O setor elétrico brasileiro vive um dos momentos mais complexos e desafiadores de sua história recente. Prever a abertura do mercado de baixa tensão, estabelecer diretrizes para a digitalização da distribuição e a adoção de medidores inteligentes, projetam um cenário de transformação que transcende a dimensão técnica. Trata-se de repensar o papel do Estado regulador, de equilibrar liberdade econômica e proteção social, e de testar a capacidade adaptativa de um setor que, em poucos anos, terá de se reinventar.
O prazo de 2026 revela a magnitude da agenda que se impõe. Em um horizonte curto, será necessário alinhar infraestrutura tecnológica, modelos tarifários, desenho institucional, mecanismos de proteção ao consumidor e governança de dados, em um processo no qual abertura de mercado e digitalização caminham lado a lado.
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O desafio não está apenas na adaptação, mas em transformar essa exigência em oportunidade de modernização, capaz de elevar a qualidade regulatória, estimular a inovação e consolidar um novo patamar de relacionamento entre consumidores, empresas e Estado. Assim, 2026 não deve ser visto como um prazo exíguo, mas como um marco de transição, que convoca o setor a construir soluções com legado para além da mera conformidade normativa.
A aprovação da MP 1300 pelo Congresso, agora à espera de sanção presidencial, reforça o caráter social da agenda ao ampliar a proteção aos consumidores vulneráveis. O texto garante gratuidade de até 80 kWh mensais para famílias de baixa renda e isenta do pagamento das quotas da CDE aquelas com renda per capita de meio a um salário mínimo, para consumo de até 120 kWh/mês. Também simplifica as faixas da Tarifa Social e preserva medidas voltadas à modicidade tarifária, como a divisão de royalties de hidrelétricas, o rateio dos custos de Angra 1 e 2 (exceto para a baixa renda) e a definição de horários especiais para irrigação.
Essas alterações representam um avanço relevante em termos de modicidade tarifária e inclusão social, mas não estão isentas de desafios. Ao redistribuir o custo desses subsídios por meio da CDE, transfere-se o ônus para outros consumidores, o que exige calibragem fina da metodologia de rateio para evitar distorções e garantir previsibilidade de preços. O equilíbrio entre a proteção do vulnerável e a manutenção de sinais econômicos adequados será um teste importante para a Aneel, que precisará definir parâmetros claros e transparentes para a gestão dos encargos setoriais.
Ao mesmo tempo, a retirada de dispositivos que tratavam da abertura de mercado, da autoprodução e das regras de operação do sistema em períodos de escassez desloca o debate para a MP 1304, a ser relatada em novembro. O tempo é curto para um redesenho profundo, e talvez o resultado não alcance a robustez necessária para consolidar um marco definitivo de liberalização.
Ainda assim, esta será a oportunidade para, ao menos, estabelecer diretrizes de transição, reduzir incertezas e sinalizar ao mercado o caminho regulatório a ser seguido. A coerência do desenho será decisiva para garantir que a abertura não se traduza apenas em maior exposição ao risco, mas em competição saudável e eficiente, capaz de gerar valor para o consumidor final.
O desafio está em transformar essa agenda de urgência em oportunidade de modernização: criar mecanismos que alinhem custos e benefícios, definir métricas de mensuração auditáveis e estabelecer regras de transição proporcionais, que respeitem investimentos já realizados. É esse equilíbrio técnico e institucional — e não apenas o cumprimento de prazos — que dará credibilidade ao processo de liberalização.
Até novembro, o setor terá de mostrar maturidade para construir soluções que combinem eficiência econômica e regulatória, segurança jurídica e inovação, evitando que a abertura de mercado se reduza a um experimento apressado e garantindo que ela se converta em um novo patamar de competitividade e inclusão.
A literatura acadêmica oferece pistas importantes. Juliana Melcop Schor, em Abertura do mercado livre de energia elétrica: vantagens e possibilidades do retail wheeling no Brasil, adverte que a liberalização não é fim em si mesma, mas instrumento de política regulatória. O propósito não deve ser “abrir por abrir”, mas redistribuir riscos, corrigir falhas alocativas e incentivar a inovação em serviços energéticos. Sua análise é atualíssima: importa questionar se estamos diante de um projeto consistente de modernização ou de um desenho apressado, arriscado a desestabilizar um setor que depende de previsibilidade de longo prazo.
