “planos de acesso” sem a opção de pagamento avulso não encontraria respaldo nos requisitos de habilitação estabelecidos na legislação e poderia funcionar como “barreiras artificiais à ampla participação de interessados na licitação”. Vale a transcrição de trecho do relator:

Nesse sentido, lembro que a jurisprudência pacífica desta Corte foi forjada no sentido de não se criarem restrições aos licitantes que importem custos injustificados (a exemplo do Acórdão 769/2013-TCU-Plenário). Com fundamento na Súmula TCU 272, esta Corte tem repelido exigências que impõem aos licitantes incorrer em quaisquer tipos de despesas anteriores à celebração do contrato com a Administração, em virtude da possibilidade de que tais cobranças funcionem como barreiras artificiais à ampla participação de interessados na licitação.

Assim, acolho a conclusão instrutória de que a cobrança exclusiva na forma de “planos de acesso”, sem que a plataforma preveja a possibilidade do pagamento pela participação dos interessados em um único certame (isto é, a participação “avulsa”), em princípio, não encontra respaldo nos requisitos taxativos de habilitação (arts. 27 a 33 da Lei 8.666/1993; arts. 62 a 70 da Lei 14.133/2021)[7]. (Grifos nossos)

A questão posta é relevante, mas não pode ser avaliada sob um enfoque meramente dogmático. Economicamente, para o fornecedor licitante, o pagamento de uma assinatura, mensalidade ou taxa para participação na licitação é na verdade um custo de transação.

Como vimos, os custos de transação são associados à troca de bens ou serviços, excluídos os custos de produção[8], pois, ao usar o mercado, arcamos com gastos para sua operacionalização e tais custos influenciam as tomadas de decisão.

Realmente, como é natural aos custos de transação, sua existência gera um empecilho econômico à participação de um agente no mercado. Contudo, se utilizarmos essa premissa tornaremos inviável o processo licitatório moderno, pois existem e são aceitos diversos outros custos de transação que também funcionam como empecilho econômico à participação no mercado de licitações eletrônicas (e-procurement).

Como analisamos, a criação de um custo de transação não é necessariamente ruim, pois pode evitar um problema grave de abuso, similar ao ilustrado na “tragédia dos comuns”.

Ora, para participar de uma licitação, mesmo em plataforma gratuita, o fornecedor precisa adquirir internet, equipamentos compatíveis, profissionais capacitados a ler extensos editais, impugná-los quando necessário e preparar propostas, por exemplo. Muitas empresas não participam deste mercado por esses custos, porém, via de regra, compreende-se que a assunção deles pelo fornecedor interessado é inerente à participação neste mercado.

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Da mesma forma, assim deve ser compreendida a cobrança para a participação nas licitações; como custo de transação inerentes ao mercado. Obviamente, cobranças de valores excessivos descambarão para disfuncionalidades, mas será que o pagamento de um valor anual, por exemplo, de R$ 2.000 para potencialmente participar de milhares de licitações é um custo disfuncional?

Será que o licitante que se sente impedido de arcar com esses custos tem condições de participar de uma licitação com o poder público, que pode envolver objeto de cifras milionárias? Certamente, não.

O uso de plataformas privadas para a realização de certames licitatórios apresenta tanto vantagens quanto desvantagens, e a administração pública precisa estar ciente dos cuidados e precauções necessários ao adotar essa prática; contudo, a cobrança de taxas/tarifas/mensalidade, desde que razoável, não parece ser o real problema; pelo contrário, a criação deste preço de entrada pode ser um screening para reduzir o problema da tragédia dos comuns que é a participação em licitação a custo zero (ou próximo).

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Este artigo é inspirado em trecho da nova edição, ainda no prelo, de nosso livro Análise econômica das licitações e contratos, publicado pela Editora Fórum


[1] TCE/SC. Nota Técnica nº TC-5/2023.

[2] Lembrando que não existe bem econômico gratuito, sempre há algum custo que é suportado por alguém (ou pela sociedade).

[3] HARDIN, G. (1968). The Tragedy of the Commons. Science, 162(3859), 1243–1248. http://www.jstor.org/stable/1724745.

[4]  CAMELO, Bradson. NÓBREGA, Marcos. TORRES, Ronny Charles L. de. Análise econômica das licitações e contratos: de acordo com a Lei nº 14.133/2021 (nova Lei de Licitações). 2a ed. Belo Horizonte: Fórum, 2024.

[5] DECAROLIS, F. Awarding price, contract performance, and bids screening: Evidence from procurement auctions. American Economic Journal: Applied Economics, 6(1). 2014

[6] QIAO, Y.; CUMMINGS, G. The use of qualifications-based selection in public procurement: a survey research. Journal of Public Procurement, 3(2). 2003

[7] TCU. Acórdão nº 1121/2023 – Plenário. Relator Min. Augusto Sherman.

[8] “[…] na definição do economista Oliver E. Williamson, custos de transação são os custos gerados sempre que um ativo – isto é, um insumo ou produto final – passa de uma interface tecnológica a outra. Contudo, o que significa passar de uma interface tecnológica a outra? Uma interface tecnológica é uma etapa em um processo de produção de um bem ou serviço, considerando processo de produção o fluxo que se inicia desde as primeiras etapas de produção das matérias-primas e se encerra com a entrega do produto final ao consumidor. Desse modo, por exemplo, a montagem do motor de um carro sobre o chassi ou a venda do carro já pronto na concessionária ao consumidor final representariam duas interfaces tecnológicas diferentes, ambas fazendo parte de um mesmo processo de produção: o processo de produção de um automóvel, que somente se encerra com a aquisição do automóvel pelo consumidor. […] Por conseguinte, custos de transação dizem respeito a como serão organizadas essas transferências dos ativos ao longo do processo produtivo (seja um chassi ou um automóvel pronto, nesse nosso exemplo), de forma que elas aconteçam da maneira mais adequada, isto é, com a menor perda de tempo e sem problemas que acarretem atrasos e custos adicionais.” (FIANI, Ronaldo. Economia de empresa. São Paulo: Saraiva, 2015. p. 132).