Corte IDH defende tipificação penal para proteção de direitos em condenação do Equador

  • Categoria do post:JOTA

A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) reforçou a necessidade da adequada tipificação de crimes para a proteção de direitos e combate à impunidade em sentença divulgada este mês (11/02) contra o Equador. No caso em questão, “Aguas Acosta vs Equador”, o Tribunal considerou que o Estado não contava com tipo penal adequado para reprimir a tortura. O tema apareceu em outros casos recentes da região, como o caso Ubaté e Bogotá vs Colômbia, sobre desaparecimento forçado no conflito armado colombiano.

Aníbal Alonso Aguas Acosta foi interpelado por agentes policiais após um incidente em um bar na cidade de Machala, no Equador, na noite de 5 de março de 1997. Ele resistiu à detenção, e os dois policiais que atenderam ao chamado pediram reforços. Aguas Acosta foi imobilizado e colocado à força na viatura policial.

Quando chegou à delegacia, estava inconsciente e com sinais de sangramento. Os policiais o retiraram do veículo, colocaram no chão e jogaram água em sua cabeça. Como não reagia, foi levado ao hospital, onde sua morte foi constatada ainda dentro da viatura.

A autópsia realizada no dia seguinte determinou como causa de morte uma hemorragia cerebral e uma luxação de articulação provocada por múltiplos traumatismos, entre eles a separação da cabeça do corpo.

Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email

Em um primeiro momento, os dois agentes policiais apontados como autores do crime foram denunciados por “homicídio simples”. Depois de recurso, a acusação foi confirmada, mas com a qualificação alternada para crime de “morte por tormentos corporais”. Após processamento e julgamento da acusação, os autores foram condenados, mas o crime foi reclassificado para “homicídio involuntário”, com pena prevista de três anos de reclusão e separação das fileiras policiais.

A Segunda Corte Distrital da Polícia Nacional reformou a sentença, restabeleceu a imputação de morte por “tormentos corporais” e aumentou a pena para oito anos. No entanto, a condenação nunca foi executada. Em 2019, a Corte de Justiça de Guayas declarou a prescrição da ação penal.

O Equador reconheceu parcialmente sua responsabilidade, em um acordo firmado com familiares de Agua Acosta. Para a Corte, porém, ainda havia controvérsias relacionadas aos atos de tortura, além de deficiências no ordenamento equatoriano sobre tortura que foram tratadas na sentença.

O Tribunal considerou que o Estado foi responsável por violações relacionadas à detenção, submissão à tortura e morte da vítima. O uso da força por agentes da Polícia Nacional do Equador foi abusivo e letal, concluíram os juízes, que responsabilizaram o Estado pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal de Aguas Acosta, bem como pelas omissões no curso das investigações e nos processos instaurados para apuração dos fatos.

A Corte determinou ainda que a morte de Aguas Acosta afetou especialmente seus filhos, vulnerando seus direitos às garantias judiciais, proteção judicial, proteção da família e aos direitos da criança. Além disso, concluiu que o Estado violou o direito à integridade de seus familiares.

Voto de Mudrovitsch

Na sentença a Corte observa que o Equador não contava com uma norma interna específica sobre o crime de tortura quando o caso ocorreu. Com isso, o Estado descumpriu sua obrigação de adotar disposições de direito interno conformes à Convenção Americana sobre Direitos Humanos.

O tema foi objeto de voto convergente do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, vice-presidente da Corte IDH, que ressaltou divergências em relação ao enquadramento da conduta dos agentes policiais que detiveram e agrediram Aguas Acosta.

Do homicídio involuntário à morte por tormentos corporais, afirma Mudrovitsch, “nenhum dos crimes imputados dá conta da correta dimensão da gravidade da conduta, que a Corte IDH identificou como tortura, mas para qual a legislação nacional do Estado do Equador, à época dos fatos, não oferecia resposta normativa adequada”.

Inscreva-se no canal de notícias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões do país!

O juiz brasileiro expõe no voto como a proibição da prática de tortura aparece em diferentes âmbitos do Direito Internacional, da Declaração Universal de Direitos Humanos à aprovação da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, da Convenção Interamericana e da Convenção Europeia para Prevenção da Tortura.

“A  obrigação  de  adequar  as  normas  do  ordenamento  jurídico  interno  deriva diretamente do comando do artigo 2 da Convenção, do qual se originam tanto a obrigação de suprimir aquelas que sejam inconvencionais quanto a de adoção de medidas legislativas para assegurar a tutela adequada dos direitos ali previstos”, afirma.

“A perspectiva oferecida pelo escrutínio estrito de proporcionalidade das normas penais pode demandar dos Estados o dever de tipificação de condutas quando se está diante de  déficit de proteção em relação a graves violações de direitos humanos”, explicou o juiz brasileiro.

Mudrovitsch afirma que, à época dos  fatos, embora a então vigente Constituição equatoriana  de 1978 proibisse “as torturas e todo procedimento desumano ou degradante”, tal conduta não era tipificada no ordenamento jurídico do Estado.

“Havia figuras penais próximas, mas insuficientes frente à obrigação de proibir essas condutas, especialmente em razão de seu caráter absoluto e de ius cogens”, disse.

O que aparecia no ordenamento jurídico equatoriano à época da tortura de Aguas Acosta era o crime de “tormentos corporais”, o que não seria suficiente, segundo Mudrovitsch, para prever que os atos fossem causados de forma intencional, tirando o caráter doloso, ou “intencional” dos atos praticados pelos agentes policiais.

Além disso, o termo restringe o sofrimento da vítima à natureza física, excluindo o conceito de tortura psicológica, já reconhecido pela jurisprudência da Corte IDH em outras ocasiões, afirma o juiz brasileiro.

