CPR e CDCA no crowdfunding: potencial e cuidados regulatórios

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A agroindústria é um dos setores do país que mais depende de financiamento externo, dados os longos ciclos de produção/comercialização das safras. Rotineiramente, produtores rurais têm demanda para antecipar os recursos de vendas futuras para arcar com despesas de insumos da (ou investimentos à) atividade. Esse descasamento de fluxo de caixa, somado à exposição a oscilações de moeda e preço das mercadorias, resultam em um relacionamento bem próximo da agroindústria com o setor financeiro.

Hoje em dia, o Plano Safra é a principal fonte de financiamento da agroindústria, com previsão de linhas em até R$ 550 bilhões ao setor empresarial para 2024/2025 (aumento superior a 25% em relação ao ano anterior). Essas são linhas de crédito rural com taxas menores do que as habitualmente contratadas no mercado – na prática, um custo arcado pelos cofres públicos e justificado politicamente pela qualidade estratégica do setor.

Para além desse incentivo direto do governo federal, o agronegócio também depende de duas fontes de financiamento privado.

Primeiro, financiamento via crédito bancário. Além do interesse natural das instituições bancárias pelo setor, o Estado também estimula a concessão de crédito através de (i) incentivos econômicos que barateiam esses empréstimos, como a viabilidade de bancos emitirem LCAs (títulos lastreados em operações de crédito à cadeia produtiva, com isenção de IR sobre rendimentos pagos ao investidor, barateando a captação bancária) e isenções fiscais para linhas de financiamento à importação/exportação (as chamadas linhas de “Trade Finance”); e (ii) obrigações regulatórias de crédito direcionado, como destinação mínima de recursos captados pelos bancos para operações de crédito rural (linhas de crédito com taxas de juros tabeladas pelo BC).

Segundo, financiamento via mercado de capitais – o ambiente em que pessoas que possuem capital (superavitários) conseguem destiná-lo a títulos e valores mobiliários emitidos por empresas que precisam de capital (deficitárias), seja via equity ou dívida, diluindo os riscos do sócio da empresa com os investidores.

No mercado de capitais, o financiamento ao agronegócio vem principalmente dos CRAs (certificado de recebíveis do agronegócio, criado pela Lei 11.076/04) e dos Fiagros (Fundo de Investimento nas Cadeias Produtivas Agroindustriais, criado pela Lei 14.130/21, e que já superou R$ 30 bilhões em captação desde então). Dito isso, o mercado vem abrindo uma nova avenida – ofertas públicas de Cédulas de Produto Rural (CPRs) via crowdfunding, atividade regulada nos termos da Resolução CVM 88 (originalmente pensada para emissão de equity por startups, mas com potencial ainda inexplorado para emissão de dívida).

Juridicamente, a CPR é um título de crédito instituído pela Lei 8.929/94, emitido por produtor rural para formalizar a venda da safra mediante promessa de entrega futura do produto (no caso da CPR física) ou do seu valor equivalente em dinheiro (no caso da CPR financeira).

Economicamente, a CPR é usada pelo produtor rural para (i) tomar crédito bancário com IOF zero, dando parte da safra em garantia à instituição financeira; (ii) adquirir insumos para sua atividade (i.e., sementes, fertilizantes, maquinário) com promessa de dação em pagamento do produto pós-colheita (as operações de barter, muito comuns principalmente nas tradings); e (iii) alienar a mercadoria com trava no preço, funcionando como hedge contra oscilações no preço até a data da colheita (na prática, o produtor consegue vender o produto rural em data futuro a um preço pré-estabelecido na data de assinatura da CPR).

Focando na sua utilidade como título de financiamento ao agronegócio, a CPR já se consolidou no campo do crédito bancário, principalmente pela vantagem fiscal. O produtor toma um financiamento da instituição bancária, e, ao final do prazo da CPR, entrega o valor equivalente em dinheiro da mercadoria prometida na CPR. É bem natural que esse sucesso do instrumento entre os bancos tenha inspirado agentes do mercado a cogitá-la como uma ponte possível à poupança popular via mercado de capitais (ainda que a CPR não seja originalmente um valor mobiliário, uma oferta pública de CPRs deve se sujeitar às regras da CVM).

