A família de Dina Alexandra Carrión, morta no jardim de casa, em Manágua, na Nicarágua, pediu justiça e a reabertura do caso, arquivado como suicídio. Em audiência na sede da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), parentes denunciaram a negligência do Estado e afirmaram que o caso se trata, na verdade, de um feminicídio encoberto por parentes influentes do ex-marido de Dina, que à época havia pedido divórcio.
“Era uma mulher de 36 anos dedicada ao filho, uma mãe entregue, amorosa. A relação com Juan Carlos (então marido) era estressante, porque ele a submetia a violência psicológica, física, econômica”, disse aos juízes uma das irmãs de Dina, Aida Mercedes Carrión Gonzalez.
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A família busca esclarecimentos do caso desde 3 de abril de 2010, quando Dina apareceu morta no pátio da frente da casa em que vivia com o filho, então com 6 anos, e o marido, em meio aos trâmites de divórcio. Familiares dizem que o homem nunca permitiu que ela deixasse a residência, e ela teria aceitado, com medo de perder a guarda do menino.
Naquela noite, ela iria levar o filho para uma viagem com a família dela. Saiu da casa de uma irmã e foi buscá-lo. O marido a recebeu e pediu que esperasse. O menino não apareceu, e Dina foi encontrada horas depois sem vida, com um tiro no peito.
Na época, as investigações concluíram que se tratava de um suicídio. Mas a família de Dina nunca acreditou nessa hipótese. Parentes chegaram a denunciar um suposto feminicídio cometido pelo então marido, Juan Carlos Siles, mas o caso acabou arquivado pela Justiça nicaraguense. Além disso, a família de Dina nunca mais teve contato com o filho dela, que foi isolado pela família paterna.
“Descobrimos o quanto ele (Juan Carlos Siles) era influente quando buscamos justiça”, disse Aida à Corte. “O pai dele tinha parentesco com juízes, trabalhou para o governo. Tinha conexões políticas.”
Aida conta que, na mesma noite da morte, o pai de Juan Carlos ligou para o pai de Dina para convencê-lo que cremassem o corpo imediatamente. A família de Dina não autorizou. Uma das irmãs correu ao Instituto Médico Legal local com um documento que comprovava que o casal estava em processo de divórcio. Com isso, conseguiram ter acesso ao corpo de Dina, que tinha várias marcas de violência.
“Ela tinha golpes no rosto, escoriações nas mãos e lacerações na perna. Faltava um pedaço do dedo anelar esquerdo. Era um corpo que não atendia a um suposto suicídio. Na mesma noite, vizinhos disseram ter escutado tiros e visto um homem saindo numa caminhonete”, contou Aida na audiência.
Outra das irmãs foi à polícia denunciar o caso na mesma noite, mas a hipótese de feminicídio foi desconsiderada. A família custou a ter acesso ao expediente do caso.
“Quando finalmente vimos o documento, havia uma série de incongruências. Uma página não tinha conexão com a outra. Havia números rasurados em vários trechos. Fotos faltando da cena do crime. Mostramos o expediente a outro perito, que apontou várias inconsistências nas investigações criminais e balísticas. O expediente dizia que havia manchas hemáticas na calça, sapatos e camisa de Juan Carlos. E Dina tinha tomado um golpe nas costas com um pedaço de pau, que não foi descrito”, disse Aida.
Além disso, contou, os investigadores disseram que a arma estava engatilhada com uma bala de calibre diferente da encontrada no corpo de Dina. E nunca explicaram por quê. Outra inconsistência, segundo Aida, foi que a investigação indicava que ela teria disparado no próprio coração com a mão direita, mas era canhota.
O advogado da família recorreu na Justiça, que demorou mais de um ano para responder à apelação – que foi negada. As irmãs e os pais de Dina buscaram organismos de direitos humanos e órgãos contra a violência contra as mulheres. Realizaram marchas, protestos, fizeram plantões na porta da Procuradoria-Geral e do Ministério Público.
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“Foi quando percebemos que o pai de Juan Carlos tinha ligações com essas instituições. E que estava obstruindo a Justiça”, afirmou Aida. A Justiça manteve a hipótese de suicídio e o arquivamento do caso.
