Corte IDH condena Argentina por violar direitos ao sancionar preso disciplinarmente

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A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) considerou a Argentina responsável por violar direitos fundamentais de Guillermo Patricio Lynn, um preso punido com uma sanção administrativa disciplinar após ser flagrado “aparentemente embriagado”.

Lynn foi condenado a prisão perpétua por homicídio qualificado, em março de 1990. Ele cumpria pena na Colônia Penal de Ezeiza, na província de Buenos Aires, quando, em 1998, foi autorizado a ter saídas temporárias de 12 horas semanais para ir à casa da mãe, posteriormente estendidas para 24 horas semanais.

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Ao voltar de uma das saídas, na noite de 26 de março de 2000, ele foi considerado “aparentemente embriagado” pelo fiscal de turno, situação que foi prontamente comunicada ao diretor da unidade.

No mesmo dia, Lynn foi colocado em isolamento provisório por 24 horas, por ordem do diretor, sob a justificativa de que a medida era necessária para “manutenção da ordem”.

O homem foi notificado no dia posterior de que uma investigação havia sido iniciada e que ele seria confinado em uma cela solitária por cinco dias. Quinze minutos depois do aviso, foi realizada uma audiência perante o diretor da unidade prisional, na qual Lynn não pôde apresentar provas e nem contou a presença de um advogado.

Devido à sanção, foi determinada sua regressão no regime progressivo de execução da pena e revogado o benefício de liberdade temporária.

Para a Corte IDH, a punição foi aplicada sem que Lynn tivesse direito à defesa, com base em uma decisão sem fundamentação e que viola o direito à presunção de inocência. Como resultado do processo disciplinar e das subsequentes decisões judiciais, ele foi “arbitrariamente regredido no regime progressivo de execução de penas”.

Por isso, o tribunal considerou que a Argentina violou os objetivos de reintegração e reabilitação social da execução da pena e os direitos à liberdade pessoal, garantias judiciais e proteção judicial em prejuízo de Guillermo Patricio Lynn.

Em virtude dessas violações, a Corte ordenou ao Estado que implemente diversas medidas reparatórias, incluindo a elaboração e implementação de um programa permanente e obrigatório de formação sobre normas de direitos humanos para funcionários da administração penitenciária e juízes com jurisdição em matéria penal.

O Estado argentino reconheceu formalmente as violações e manifestou concordância com as medidas reparatórias, exceto com o pedido de indenização por danos materiais feito pelos representantes da vítima.

Divergência sobre o princípio da legalidade

A principal divergência entre os juízes da Corte IDH foi em relação à violação ou não do princípio da legalidade (artigo 9 da Convenção Americana). O debate concentrou-se no alcance da exigência da reserva de lei em processos disciplinares relacionados à execução da pena. 

No caso concreto, a punição aplicada era prevista por um regulamento editado por decreto presidencial, não por lei formal. Para os representantes de Lynn, a delegação “não continha qualquer orientação quanto à classificação das infrações” e “carecia de certeza suficiente”, tornando-a altamente imprevisível e permitindo a aplicação de sanções arbitrárias e desproporcionais.

Conduzida pelo voto da presidente da Corte, Nancy Hernández López, a maioria entendeu que não houve violação ao princípio da legalidade, uma vez que, embora a infração imputada a Lynn não estivesse formalmente prevista em lei, “esta delegou expressamente a determinação das condutas que poderiam dar origem a infrações leves e médias em matéria prisional ao ‘regulamento’”.

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Conforme o voto majoritário, o regulamento específico garantiu a necessária previsibilidade e impediu a discricionariedade da autoridade prisional na interpretação da conduta classificada como infração, de modo que “o referido regulamento atendia aos objetivos do princípio da legalidade”.

Para os juízes que seguiram essa linha, portanto, uma lei formal só deveria ser exigida “quando se tratasse de infrações e sanções que pudessem afetar a execução da pena”, o que, conforme o entendimento da sentença, não seria o caso.

Três juízes divergiram desse posicionamento – o brasileiro Rodrigo Mudrovitsch, o uruguaio Ricardo Pérez Manrique e o paraguaio Diego Moreno Rodríguez. Para eles, o Estado tinha a obrigação de exigir legislação parlamentar na área dos processos disciplinares relacionados à execução de penas, em razão das consequências geradas ao condenado.

“Minha discordância reside no fato de que as infrações médias e leves, nas circunstâncias em que são definidas no ordenamento jurídico interno argentino, têm efetivamente a capacidade de interferir nos direitos dos condenados à liberdade e a uma pena voltada à ressocialização, de modo que o desenho jurídico e regulatório da disciplina no sistema penitenciário argentino viola o princípio da legalidade em direito penal, que também se aplica à fase de execução da pena”, escreveu Mudrovitsch em seu voto parcialmente dissidente.

O juiz reforçou a necessidade de exigência de lei promulgada pelo Parlamento, a fim de que o “poder do povo” prevaleça representado. “Mesmo o cidadão condenado permanece sujeito de direitos e não pode ser manipulado ao bel-prazer da administração penitenciária. A execução da pena, portanto, deve refletir as decisões fundamentais tomadas pelo Legislativo, também no sentido de que os objetivos preventivos ou retributivos associados à pena dependem, na prática, da maneira como ela é cumprida”, pontuou o magistrado brasileiro. 

