Creditamento na PEC 45/2019: o princípio da neutralidade

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Um dos esteios dos tributos sobre valor adicionado (IBS e CBS) propostos na reforma tributária é o sistema de creditamento, que tem como base o princípio da neutralidade tributária.

A neutralidade se fundamenta no desejo de que a tributação não interfira nas escolhas dos agentes econômicos. Para os produtores (neutralidade vertical) é assegurada principalmente pelo mecanismo do crédito e permite a decisão sobre o que produzir e como produzir sem influência da tributação. Para os consumidores (neutralidade horizontal) é garantida pela existência de uma base tributária ampla e uniforme que permita a escolha dos bens de consumo sem que a tributação lhes afaste de sua inclinação natural.[1]

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O principal instrumento da neutralidade é não-cumulatividade, técnica de contabilidade tributária que permite que o valor do tributo incidente sobre cada elo das cadeias de produção e comercialização não se misture com os custos de produção.

Exemplificando, um bem com custo de $ 50, cuja produção não seja em cadeia, tributado em 10%, terá custo de produção de $ 50, custo tributário de $ 5 e custo total de $ 55.

De outro lado, um bem, cuja cadeia de produção tenha de 2 elementos, cada um com valor adicionado de $ 25, tributado em 10%, sem aplicação da técnica da não-cumulatividade, terá custo final de produção de $ 52,50, custo tributário de $ 5,25 e custo total de $ 57,75.

Isso ocorre porque (i) a despesa tributária da primeira operação ($ 2,50) é incorporada ao custo do estoque quando da aquisição pelo segundo integrante da cadeia e aumenta o custo do produto necessário para a realização da sua própria operação e (ii) a segunda tributação incide sobre o valor da primeira ($ 2,50*10%= $ 0,25) e acresce novamente o custo tributário. Deste modo, o produto fica mais caro e a tributação sobre ele é maior.

A não-cumulatividade elimina essas distorções criando uma conta contábil para o custo e outra para o tributo. Quando ocorre a compra, o adquirente recebe o produto e o direito sobre a conta contábil relativa ao tributo devido pelo antecedente, direito este chamado de crédito, e poderá utilizar este direito para abater parte do seu próprio débito. Com essa técnica, ao final da cadeia, é possível garantir que a base de cálculo corresponda à soma das realidades econômicas produzidas e repassar ao consumidor, separadamente, os custos de produção e os custos da tributação.

CADEIA SEM APLICAÇÃO DA NÃO-CUMULATIVIDADE

PRODUTOR 1:

 

VALOR AGREGADO: $ 25,00

CUSTO TRIBUTÁRIO: $ 25,00*10%= $ 2,50

CUSTO TOTAL PRODUTOR 1= $ 27,50

 

PRODUTOR 2:

 

CUSTO DA MERCADORIA ADQUIRIDA: $ 27,50

VALOR ADICIONADO: $ 25,00

BASE DE CALCULO: $ 27,50+ $ 25,00: $ 52,50

CUSTO TRIBUTÁRIO (10%): $ 5,25

CUSTO TOTAL: 57,75

 

CADEIA COM APLICAÇÃO DA NÃO-CUMULATIVIDADE

PRODUTOR 1:

 

CUSTO DE PRODUÇÃO: $ 25,00

CUSTO TRIBUTÁRIO: $ 25*10%= $ 2,50

CUSTO TOTAL PRODUTOR  1= $ 27,50

 

PRODUTOR 2:

 

CUSTO DA MERCADORIA ADQUIRIDA: $ 27,50 (MERCADORIA: $ 25,00, CRÉDITO ADQUIRIDO: $ 2,50

VALOR ADICIONADO: $ 25,00

BASE DE CALCULO (CUSTO PRODUÇÃO): $ 25,00 + $ 25,00= $ 50,00

TRIBUTO A PRIORI AGENTE 2 = $ 50,00*10% = $ 5,00

CRÉDITO AGENTE 2: $ 2,50

TRIBUTO A PAGAR AGENTE 2:  $ 5,00 – $ 2,50= 2,50

CUSTO TRIBUTÁRIO TOTAL (PRODUTORES 1 E 2): $ 2,50+2,50= 5,00

CUSTO TOTAL: 55,00

Nesta estrutura, os créditos do adquirente estão vinculados aos débitos do vendedor e as hipóteses que não geram débitos, como regra, não permitem o aproveitamento de créditos. No entanto, aqui, há uma armadilha: quando existe um benefício que diminui ou impede o surgimento do débito, o não reconhecimento do crédito correspondente retira parte do direito a creditamento de todos aqueles que o sucedem na cadeia e reedita as distorções que o sistema pretendia evitar.

