Contravenções penais e violência doméstica e familiar contra a mulher

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Introduzidas em nosso ordenamento jurídico um ano após a entrada em vigor do atual Código Penal, as chamadas “contravenções penais” estão previstas no Decreto-Lei 3.688/81, popularmente conhecido como “Lei das Contravenções Penais”, e continuam até hoje em vigor. Embora sejam espécie do gênero “infrações penais”, as contravenções penais não se confundem com os crimes propriamente ditos.

Já em seu artigo inaugural, a Lei de Introdução ao Código Penal realiza uma diferenciação conceitual entre crime e contravenção. Segundo o art. 1º da LICP, “considera-se crime a infração penal que a lei comina pena de reclusão ou de detenção, quer isoladamente, quer alternativa ou cumulativamente com a pena de multa; contravenção, a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas, alternativa ou cumulativamente”. O legislador foi categórico: A principal diferença entre crime e contravenção reside na cominação da pena; reclusão ou detenção aos crimes e prisão simples às contravenções penais.

Outras diferenças ainda poderiam ser lembradas por este autor, como a impossibilidade de punição em caso de contravenção penal praticada na modalidade tentada (art. 4º da Lei das Contravenções Penais), ou a modalidade de ação penal (este tema será abordado de forma detalhada adiante).

Em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, a contravenção penal de vias de fato é, sem sombra de dúvidas, aquela com maior incidência. Não por acaso, todos os precedentes que envolvem o tema “contravenções penais e violência doméstica” no Superior Tribunal de Justiça dizem respeito a casos envolvendo a prática de vias de fato, ou ainda, acerca da antiga e já revogada contravenção penal de perturbação de tranquilidade1.

Dispõe a redação do art. 21 da Lei de Contravenções Penais: “praticar vias de fato contra alguém: de quinze dias a três meses, ou multa, se o fato não constitui crime. Trata-se de uma conceituação por exclusão, uma vez que legislador utilizou a expressão “se o fato não constitui crime”. Guilherme Nucci conceitua a referida contravenção penal como: “a luta quando delas não resulta crime; como a violência empregada contra a pessoa, de que não decorre ofensa à sua integridade física. Em síntese, vias de fato são a prática de perigo menor, atos de provocação exercitados materialmente sobre a pessoa, ou contra a pessoa.”. 2 Logo, incorre nas penas do artigo 21, da Lei de Contravenções Penais, aquele que realiza uma incursão física dirigida à vítima, sem, contudo, causar-lhe lesões (v.g.: empurrões, puxões de cabelo etc.).

Quando praticadas em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, as vias de fato possuem contornos específicos, diante da vis atractiva do corpus iuris do Direito das Mulheres, sobretudo da Lei Maria da Penha.

1 Impossibilidade de aplicação da Lei 9.099/05 às contravenções penais cometidas em contexto de violência contra a mulher

Ponto importante a ser esclarecido diz respeito a possibilidade ou não da aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais às contravenções penais praticadas em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. Isso, porque o artigo 41 da Lei Maria da Penha veda de forma expressa a aplicação da Lei 9.099 aos “crimes” cometidos em contexto de violência doméstica (“Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995”).

Conforme exposto na introdução deste texto, crimes e contravenções não se confundem, devendo a seguinte indagação ser respondida: ao utilizar a palavra “crimes no art. 41 da Lei Maria da Penha, o legislador vedou também a incidência da Lei 9.099/95 às contravenções penais praticadas em contexto de violência doméstica?

Existem duas posições acerca do tema. Uma primeira corrente, defendida especialmente pelo falecido professor Damásio de Jesus, admite a aplicação da Lei 9.099/95. Segundo o professor, “[c]omo se sabe, não há confundir crime com contravenção. Cuidando-se, ademais, de norma restritiva de direitos fundamentais (porquanto veda a incidência de medidas alternativas à prisão), merece interpretação estrita; vale dizer, onde se lê crimes, não se pode interpretar infrações penais.3 Diante desta premissa, seria possível o oferecimento de transação penal ou da suspensão condicional do processo ao agressor contraventor, ambos institutos despenalizadores previstos na Lei dos Juizados Especiais.

Em sentido contrário está o entendimento adotado pelos Tribunais Superiores. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, a expressão “aos crimes” contida no artigo 41 da Lei Maria da Penha deve ser interpretada de forma “a não afastar a intenção do legislador de punir, de forma mais dura, a conduta de quem comete violência doméstica contra a mulher, afastando de forma expressa a aplicação da Lei dos Juizados Especiais.4 O Supremo Tribunal Federal (STF) , por sua vez, justifica o afastamento da Lei 9.099/95 às contravenções penais praticadas em contexto de violência doméstica e familiar a partir dos artigos 98, inciso I5 e 226, §8º6, ambos da Constituição Federal de 19887.

Vem prevalecendo, portanto, a impossibilidade de aplicação da Lei. 9.099/95 às contravenções penais cometidas em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.

