Corte IDH na proteção diferenciada de crianças e adolescentes

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Com a Opinião Consultiva OC-32/25, bastante celebrada nas últimas semanas, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) também redefiniu as obrigações dos Estados americanos para a proteção de crianças e adolescentes no contexto de emergência climática. A Opinião representa um passo decisivo na definição das prioridades interpretativas e operacionais do Direito Internacional.

Ao oferecer uma interpretação sistemática das obrigações estatais diante da crise climática, a corte destacou a necessidade de proteção diferenciada a crianças e adolescentes, reconhecendo que estão entre as populações mais impactadas por eventos extremos, ao lado dos povos indígenas, povos e comunidades tradicionais e da população negra.

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O documento é resultado de uma solicitação do Chile e da Colômbia e contou com uma série de audiências públicas, inclusive com a participação direta de crianças e adolescentes. Para Francisco Vera, ativista colombiano, 14 anos à época, “temos uma sociedade que exclui a infância, que nos propõe um desafio de incluí-la de forma estrutural através de uma escuta ativa de suas vozes”. Por essa razão,  “as soluções devem ser desenhadas e implementadas pela infância e desde a infância”.

Após as audiências, os juízes e juízas direcionaram diversas perguntas a Francisco e também a representantes da Rede Latinoamericana e Caribenha de Meninos, Meninas e Adolescentes. Com atenção e sensibilidade, a corte fez questionamentos sobre temas como proteção, acesso à justiça e ecoansiedade, que resultaram, apesar da gravidade da discussão, em um momento de ternura e ecoesperança, ideia liderada por Francisco como caminho para transformar o medo e a ansiedade climática em ações e compromissos.

No parecer, a corte aborda como os efeitos desiguais da crise climática são agravados, cumulativos e de longa duração quando atingem crianças. Essa condição decorre não apenas de seu estágio de desenvolvimento, mas também da dependência estrutural que essa população mantém em relação a sistemas sociais, econômicos e ambientais para sua sobrevivência. A infância, nesse contexto, é tratada como sujeito coletivo de direitos em risco existencial.

A corte interpreta o artigo 19 da Convenção Americana em articulação com o artigo 16 do Protocolo de San Salvador, que, combinados, garantem proteção especial a essa população, e com a Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU, em especial o Comentário Geral 26 do Comitê sobre os Direitos da Criança. Essa leitura permite construir um regime protetivo sensível às características intergeracionais da crise climática: evidências científicas já demonstram que os danos causados hoje repercutirão, de forma desproporcional, sobre as gerações mais jovens e futuras.

No entanto, é importante reconhecer que a Opinião Consultiva não alcança uma das principais raízes estruturantes da injustiça climática no continente: o colonialismo e seu legado de assimetrias que se traduzem em vulnerabilidade ampliada. Ainda que a corte reconheça vulnerabilidades diferenciadas de povos indígenas, comunidades tradicionais, populações negras e crianças e adolescentes, o faz sem questionar os alicerces históricos que produziram tais desigualdades e continuam a informá-las no presente.

Ao evitar nomear o colonialismo como matriz de violência ambiental, apesar dos avanços, a corte limita parte do potencial transformador de sua intervenção e o alcance político da linguagem dos direitos. Para crianças e adolescentes, isso significa crescer em contextos marcados por desigualdades herdadas, onde os riscos à saúde, à segurança e à continuidade da vida comunitária não são meras possibilidades futuras, são experiências presentes e persistentes, resultado do racismo ambiental e da injustiça climática.

A corte afirma que, frente à emergência climática, os Estados têm a obrigação de adotar medidas específicas para salvaguardar os direitos das crianças e adolescentes, o que exige um padrão de diligência reforçada. Essa obrigação não se restringe a mitigar danos ambientais em abstrato, mas reconhecer e prevenir os riscos concretos que ameaçam a infância em seus múltiplos direitos: à vida, à saúde, à integridade física, à alimentação, à água, à moradia, à educação, entre outros.