Pérez Manrique seguiu entendimento semelhante e classificou a sentença como “grave retrocesso à jurisprudência da Corte”. Para ele, a permissão da lei para que um regulamento administrativo dite as punições equivale a um “cheque em branco, dando origem à arbitrariedade ou a um poder discricionário excessivo ou ilimitado por parte das autoridades prisionais”.

“Não se trata, como salienta o acórdão, de uma mera questão de a conduta ser previsível ou suficientemente predeterminada (lex praevia et certa), mas sim de a lei exigir a contenção do poder discricionário administrativo, fornecendo uma definição suficientemente precisa da conduta que seria classificada como infração, bem como os limites dentro dos quais as sanções poderiam ser legalmente impostas pela prática de tais atos”, declarou o juiz uruguaio. 

O paraguaio Diego Moreno Rodríguez destacou os impactos profundos que uma sanção disciplinar pode ter aos direitos de indivíduos privados de liberdade.

“É preciso ter em mente que, em um ambiente prisional, uma sanção imposta por uma infração administrativa — mesmo que leve ou moderada — pode ter um impacto particularmente profundo sobre os direitos desses indivíduos. Como este Tribunal observou, ‘é necessário ter em mente que as sanções administrativas, assim como as sanções penais, são uma expressão do poder punitivo do Estado e, por vezes, têm natureza semelhante. Ambas envolvem o prejuízo, a privação ou a alteração dos direitos dos indivíduos como consequência de conduta ilícita’”.

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Para o juiz, não se deve “flexibilizar” ou exigir “menor rigor” na observância do princípio da legalidade em sanções administrativas, em particular no contexto de pessoas encarceradas. “Embora seja verdade que o Tribunal tenha indicado que o alcance do princípio da legalidade ‘depende consideravelmente da matéria regulamentada’, devido à situação vulnerável das pessoas privadas de liberdade, certamente não se trata de uma questão em que existam razões que autorizem restringir esse alcance”.

Avanço importante em votos divergentes

Especialistas ouvidos pelo JOTA elogiaram a divergência apresentada pelos três juízes e consideraram que, mesmo vencidos, os votos representaram um importante avanço em relação ao tema.

Alaor Leite, professor de Direito Penal e Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, avalia que é complexo limitar a discricionariedade dos países quando se trata da execução de penas, porque é um assunto que se mistura com segurança pública e, portanto, é frequentemente atrelado às responsabilidades do Executivo. 

“Esse assunto é marcado por contingências institucionais, políticas e economias que são muito locais. Portanto, é muito difícil determinar um padrão generalizado. De qualquer forma, a função da Corte é dar os padrões mínimos, sem deixar de reconhecer que há contingências locais que não nos permitem sonhar com um modelo único. Por isso, os votos de Rodrigo Mudrovtisch e dos outros juízes que acompanharam o entendimento dele têm uma força simbólica, porque é o caminho para judicializar e legalizar a administração do sistema penitenciário, que sempre foi o primo pobre do Direito Penal”, diz o professor.

Ele concorda com a posição de que a reserva de lei é necessária sempre que houver repercussão na execução da pena. “Qualquer alteração que não tenha referência à lei ou a decisão judicial é uma alteração arbitrária. Tudo que possa repercutir no modo do cumprimento da pena, se de um modo mais agressivo, de um modo híbrido, ou se com isolamento, é uma forma ainda de cumprir a vontade da lei. Isso não pode estar nas mãos de quem não possui legitimidade para aferir qual é a pena justa e proporcional para a falta atribuída àquela pessoa”.

O presidente do Conselho do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Roberto Soares Garcia, soma-se ao entendimento de que o princípio da legalidade foi violado. 

“Me parece evidente que a punição gerou consequências graves no cumprimento da pena e, por isso, violou o princípio da legalidade. Se não há previsão em lei, não cabe sanção. A não aplicação da lei é, portanto, por si só, uma violação”.

A advogada e professora Raquel da Cruz Lima, doutora em Direito Internacional pela Universidade de São Paulo e pesquisadora com foco na jurisprudência da Corte IDH, também discorda do voto majoritária, mas aponta que apenas o fato de a Corte tratar de violações a direitos de pessoas privadas de liberdade, por si só, já representa um avanço.

“Vejo que a Corte perdeu uma boa oportunidade de posicionar de forma mais profunda e ousada neste caso, mas o fato de ter dado mais atenção a esse tipo de matéria sinaliza um momento importante de mudança no sistema interamericano, com mais atenção à discussão sobre a garantia de direitos no contexto de encarceramento. Historicamente, a Corte sempre foi ambígua e imprecisa sobre garantias de direitos no contexto de cumprimento de penas. Me parece que, neste caso, o grau de divergência entre os juízes ilustra como esse é um tema recente e desafiador”.

Raquel da Cruz Lima considera que a maioria dos juízes preferiu adotar postura mais diplomática, marcante nos últimos anos. “A Corte tem buscado estabelecer processos diplomáticos mais profundos com os Estados, mais cooperativos, por isso às vezes se furta de olhar para o problema de uma forma mais ampla, focando apenas no caso concreto. Mesmo assim, vejo com otimismo este momento. Acredito que os votos dissidentes têm um valor simbólico importante, com potencial de avançar na garantia de direitos de pessoas privadas de liberdade”.