De uma maneira geral, os ganhos que podem ser trazidos por essas (e outras) novas fontes de captação são bem intuitivos, especialmente (i) aumento na competição entre financiadores, que pode trazer uma queda no custo do financiamento para produtores e cadeia agroindustrial como um todo; e (ii) potencial de redução das linhas no Plano Safra no longo prazo, eventualmente possibilitando uma redução na despesa do poder público com o programa (considerando o peso da questão fiscal no debate público atualmente).

Pensando de forma mais ampla, podemos considerar o crowdfunding para distribuição de títulos de dívida do agronegócio no geral, considerando não só a CPR, mas eventualmente o CDCA (certificado de direitos creditórios do agronegócio, também amplamente utilizado em operações bancárias com produtores rurais).

No entanto, é possível que alguns cuidados ainda precisem ser amadurecidos/endereçados via regulação. Em especial, os fatores de risco da agroindústria ainda são bem opacos para leigos do setor. É uma opacidade agravada pelo desafio atual (e não tão quantificável) dos eventos climáticos. As chuvas recentes no Rio Grande do Sul naturalmente chamam mais atenção, mas desde o ano passado já enfrentávamos quebras de safra ao redor do país por secas e outros fatores de impacto.

O cenário atual dos Fiagros também reforça essa cautela – muitos deles já estão sofrendo com inadimplência de produtores rurais e com dificuldades na execução de garantias (principalmente fazendas e produto rural) causadas por pedidos de RJ ao Judiciário e tentativas de enquadrá-las como bem essencial.

Para se colocar em perspectiva, alguns Fiagros que foram ofertados ao varejo já sofreram entre 40% e 60% de desvalorização da cota. Soma-se a isso o episódio de operações da Política Federal acerca de crédito de carbono de áreas invadidas ilegalmente, que penalizou ainda mais alguns Fiagros. É natural que o risco seja parte essencial de qualquer investimento, mas regulador e mercado precisam garantir que o investidor entenda o que ele está comprando, especialmente em se tratando de papéis distribuídos ao varejo.

Pensando então na distribuição de CPRs e CDCAs via crowdfunding, a regulação pode considerar alguns caminhos práticos para mitigar esse risco informacional – por exemplo, na imputação estratégica das obrigações regulatórias.

Do lado do investidor, já temos o papel proeminente nas plataformas de crowdfunding. Sua função de intermediária entre investidores e emissores já é prevista na Resolução CVM 88. No caso das CPRs e CDCAs, a plataforma já teria muitos dos deveres característicos de um coordenador de oferta pública de valores mobiliários. estudo das informações econômico-financeiras da startup, diligência prévia, prestação de informações ao regulador/investidores, verificação e monitoramento dos lastros e garantias etc.

Segundo, do lado do emissor, pode ser considerado um caminho em que a CPR ou CDCA ofertados por crowdfunding não seja emitida diretamente pelo produtor rural, mas sim por uma cooperativa à qual esse produtor é associado. Essa já é uma prática habitual no setor bancário, especialmente entre produtores menores que aproveitam a cooperativa para chegarem nos bancos.

Se a cooperativa se tornar um elo definitivo da cadeia da CPR (quando ofertada no mercado de capitais), teríamos uma facilitação maior ao centralizar obrigações de revelação de informações (disclosure) e governança diretamente na cooperativa. Parece uma boa alternativa à ideia de pulverizar as obrigações entre todos os próprios produtos rurais interessados em emitir títulos no mercado de capitais, mas essas e outras opções ainda deverão ser estudados mais a fundo pela CVM, pelo CRIA, pela academia, e pelo mercado.

Por fim, esses possíveis caminhos são apenas reflexões preliminares, sem prejuízo dos debates econômicos e jurídicos que ainda virão na medida em que a CPR, o CDCA e outros títulos de dívida do agronegócio ganham protagonismo no mercado de capitais.