O Estado de El Salvador é responsável por violência obstétrica e pela violação do direito à saúde de uma mulher com gravidez de alto risco, determinou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). Em sentença divulgada no último mês (20/12), o Tribunal considerou que o Estado salvadorenho falhou em oferecer os protocolos adequados de atendimento médico a uma gestante com doenças prévias e que teve negado o pedido de interromper uma gravidez com anencefalia.
O tema já apareceu em casos recentes da Corte, como na condenação da Venezuela, em 2023, pela violação dos direitos de uma mulher que sofreu violência e negligência obstétrica em um hospital privado e, no mesmo ano, na responsabilização da Argentina pela violência obstétrica a uma gestante de 40 semanas que faleceu em uma maternidade pública de Buenos Aires.
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A vítima do caso em questão, Beatriz, sofria de várias doenças, incluindo lúpus, nefropatia e artrite reumatoide. Em 2012, em sua primeira gravidez, sobreviveu a uma pré-eclâmpsia grave. O filho nasceu prematuro, com menos de dois quilos. No ano seguinte, grávida novamente, teve a gestação considerada de alto risco.
Exames de ultrassom indicaram que o feto apresentava anencefalia, uma malformação congênita caracterizada pela falta total ou parcial do encéfalo, parte do sistema nervoso central responsável por coordenar diferentes atividades do corpo. Sua ausência impede a vida fora do útero.
Beatriz tinha 22 anos e seu caso se tornou um marco na luta pelos direitos reprodutivos no país, que tem uma lei antiaborto bastante severa. O caso foi levado ao Comitê Médico do Hospital Nacional de Maternidade, que coincidiu com a necessidade de interrupção da gravidez para resguardar a vida e integridade da mãe, que também já havia manifestado vontade de interromper a gestação.
Mas, diante da criminalização do aborto no país, os médicos decidiram submeter a solicitação a uma série de consultas legais com autoridades.
Segundo declaração da ministra da Saúde na época, nenhuma decisão foi tomada porque não havia protocolos para o manejo de casos como o de Beatriz até então.
Uma ação de amparo em nome da jovem chegou a ser apresentada solicitando a interrupção da gravidez para preservar sua vida e saúde. Mas só na 26ª semana de gestação foi autorizada a realização de uma cesárea, no marco legal de um parto prematuro, não de uma interrupção voluntária da gravidez. A bebê, chamada Leilany Beatriz, faleceu cinco horas após o parto devido à condição de anencefalia.
Segundo relatório da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o caso se relaciona com as violações aos direitos de Beatriz e sua família devido à proibição da interrupção voluntária da gravidez, o que impediu que a vítima tivesse possibilidade de acessar uma interrupção legal, precoce e oportuna, “tratando-se de uma situação de risco à vida e risco grave à saúde e integridade pessoal, e de inviabilidade do feto com a vida extrauterina”.
No texto da decisão, a Corte argumenta que não lhe cabe arbitrar entre diferentes opiniões médicas nem especular sobre a validade das conclusões dos pareceres emitidos por instâncias oficiais como o Instituto de Medicina Legal, que à época apresentou um laudo indicando que a gravidez, já passada da 20ª semana, não representava risco para a vida da mãe.
No entanto, a sentença do Tribunal Interamericano estabeleceu que a condição médica de base de Beatriz, com doenças prévias conhecidas, exigia do Estado um dever especial de proteção, por meio de prestação de assistência médica diligente e oportuna.
Burocratização
Além disso, a ausência de protocolos para o atendimento de gestações de alto risco para a saúde da mãe, como era o caso, levou os profissionais de saúde a não se considerarem aptos para tomar decisões médicas de forma adequada.
A falta de segurança jurídica sobre o manejo do caso de Beatriz, portanto, resultou na burocratização e judicialização do atendimento médico necessário, o que gerou diversas consequências.
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Na decisão, a Corte reforça que Beatriz foi submetida a longos períodos de espera e internação para determinar os rumos de seu tratamento devido à inexistência, justamente, de protocolos adequados. O resultado foi um tratamento desumano, configurando violência obstétrica, ressaltou o Tribunal.