“Como afirmei  em meu  voto no  caso Ubaté y Bogotá vs.  Colombia, “[a]nalisar o nomen  juris  de  determinada  conduta  penalmente  reprovada  não  é  mero formalismo ou querela semântica. É também uma forma de  chamar atenção a determinadas práticas por sua maior gravidade”, escreveu.

“Nomear determinada conduta como  “tortura”  e identificar seus agentes como torturadores apresenta efeitos práticos sobre os casos concretos, na medida  em que ganham atenção no espaço público. Neste caso, o enquadramento da morte do  Sr.  Aguas  Acosta como  consequência de  sua  tortura  poderia  ter  levado  a desfecho distinto em relação à prescrição que beneficiou os autores do crime”, afirma.

Relevância do caso

Para especialistas ouvidos pelo JOTA, o caso reforça a jurisprudência da Corte IDH e ressalta a importância de que os Estados observem os estândares estabelecidos pelo Tribunal.

“A Corte reafirma entendimentos expostos em decisões anteriores e reitera sua preocupação não só com a vítima das ações diretas dos agentes estatais como também com seus familiares, ao reconhecer violações específicas de seus direitos. Há uma interpretação expansiva do conceito de vítima, numa reafirmação também do uso do direito penal como ferramenta necessária de proteção aos direitos humanos essenciais”, afirma Vinícius Novo, pesquisador da Faculdade de Direito da USP e advogado no escritório Davi Tangerino Advogados.

Para ele, a sentença mostra a visão majoritária da Corte de que os Estados devem estar atentos não só aos tratados de direitos humanos, mas também à própria jurisprudência dos tribunais internacionais e regionais, no caso a Corte IDH, e observar os estândares de proteção necessários.

“O Equador tinha uma tipificação penal para tentar coibir atos e condutas que poderia se assemelhar a uma tipificação de tortura, mas se entendeu que era insuficiente. Isso é muito destacado no voto concorrente do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch”, diz Vinícius Novo.

Ele reconhece como positivo o reconhecimento parcial feito pelo Equador no caso, o que demonstraria certo comprometimento como medida de não repetição das violações.

“Existe uma discussão sobre o grau de interferência que uma Corte internacional poderia ter para estipular tipificação concreta ou orientar que os Estados adotem determinada tipificação em detalhes tão precisos quanto os da Corte Interamericana. Tanto que foi tema de voto divergente da juíza Nancy Hernández”, afirma Vinicius Novo.

No entanto, diz, trata-se de debate importante que tem se repetido nos precedentes estabelecidos pelo Tribunal.

Para Alaor Leite, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), o voto do juiz brasileiro Rodrigo Mudrovitsch reforça a função da ideia de escrutínio estrito das normas penais.

“Recorda que o legislador deve não apenas escolher palavras precisas para que o tipo seja determinado e que possa ser aplicado, mas ele deve também chamar as coisas pelo seu nome. Expressar em palavras aquilo que o ilícito que existe no mundo expressa”, afirma Alaor Leite.

“Tortura é um mal supremo, e ao legislador penal não é dado valer-se de eufemismos, produzir understatements nesse setor, como aconteceu com os ‘tormentos corporais’ da legislação equatoriana”, diz o professor da FDUL.

“Se, de um lado, o tipo penal era muito restrito, porque exigia que a pessoa estivesse detida ou sob a guarda de um agente do estado, de outro não exigia dolo ou intenção, se contentava com a negligência, portanto era um tipo que desnaturava o mal da tortura, dava-lhe outro nome e com isso suavizava o verdadeiro e real conteúdo deste ilícito que está entre os ilícitos supremos”.

A importância do caso supera o contexto do Equador, acrescenta o advogado criminalista Guilherme Ziliani Carnelós, diretor-presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). Para ele, trata-se de uma decisão que pode ser usada por entidades locais para que seus respectivos Judiciários se debrucem mais sobre o tema.

“Há relatos de tortura e violência policial na região como um todo, no âmbito de prisões ilegais, de presídios, numa prática pautada não no uso da inteligência, mas da força e violência dirigida a um grupo específico, à população vulnerável, com legitimação do Estado. Poderia ser um exemplo do Brasil. A decisão da Corte IDH chama a atenção para a necessidade de coibir esse tipo de ato aonde for”.

O voto do juiz Mudrovitsch, afirma, joga o olhar para a necessidade de tipificação penal à altura da gravidade do crime cometido.

“Um Estado que se diz democrático e de direito deve coibir e evitar práticas de tortura. E deve haver punição rigorosa. Ainda mais quando a tortura é imposta pelo próprio Estado”, afirma Carnelós.

Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas

No Brasil, lembra, a lei 9455/97 tipifica o crime de tortura. “É essencial. Quando damos o nome correto às coisas, nos posicionamos em relação à força daquele nome”, diz. “Trabalhar de acordo com o que a Constituição determina, por sua vez, dá espaço a um processo justo que, quando é o caso, leva à condenação. Isso é ser um Estado democrático de direito”.

Reparação

A Corte IDH determinou, como medida de reparação, que o Equador continue com as investigações penais que tinham sido retomadas em 2021, com objetivo de esclarecer os fatos, julgar e punir os autores da violência contra Aguas Acosta.

Ordenou, também, que o Equador ofereça tratamento de saúde aos familiares e realize um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional no caso.

Participaram da emissão da sentença os juízes: Nancy Hernández López, presidente (Costa Rica); Rodrigo Mudrovitsch, vice-Presidente (Brasil); Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia); Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México); Ricardo C. Pérez Manrique (Uruguai); Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).