2 Vias de fato e impossibilidade de substituição da pena de prisão simples por restritiva de direitos

A mesma discussão ocorre, mutatis mutandis, acerca da possibilidade ou não de substituição da pena de prisão simples prevista às contravenções penais cometidas em contexto de violência doméstica e familiar por pena restritiva de direitos. O artigo 44, inciso I, do Código Penal Brasileiro prevê dentre os requisitos para a conversão de determinada pena em restritiva de direitos quando: “aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo”.8

Novamente, observa-se que o legislador brasileiro empregou a palavra “crime” ao impossibilitar a conversão de eventual pena aplicada em restritiva de direitos quando praticado com violência ou grave ameaça. O Superior Tribunal de Justiça, contudo, vem dando uma interpretação ampliativa ao tema, vedando a conversão em pena restritiva de direitos, da pena aplicada em condenação pela prática de contravenção penal de vias de fato cometida em contexto de violência doméstica e familiar.9 Diante da consolidação desta posição pelo Tribunal da Cidadania, foi inclusive editada a Súmula 588: “A prática de crime ou contravenção penal contra a mulher com violência ou grave ameaça no ambiente doméstico impossibilita a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos”.

O Supremo Tribunal Federal possuía posição em sentido contrário, admitindo a aplicação do art. 44 do Código Penal à contravenção penal de vias de fato cometidas em contexto de violência doméstica e familiar.10 Mais recentemente, e se valendo dos mesmos fundamentos adotados pelo Superior Tribunal de Justiça, a Corte Constitucional Brasileira alinhou-se a posição do Tribunal da Cidadania.11

3 Impossibilidade de prisão para garantir a execução de medidas protetivas de urgência anteriormente deferidas

Para finalizar os comentários atinentes à contravenção penal de vias de fato, chama-se a atenção para um detalhe bastante oportuno – e que as vezes passa ao largo da doutrina brasileira: a impossibilidade de decretação da prisão preventiva do agressor, com fulcro no art. 313, inciso III, do CPP, quando este incidir nas penas de uma contravenção penal.

O art. 313, III, do Código de Processo Penal estabelece a possibilidade da decretação de prisão preventiva “se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência”. Ao utilizar a palavra “crime, o legislador excluiu as contravenções penais praticadas em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher das hipóteses aptas a justificarem a prisão preventiva do agressor para garantir a execução de medidas protetivas de urgência (MPUs).

Diferentemente do entendimento adotado nos dois tópicos anteriores, neste tema – talvez por evolver uma das possibilidades de prisão cautelar em nosso ordenamento jurídico –, o Superior Tribunal de Justiça optou por adotar um raciocínio restritivo, não admitindo a interpretação do vocábulo “crime” utilizado pelo art. 313, inciso III, do Código de Processo Penal, como “infrações penais”, para fins de segregação cautelar do autor de vias de fato.12

4 Modalidade da ação penal

Ao editar a Lei de Contravenções Penais em 1941, o legislador brasileiro foi categórico ao optar pela ação penal pública incondicionada como modalidade a ser aplicada a toda e qualquer contravenção penal praticada em território brasileiro. Todavia, com o advento da Lei dos Juizados Especiais, e a consequente exigência de representação aos casos de lesões corporais leves e lesões culposas (art. 88 da Lei 9.099/95), parcela da doutrina passou a sustentar que, se a lesão corporal possui a iniciativa da sua persecução condicionada à representação, por uma questão de proporcionalidade, o processamento da contravenção penal de vias de fato também deveria ser condicionado à representação.13

O raciocínio, contudo, não deve ser sequer cogitado aos casos envolvendo a prática de vias de fato praticadas em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher. E são três os principais argumentos.

Primeiro, pois, conforme já explicado, a Lei Maria da Penha veda a aplicação de qualquer dispositivo contido na Lei 9.099/85, dentre eles, o referido art. 88 que prevê a exigência de representação em casos de lesão corporal leve ou culposa. Segundo, o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) já reconheceu que, em casos de lesões corporais – independentemente se dolosa ou culposa, leve, grave ou gravíssima –, quando praticadas em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher, a ação será sempre publica incondicionada. Por fim, ao editar o Decreto-Lei 3.688/41, o legislador foi claro em sua escolha: contravenções penais são processadas por ação penal pública incondicionada (art. 17 da Lei das Contravenções Penais).

O tema já foi apreciado inúmeras vezes pelos Tribunais Superiores e ambos reconhecem o caráter público e incondicionado da ação penal envolvendo a contravenção penal de vias de fato praticada em contexto de violência doméstica e familiar.14

Espero que tenham gostado do texto desta semana.

Até a próxima!

1 Conclusão do autor após realizar extensa pesquisa na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça envolvendo o tema. Sobre a contravenção penal de perturbação de tranquilidade, esta foi revogada pelo advento da Lei. 14.132/2021.

2 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. vol. 1. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023. p. 134.

3 JESUS, Damásio de. Lei das Contravenções Penais Anotada. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 34

4 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. CC 102.571/MG. Rel. Min. Jorge Mussi, Terceira Seção, julgado em 13/05/2009.

5 Art. 98. “A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: I – juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”.

6 Art. 226, §8º: “O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”.

7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 106212. Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 24/03/2011.

8 Art. 44, inciso I, do Código Penal.

9 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. AgRg no HC 811.126/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 25/09/2023.

10 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 131160. Rel. Min. Teori Zavascki, Segunda Turma, julgado em 18/10/2016 e HC 132342, Rel. Min. Dias Toffoli, Segunda Turma, julgado em 30/08/2016.

11 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 137888. Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, julgado em 31/10/2017.

12 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. HC 437.535/SP. Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, relator para acórdão Min. Rogério Schietti Cruz, julgado em 26/06/2018.

13 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Comentadas. Vol. 1. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, pp. 134.

14STJ, AgRg no HC n. 713.415/SC, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 22/2/2022, DJe de 25/2/2022. No STF: Rcl nº 29049, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 13/12/2017