A situação também afetou a integridade pessoal dela e de sua família, incluindo a do primogênito, na época de pouco mais de um ano de idade.
Por fim, destacou a Corte, a burocratização e a judicialização do caso resultaram em recursos ineficazes, que levaram à conclusão de que o Estado descumpriu sua obrigação de garantir o acesso a um recurso efetivo e de adotar as medidas necessárias para proteger e garantir os direitos protegidos pela Convenção Americana.
Beatriz faleceu em outubro de 2017, após contrair pneumonia enquanto era tratada de sequelas de um acidente de trânsito. Não foi comprovada relação entre o falecimento e o atendimento médico durante sua gravidez em 2013, e por isso a Corte decidiu não se pronunciar sobre a responsabilidade estatal neste ponto.
Depois do ocorrido, El Salvador aprovou protocolos para o atendimento de mulheres durante a gestação, o parto e o puerpério, incluindo diretrizes que estabelecem a possibilidade de interromper uma gravidez em caso de sepse ou gravidez ectópica.
Porém, persistem lacunas normativas para o atendimento adequado e oportuno de casos como o de Beatriz.
Voto concorrente e divergente
O juiz Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia) apresentou voto concorrente e parcialmente divergente. Ele afirma que a Corte não analisou as violações de direitos humanos mais relevantes do caso, em sua visão, assim como não determinou medidas de reparação efetivas para evitar sua repetição.
“A Corte deveria ter concluído que El Salvador era responsável internacionalmente pela violação dos direitos à integridade pessoal, à liberdade, à vida privada e à igualdade e não discriminação, em relação ao direito à saúde e à obrigação de erradicar a violência contra a mulher, contida na Convenção de Belém do Pará, causada pela criminalização do aborto em casos de risco para a mãe e inviabilidade da vida extrauterina do feto”, afirmou.
Com isso, disse, o Tribunal não respondeu adequadamente à exigência de justiça da vítima e sua família.
“Além disso, deveria ter concluído que dita proibição e suas consequências sobre a atenção médica violaram o direito à vida de Beatriz e sua autonomia reprodutiva”, afirmou o juiz colombiano, citando que a Corte não seguiu sua jurisprudência sobre direitos sexuais e reprodutivos no caso em questão.
Para isso, citou o caso Artavia Murillo vs Costa Rica, de 2012, e vários casos posteriores nos quais o Tribunal destacou o alcance e conteúdo das obrigações estatais relacionadas com a integridade pessoal, liberdade, vida privada, acesso à informação, igualdade e não discriminação, saúde e educação, principalmente em relação aos direitos das mulheres.
“No centro deste caso se encontrava uma conduta do Estado (a proibição absoluta da interrupção voluntária da gravidez), que impossibilitou o exercício da autonomia reprodutiva de Beatriz, e que a impediu de receber um atendimento adequado de saúde enquanto mulher gestante, o que colocou em risco sua vida e integridade pessoal e constituiu um ato de discriminação e de violência contra a mulher”, escreveu o juiz.
Para ele, a Corte não cumpriu com seu dever de realizar uma interpretação sistemática e com perspectiva de gênero da Convenção Americana.
“A criminalização da interrupção voluntária da gravidez em casos de risco à vida ou à integridade da mãe ou de inviabilidade da vida extrauterina do feto é contrária à Convenção Americana, porque se traduz numa preeminência absoluta do feto, ao custo de um sacrifício de todos os direitos das mulheres grávidas”, afirmou Sierra Porto.
Reparação
Entre as medidas de reparação, a Corte determinou que o Estado salvadorenho deve adotar diretrizes e orientações para os profissionais médicos e judiciais em casos de gestações de risco para a vida ou a saúde da mãe, seja adequando os protocolos já existentes ou emitindo novos que garantam segurança jurídica no atendimento de situações como a de Beatriz.
A composição do Tribunal para a emissão desta sentença foi a seguinte: Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica); Rodrigo Mudrovitsch (vice-presidente, Brasil); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai) e Verónica Gómez (Argentina). A juíza Patricia Perez Goldberg (Chile) recusou-se a participar da análise do caso e da deliberação da sentença.