Os anos de busca por um julgamento e entendimento do caso, disse Aida, tiveram efeitos para toda a família. Ela precisou receber atendimento psicológico e passou a se medicar contra depressão e sentimentos de ideação suicida. Disse ainda que começou a negligenciar os cuidados com os próprios filhos. Outra irmã sofreu ameaças e perseguições e pediu asilo nos Estados Unidos. O pai de Dina, afirma Aida, morreu poucos anos depois, “desgastado”, em virtude das tentativas de obter justiça.
“Fomos submetidos a um grande desgaste emocional, psicológico, físico, que dura até hoje”, disse Aida. “Minha irmã merece justiça do Estado da Nicarágua. Ela nunca teve problemas com ninguém. Por que fizeram isso com ela? O que aconteceu naquela noite? Por que encontramos um corpo com marcas de violência? Por que tantas inconsistências e incongruências? Quem é Juan Carlos para o Estado da Nicarágua? Precisamos de respostas”, afirmou.
Um acordo que teria sido feito para que a família visse o filho de Dina, completou, nunca foi cumprido pela família paterna. Desde o ocorrido, foram apenas dois encontros com o menino, com a condição de ser em local público e com a presença do avô paterno. A última vez foi há dez anos, em 2014.
Órfãos de feminicídio
Aida pediu também uma reparação moral para as mulheres que sofrem violência na Nicarágua. No processo de busca por justiça para Dina, afirma, conheceu muitas famílias com casos semelhantes. Muitas famílias humildes, sem meios de acesso a instituições e advogados.
Há alguns anos, a família de Dina resolveu criar uma fundação com o nome dela, para apoiar crianças que perderam suas mães em casos de feminicídio na Nicarágua.
“Criamos essa fundação para honrar a vida e a memória da minha irmã. Pelo amor que ela tinha ao filho, que nunca teve apoio psicológico para atravessar esse luto. Queremos sensibilizar as pessoas sobre toda essa tragédia sofrida pelas mulheres na Nicarágua. Fala-se pouco também sobre quem fica para trás. Muitas dessas pequenas criaturas se mutilam, pelas ansiedades que passam. Queremos reparação não só por Dina, mas por tantas vítimas da impunidade”, contou.
Aida hoje se dedica integralmente à fundação e diz se considerar defensora de direitos humanos e de vítimas de violência intra-familiar e crianças órfãs de feminicídio, “esquecidas pelo Estado da Nicarágua”. Ela defendeu a criação de uma lei para que soem alertas nos celulares da Nicarágua quando haja casos de feminicídio nos quais os autores do crime sejam foragidos da Justiça.
“Nos Estados Unidos (onde Aida mora), há algo parecido para crianças desaparecidas. Queria que houvesse o mesmo na Nicarágua. Um alerta Dina”, afirmou.
Na audiência, a mãe de Dina, Aida Luz González Castillo, disse que o ex-marido da filha era “controlador, a tratava de maneira déspota, com palavras rudes”. Afirmou também que ele deu vários indícios de violência prévia à morte de Dina.
“Ela vivia sempre com medo. Nos visitava escondida, não levava o menino, para que ele (Juan Carlos) não se irritasse”, contou aos juízes. “Depois da morte de Dina, tudo virou tristeza. Dor. Já não havia alegria em casa. Só chorávamos. Desde que ela foi assassinada, acabou a felicidade”, completou. A última vez que viu o neto foi em 2014, quando ele fez oito anos.
“Foi tão desgastante que meu esposo ficou doente. Quando ele morreu, ligaram da Suprema Corte para fazer um acordo. Disseram que era uma audiência excepcional e que poderíamos ter relação com o menino se retirássemos a queixa do caso penal. Respondemos que não seria possível, que tínhamos que saber a verdade da morte da nossa filha, pois não concordávamos com a versão de suicídio. Nossos filhos foram criados com valores e princípios. Como mãe e avó, nunca pensei em admitir a versão de que minha filha tinha se matado. Ela amava o filho incondicionalmente”, disse.
Desde o ocorrido, disse, a família vive um “calvário”. “Gostaríamos que reabrissem o caso. Que respondessem. Não houve sequer uma audiência. Ele (Juan Carlos) se amparou nos juízes, no Ministério Público. Não deu as caras. Nem quando Dina morreu ele apareceu. Dissemos que queríamos vê-lo. Ele esteve com ela naquela noite. Mas não o vimos mais. Não responde, não liga, não diz nada”, contou à Corte.