Por essa razão, a neutralidade e a não-cumulatividade possuem um aparente paradoxo: idealmente, a inexistência ou diminuição do débito em determinado elo não deveria repercutir nos demais agentes integrantes da cadeia. Assim, mesmo que a saída tenha sido favorecida (com isenção, por exemplo), o adquirente deveria poder obter o creditamento como se a operação não tivesse sido favorecida.

No entanto, os IVAs possuem função arrecadatória e, por isso, a solução efetivamente adotada pelos sistemas amparados na neutralidade não é a manutenção dos créditos das operações não tributadas, mas sim a limitação de mecanismos que impeçam ou minorem a incidência tributária.

Para isso, os IVAs requerem algum nível de centralização normativa que limite as exceções ao sistema de débito e crédito e centralização administrativa suficiente para uniformizar as normas, a gestão dos creditamento e a devolução dos créditos acumulados.[2]

Isso significa que embora a não-cumulatividade seja um dos instrumentos do princípio da neutralidade,[3] esse é mais amplo e emana diversos outros conteúdos normativos. Exemplificativamente, além da dimensão estrutural referida acima, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia reconhece que o princípio possui uma dimensão substantiva, materializando no campo tributário o direito à igualdade e subsidiando o direito à dedução e o princípio da eficácia das deduções,[4] além de função de orientação interpretativa, especialmente para coibir limitações desproporcionais ao direito ao creditamento[5] ou, de outro lado, abuso do direito ao creditamento.[6]

Na versão do PEC nº 45/2019 oriunda do Senado, o princípio da neutralidade foi inscrito no art. 156-A, § 1º e o sistema de creditamento especificado no inc. VIII que prevê a compensação do imposto devido pelo contribuinte com o montante cobrado sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem, material ou imaterial, inclusive direito, ou serviço, excetuadas exclusivamente as consideradas de uso ou consumo pessoal, nos termos da lei complementar, e as hipóteses previstas na própria Constituição.

O texto guarda diversos desafios, como a exigência da condição de contribuinte para o aproveitamento do crédito, a vinculação do crédito às aquisições próprias, a amplitude dos créditos aproveitáveis – por exemplo, despesas com reparação de atividades ilícitas serão dedutíveis? – e os limites da liberdade do legislador complementar para definição de uso ou consumo pessoal.

Longa será a caminhada até a estabilização de um regime jurídico sobre os novos tributos, mas a experiência internacional e uma aproximação entre o Direito e os conceitos contábeis poderão tornar o percurso mais leve.

[1] VASQUES, Sérgio. O imposto sobre o valor acrescentado. Coimbra : Almedina.2015. MOREIRA, André Mendes. Neutralidade, valor acrescido e tributação. 3ª ed. – Belo Horizonte : Fórum, 2023.

[2]  Embora os IVAs exijam certa centralização normativa e administrativa, o modelo proposto pela PEC nº 45/2019 – inspirado em grande medida no modelo adotado pela Índia – não é o único existente. Para compreender o sistema adotado na União Europeia, ver GALLARDO, Francisco Javier Sánchez. IVA e neutralidade na União Europeia. In Santi, Eurico Marcos Diniz de. Coelho, Isaías. et al. Reforma tributária e neutralidade do IVA. – São Paulo: Editora Max Limonad, 2023. p. 27-64.

[3] CASTELLO, Melissa Guimaraes. p. 21. Um novo IVA? Os tributos sobre o consumo e a economia digital. 1 ed.  – São Paulo : Noeses, 2021.

[4] Por exemplo, no Acórdão Ryanair (C-249/17) o TJUE entendeu que o “direito à dedução permanece adquirido mesmo que, posteriormente, a atividade económica projetada não tenha sido realizada”. Disponível em: <https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=206858&pageIndex=0&doclang=fr&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1500704>.

[5] Por todos, ver o Acórdão Biosafe (c-8/17). Disponível em: <https://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=200962&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=1864097>.

[6] Essa posição foi adotada expressamente no Acórdão Halifax (C-255/02). Disponível em: <https://curia.europa.eu/juris/showPdf.jsf?docid=56198&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=605911>.