Já Juliana Villas Boas, em sua dissertação pela FGV, aprofunda a discussão sobre a liberdade de escolha. Para ela, a abertura só é efetiva quando acompanhada de salvaguardas regulatórias robustas. De nada adianta conferir ao consumidor o direito de escolher seu fornecedor se não houver transparência, segurança jurídica e regulatória. A autora provoca: o que significa liberdade de escolha em um setor marcado por profunda assimetria de informação? O consumidor médio raramente dispõe de conhecimento técnico para interpretar contratos de energia complexos. A abertura, portanto, não se resume a estimular a competição, mas a garantir que a competição seja justa e inclusiva.
Nesse debate, a obra de Sérgio Guerra, Teoria do Estado Regulador, oferece enquadramento indispensável. Guerra descreve a transição do Estado intervencionista para o Estado orquestrador, que atua por meio de incentivos, regulação responsiva e coordenação institucional.
No setor elétrico, esse movimento revela um paradoxo: ao mesmo tempo em que abre mão do controle direto sobre a comercialização, o Estado precisa reforçar sua função regulatória sobre os monopólios naturais — como a rede de distribuição — e sobre a qualidade da concorrência. Em outras palavras, a abertura de mercado exige a presença ainda mais ativa do regulador, não para restringir, mas para assegurar que a liberdade econômica produza resultados socialmente desejáveis.
É nesse pano de fundo que a MP 1304 adiciona um vetor de reequilíbrio econômico-regulatório. Ao limitar o crescimento da CDE e, simultaneamente, criar um encargo direcionado aos próprios beneficiários dos subsídios — como geradores com descontos em TUST/TUSD, cooperativas de geração distribuída e projetos incentivados por políticas anteriores —, a medida realinha incentivos e aproxima custo e benefício.
Corrige-se uma falha de mercado típica dos setores de infraestrutura, em que custos sistêmicos e externalidades eram socializados de forma difusa, muitas vezes sem conexão com quem se beneficiava diretamente. O deslocamento do ônus para o beneficiário reduz a regressividade implícita e, se bem executado, abre espaço para modicidade tarifária no médio prazo. O teste decisivo, contudo, será a capacidade de o regulador criar métricas transparentes de “benefício” e regras de transição proporcionais, de modo a proteger expectativas legítimas e garantir estabilidade institucional.
À luz do ótimo regulatório, a virtude da MP 1304 está em aproximar sinal econômico e alocação de custos, sem abandonar a inclusão. Mas o ótimo, aqui, não é uma conta de curto prazo: é um equilíbrio institucional.
Como medidas provisórias admitem emendas, a tramitação legislativa é a oportunidade de refinar salvaguardas — assegurar neutralidade tecnológica na contratação de suprimento, instituir métricas auditáveis para mensurar benefícios e encargos, proteger expectativas legítimas de investimentos já realizados e reforçar a governança de dados que sustentará escolhas informadas. Em setores sujeitos a falhas de competição, bens públicos e assimetrias informacionais, é essa coerência que separa a boa regulação da retórica.
Esse tripé — Villas Boas, Melcop e Guerra — conduz a uma reflexão que transcende o debate técnico. O verdadeiro desafio não é apenas viabilizar a abertura até 2026, mas construir um ambiente regulatório que se aproxime de um ótimo regulatório: um equilíbrio em que liberdade de escolha, inovação setorial, estabilidade institucional e proteção social coexistam de forma harmônica.
A questão central é se estaremos edificando um mercado capaz de gerar valor sustentável para consumidores, empresas e sociedade, ou apenas transferindo responsabilidades sem dotá-las dos instrumentos adequados de governança.
A MP 1.300 e a Portaria 111, nesse sentido, só alcançarão êxito — e a própria MP 1304 cumprirá sua função — se forem entendidas como partes de um projeto maior de consolidação do Estado regulador no setor elétrico: um Estado capaz de equilibrar competição e monopólio natural, inovação tecnológica e justiça social, liberdade econômica e confiança institucional.
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A transição energética não pode ser reduzida à liberalização ou à instalação de novos equipamentos: ela deve ser a construção de um ecossistema no qual digitalização, eficiência e inclusão caminhem juntas.
Abrir o mercado não é simplesmente permitir que consumidores escolham seus fornecedores, mas assegurar que essa escolha seja real, informada e sustentável. Modernizar não é apenas digitalizar a rede, mas transformar dados em ativos de eficiência, transparência e novos serviços.
Regular não é apenas editar normas, mas construir confiança, reduzir assimetrias e promover inclusão. Talvez a verdadeira modernização dependa menos da velocidade dos prazos e mais da qualidade das escolhas regulatórias feitas agora — escolhas que definirão se o setor elétrico brasileiro se tornará referência de resiliência, inovação e justiça social no século 21.