Estado ausente
O Estado da Nicarágua não enviou representantes para a audiência na sede da Corte IDH. Em seu relatório sobre o caso, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos afirma que o Estado não empregou a devida diligência na investigação do caso, e que falhou na garantia de manter o relacionamento e vínculo do filho de Dina com sua família materna.
Argumenta ainda que houve diversas irregularidades no processo inicial da morte, que não seguiu a diligência reforçada que deveria ser promovida na investigação de casos de violência contra as mulheres. Ao contrário, a Justiça se manteve na linha de suicídio, apesar das indicações de que a morte de Dina poderia ter sido motivada por razões de gênero.
Para a Comissão, na investigação foram utilizados diferentes estereótipos de gênero, o que configurou violação do direito à igualdade e à garantia da imparcialidade das autoridades investigadoras e judicial.
“A autópsia concluiu que a morte havia sido por suicídio e a promotoria fechou o caso. Depois a investigação foi reaberta diante de novos indícios, e o ex-marido foi acusado de homicídio. Mas recorreu, a Corte Suprema decretou nulidade da reabertura da investigação e manteve o arquivamento do caso”, disseram representantes da CIDH na audiência. “As autoridades deveriam ter indagado sobre uma linha lógica de feminicídio. As provas não foram coletadas nem preservadas adequadamente”.
Para a Comissão, o Estado da Nicarágua é responsável pela violação dos direitos à garantia judicial, igualdade, proteção judicial e à vida, além de ter falhado na obrigação de investigar casos relacionados à violência contra a mulher.
“O caso permitirá à Corte desenvolver estândares para a investigação de mortes violentas de mulheres nas quais uma das hipóteses seja feminicídio”, disse a CIDH, reforçando a importância de menção também sobre as obrigações dos Estados em circunstâncias que envolvam manter o vínculo com filhos de vítimas de feminicídio com a família materna.
Convocada pela Corte IDH para a audiência, a perita Mariella Labozzetta, diretora da Unidade de Delitos contra a Mulher na Argentina, afirmou que casos de mortes violentas de mulher deveriam ter a aplicação de uma perspectiva de violência de gênero, mesmo que a princípio possam não parecer um assassinato.
“Por trás de mortes por suicídio pode haver um feminicídio que se deseja encobrir. Há também casos de instigações a suicídio. E inclusive situações de violência prévia que são causa da morte e que podem conter figuras específicas para condenar. Qualquer metodologia investigava geral tem que incluir desde o início todas as hipóteses possíveis. A de feminicídio pode inclusive conviver com outras hipóteses, que podem ser descartadas com o avanço da investigação. Mas, se não se considera o feminicídio desde o princípio, podem se perder provas relevantes que estão nas próprias diligências, na cena do crime, na autópsia, no corpo da vítima”, disse a perita.
Na audiência, ela defendeu a erradicação dos estereótipos de gênero nas investigações criminais, que obstaculizam determinadas linhas de investigação e consolidam erros pré-determinados, afetam a imparcialidade e a objetividade. Para a perita, os operadores de Justiça têm a obrigação de revisão permanente de atuação em casos desse tipo, uma vez que a sociedade segue “impregnada por estereótipos de gênero”.
“Processos de tipificação da inclusão diferencial de feminicídio na região têm sido ferramenta muito útil para dar conta da existência de um fenômeno sistemático, generalizado, vigente, que não temos conseguido deter. Apesar de todos os avanços na região, os números continuam indicando estabilidade no fenômeno de feminicídio. O processo de desarmar isso é de longo prazo, e não podemos permitir retrocessos de nenhum tipo. Além disso, (essa tipificação) instala na agenda do sistema de justiça a necessidade de uma abordagem diferente”, disse. “Mulheres são assassinadas em suas casas por serem mulheres”.
Participam da análise do caso os juízes Nancy Hernández López (presidente, Costa Rica), Rodrigo Mudrovitsch (vice-presidente, Brasil), Ricardo César Pérez Manrique (Uruguai), Humberto Antonio Sierra Porto (Colômbia), Eduardo Ferrer Mac-Gregor Poisot (México), Verónica Gómez (Argentina) e Patricia Pérez Goldberg (Chile).