Crianças em risco: a necessidade de adaptação climática nas escolas e cidades

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Na comunidade do Retiro, em Jaboatão dos Guararapes (PE), crianças podem ter salvado inúmeras vidas ameaçadas por eventos climáticos. O programa educacional sobre mudanças climáticas e riscos de desastres, de iniciativa do projeto Dados à Prova D’Água, implementou pluviômetros artesanais de garrafa PET e um aplicativo para coletar dados de precipitação, enquanto crianças aprenderam conceitos práticos sobre mudanças climáticas, mapeando riscos e vulnerabilidades na comunidade. Em maio de 2022, a cidade enfrentou fortes chuvas que resultaram em 64 mortes, porém, em Retiro, não houve registro de óbitos.

O caso ilustra a potência de crianças e adolescentes para responder a um dos desafios mais urgentes dos dias atuais: a adaptação climática nas cidades. Não só por meio da educação ambiental, mas também da infraestrutura escolar, soluções baseadas na natureza, e, principalmente, da agência e participação comunitária, também de crianças e juventudes, em políticas climáticas. Trata-se de um dever constitucional e compromisso assumido internacionalmente pelo Estado brasileiro.

Crimes socioambientais, relacionados a eventos extremos, altas temperaturas e contaminação por poluentes, já são assuntos cotidianos nos noticiários. Nas últimas semanas, inclusive, vem sendo apresentado diuturnamente a tragédia climática que afeta o Rio Grande do Sul. Tal situação nos faz refletir sobre o papel das instituições em garantir os direitos das comunidades mais afetadas, onde vivem crianças, incluindo de populações negras, quilombolas, tradicionais e indígenas, que convivem com o racismo ambiental e as desigualdades sociais, de gênero e geracionais relacionadas.

O Rio Grande do Sul enfrenta uma crise climática sem precedentes em sua história, afetando quase todos os seus 497 municípios. A tragédia tem impactado a vida de milhares de crianças e adolescentes, que tiveram que deixar suas casas e estão desalojadas, além de estarem sem acesso à educação e serviços essenciais. Muitos perderam-se de suas famílias. Essa crise, associada ao déficit de políticas climáticas no estado, representa uma grave violação dos direitos de crianças e adolescentes, que estão sujeitos a uma série de fatores de risco desde o início das inundações.

Em outra região do país, famílias convivem com as consequências de um dos maiores desastres socioambientais da América Latina, em zona urbana, em curso: o desastre provocado pelas atividades de exploração minerária da Braskem, em Maceió (AL). Seis anos após o início do afundamento dos bairros na capital alagoana, crianças e adolescentes seguem sofrendo as consequências do deslocamento compulsório, com impactos profundos em sua educação, saúde mental e convivência comunitária.

Em que pese o preceito constitucional da prioridade absoluta e todos os compromissos internacionais neste sentido assumidos pelo Estado brasileiro, inexistem informações oficiais a respeito de crianças e adolescentes afetados pela tragédia, o que reforça a importância de chamarmos a responsabilidade de todos ao dever de colocá-los no centro do debate das questões ambientais.

O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) mobilizado, em especial, pela situação atual do Rio Grande do Sul, publicou recomendações sobre as medidas emergenciais necessárias para crianças e adolescentes em situação de risco e desastres climáticos. O documento elenca 89 orientações e leva em conta aspectos como educação, saúde, moradia, assistência e informação, considerando os papéis das três esferas de governo em adotar a perspectiva da proteção integral.

O artigo 227 da Constituição Federal de 1988 é o único dispositivo constitucional que contém as palavras “prioridade absoluta”, estabelecendo o dever da família, da sociedade e do Estado em garantir, primordialmente, os direitos fundamentais de crianças e adolescentes, abrangendo aspectos como vida, saúde, educação, alimentação, moradia e convivência familiar.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao detalhar o significado da prioridade absoluta em seu artigo 4º, parágrafo único, estabelece a primazia de crianças e adolescentes para receber proteção e socorro em quaisquer circunstâncias. As circunstâncias de risco ambiental, advindas seja de atividades de empresas como a Braskem, seja de ações e omissões em relação às vítimas de eventos extremos, ameaçam profundamente a vida de crianças e adolescentes, atraindo também o ECA para as situações de vulnerabilidade climática.

Trata-se, assim, de dever constitucional, infraconstitucional e também internacional. A Convenção sobre os Direitos da Criança, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto 99.710 de 1990, em seu artigo 4º, estabelece que os Estados Partes adotarão todas as medidas necessárias para a implementação dos direitos da criança reconhecidos na Convenção.

Por sua vez, o Comitê sobre os Direitos da Criança da Organização das Nações Unidas (ONU), responsável por monitorar o cumprimento da Convenção e de seus Protocolos Facultativos, elabora periodicamente interpretações normativas das provisões de direitos humanos e sua relação com as crianças e adolescentes por meio de Comentários Gerais, unificando o entendimento internacional dos direitos da criança e solidificando parâmetros mínimos de proteção a serem seguidos pelos Estados.

Nesse contexto, o Comentário Geral nº 26, publicado pelo Comitê, trata dos direitos das crianças e o meio ambiente, com especial enfoque nas mudanças climáticas, estabelecendo deveres de Estado, sociedade e empresas para mitigar e adaptar os impactos socioambientais nas presentes e futuras gerações. Segundo o documento, os Estados-membros da Convenção devem, por exemplo, desenvolver planos de adaptação que considerem os fatores de risco, fortaleçam a rede de proteção e promovam ambientes escolares seguros, bem como aumentar a resiliência da infraestrutura, incluindo a escolar, hídrica, de saneamento e de saúde.

É o que corrobora, ainda, o Sendai Framework for Disaster Risk Reduction (Marco de Sendai para Redução de Risco de Desastres, em tradução livre), adotado pelos Estados membros das Nações Unidas. Segundo esse documento internacional, é necessário adotar uma perspectiva holística e centrada nas pessoas na redução do risco de desastres, sendo indispensável que as práticas de redução de riscos contem com a participação ativa das populações mais afetadas. Ainda, é preciso que os setores público e privado integrem o risco de desastres em suas práticas de gestão, enquanto as instituições acadêmicas e científicas trabalham em conjunto para fornecer uma base sólida de pesquisa e conhecimento.

A abordagem centrada nas pessoas, com prioridade absoluta dada às crianças e adolescentes, precisa necessariamente abranger as desigualdades territoriais brasileiras, responsáveis pelo racismo ambiental sistêmico que tem causado tantas tragédias, como as mencionadas neste artigo. Não basta exigirmos adaptação climática, mas sim medidas de adaptação antirracistas.

Diante dos desafios apresentados e das garantias estabelecidas, é crucial priorizar a adaptação nas escolas e em todo o contexto urbano. As políticas educacionais e de planejamento das cidades devem incorporar medidas para garantir a segurança e o bem-estar das crianças diante das crescentes ameaças ambientais. Ao capacitar escolas e comunidades para enfrentarem os desafios climáticos, as crianças não são apenas protegidas, mas também preparadas para serem agentes de mudança. Essa é uma questão de segurança, de justiça social e também de garantia de direitos fundamentais.

Assim, é essencial promover políticas de prevenção e adaptação climática que considerem as  necessidades específicas de crianças e adolescentes, assegurando que suas vozes sejam ouvidas e que suas condições de vida sejam dignas e seguras. Somente com um compromisso firme e ações concretas poderemos enfrentar os efeitos devastadores das mudanças climáticas sobre as gerações atuais e futuras, assegurando que cada criança e adolescente possa crescer em um ambiente seguro e protegido.