Além disso, a corte sustenta que a proteção de crianças deve ocorrer de forma interseccional, considerando fatores como pobreza, pertença a comunidades indígenas ou afrodescendentes, ou a condição de deslocadas por desastres climáticos. Essa abordagem exige políticas públicas estruturadas e continuadas, com base na melhor ciência disponível, e deve incorporar mecanismos de escuta e participação infantil nos processos decisórios que lhes afetem direta ou indiretamente.

Este é justamente um dos pontos mais importantes e inovadores da OC-32/25, o reconhecimento do direito à participação de crianças e adolescentes em assuntos climáticos. A corte sustenta que, para que os direitos desse público sejam plenamente protegidos, é necessário que tenham acesso efetivo à informação, possam expressar sua opinião em matérias que impactem seu futuro climático e sejam ouvidas nos fóruns administrativos e judiciais pertinentes. Essa dimensão procedimental é vista como condição para a eficácia dos direitos substantivos.

Além disso, a corte reconheceu expressamente o direito de acesso à justiça de crianças e adolescentes para ingressar com ações coletivas em defesa do seu direito ao meio ambiente limpo, saudável e sustentável. Segundo o parecer, os Estados devem remover barreiras legais e operacionais que restrinjam crianças e adolescentes de interpor denúncias por si mesmas, além de garantir que tenham acesso a mecanismos judiciais efetivos. No Brasil, este é um ponto fundamental para que crianças e adolescentes sejam reconhecidas como sujeitos plenos de direitos.

Em suma, ao inserir os direitos das crianças e adolescentes no centro de sua análise, a Corte IDH reforça o caráter intergeracional das obrigações climáticas. O Estado não apenas deve proteger as crianças como sujeitos atuais de direitos, mas também como sujeitos de um futuro em risco,  sob pena de comprometer os princípios democráticos e de responsabilidade intergeracional que estruturam a governança climática e os direitos humanos.

Vale lembrar que o posicionamento da corte representa um farol para todos os Estados membros da OEA, devendo influenciar suas políticas e legislações e também fortalecer o arcabouço jurisdicional no âmbito da litigância climática. O Brasil, nesse contexto, enfrenta um sério desafio em adequar seu processo político-decisório aos compromissos internacionais dos quais é signatário.

O Congresso Nacional aprovou recentemente o PL 2159/21, conhecido como PL da Devastação, responsável por flexibilizar regras para o licenciamento ambiental no país, exatamente na contramão dos fundamentos e deveres jurídicos destacados pela Corte Interamericana.

A devastação anunciada, ao ameaçar a integridade de terras indígenas, quilombolas e tradicionais, bem como obstruir a participação social no curso dos processos de licenciamento, representa não só um retrocesso histórico. Trata-se de uma flagrante violação à Convenção Americana e à Convenção sobre os Direitos da Criança. O avanço de projetos legislativos retrógrados e a repressão a lideranças indígenas e ambientais não são episódios isolados.

Crianças e adolescentes estão entre os grupos mais impactados por esse modelo de desenvolvimento predatório, seja pelo aumento da insegurança hídrica e alimentar, pela exposição à poluição, ou pela negação do direito ao presente e futuro. Diante disso, torna-se urgente um chamamento coletivo, público e plural, capaz de articular as vozes dos movimentos e das novas gerações em defesa de uma justiça climática enraizada na dignidade e na autodeterminação. A Opinião Consultiva pode, e deve, ser mobilizada como instrumento de denúncia e garantia de direitos.

A Corte IDH, além de reforçar o dever protetivo ao meio ambiente, reconhece ainda o caráter da natureza como sujeito de direitos como um avanço normativo necessário, superando a redução histórica do meio ambiente à ideia de recursos naturais ou alvo de exploração. É preciso que o Brasil esteja disposto a caminhar no sentido orientado, junto à melhor ciência disponível, na proteção, com ecoesperança, de suas cidades, florestas, águas, crianças e adolescentes.