Com a alta dos preços da soja ocorrida a partir do ano de 2020, iniciou-se, ao longo de 2021, um movimento de pretensão de quebra contratual pelos produtores que não gostariam de estar mais vinculados aos preços anteriormente acordados com os traders (compradores) por meio dos contratos de compra e venda futura de soja, valendo-se de um argumento que se tornou frequente, relacionado a como a pandemia afetou a economia do contrato.
Tendo ocorrido movimento semelhante há quase 20 anos – ainda que por motivos diversos –, quando muitos contratos foram revisados no estado de Goiás, acendeu-se uma luz de alerta a respeito de como os tribunais iriam se comportar diante dessa nova discussão relacionada à mudança dos preços da soja no mercado internacional e seu reflexo doméstico.
É importante fazer um balanço do ocorrido agora em 2021 a partir de dados, a fim de que agentes econômicos possam avaliar suas estratégias a respeito do foro mais adequado para solução de suas disputas, podendo por exemplo, optar por outros foros ou mesmo arbitragem, se se entender que a Justiça paulista não está compreendendo adequadamente a natureza econômica do negócio em disputa (talvez São Paulo fique muito distante da realidade do campo) ou a repercussão de seus julgados no mercado. Dados podem ser contraintuitivos.
Nesse sentido, o presente artigo pretende trazer como o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) julgou as ações envolvendo a quebra contratual dos contratos de compra e venda futura de soja a partir de 2020. Foram pesquisadas decisões judiciais, no site do tribunal, julgadas entre 1º de janeiro de 2020 e 31 de outubro de 2023. Todas as decisões encontradas nesse período relacionadas à compra e venda futura de soja e imprevisão e/ou onerosidade excessiva foram examinadas (roupagem jurídica mais comum para enquadramento da pandemia), e, a partir da análise e do devido recorte temático, 43 decisões foram consideradas pertinentes[1].
Sendo assim, tem-se na jurisprudência avaliada 43 decisões do TJSP, distribuídas entre 2020 e 2023, conforme o seguinte gráfico:
Figura 1: Gráfico do número de decisões do TJSP a cada ano
Fonte: Elaborado pelo autor, 2023.
Fica evidente, portanto, o expressivo aumento do número de julgados de 2020 para cá, sendo que das 43 decisões analisadas, apenas 7 foram ajuizadas antes de 2020, e houve, desde então, um significativo aumento no preço da soja na cotação internacional, gerando discussões internas no país (até 2023).
Visando se aproveitar, oportunisticamente (no jargão econômico), dos altos preços da soja no mercado spot, muitos produtores rurais buscaram, então, frustrar os negócios já celebrados, ajuizando ações de revisão contratual, assim como embargos à execução, a depender do caso, de modo a gerar o aumento de decisões acima mencionado.
Tais decisões são refletidas no gráfico abaixo, destacando-se as soluções dadas pelo TJSP em cada caso:
Figura 2: Gráfico dos resultados das decisões do TJSP
Pormenorizando os números do gráfico acima, tem-se que:
(i) 65% das decisões julgaram pela Manutenção Total do negócio jurídico; 28 decisões, portanto, mantiveram e reafirmaram integralmente os termos e condições dos contratos exatamente como pactuados, incluídos aqui as obrigações de fazer, os pagamentos, suas cláusulas, multas e os prazos conforme estabelecidos pelas partes no momento da celebração dos instrumentos.
Nessas decisões, os fundamentos consistiram, principalmente, nos seguintes: (a) inaplicabilidade do CDC, portanto categorização como contrato empresarial; (b) inaplicabilidade da Teoria da Imprevisão; (c) observância ao princípio do pacta sunt servanda; (d) entendimento dos riscos levantados como riscos inerentes aos contratos do agronegócio; e (e) observância ao princípio de intervenção mínima do Estado nas relações privadas empresariais;
(ii) 28% das decisões foram no sentido de Manutenção Principal e Revisão Acessória do contrato, ou seja, 12 decisões preservaram a obrigação principal dos contratos, qual seja a efetiva entrega da soja ou, conforme o caso, o pagamento dos valores devidos a esse título, no entanto, revisou o contrato no que tange às suas estipulações acessórias, como as previsões relativas à cláusula penal, indenização por wash-out e estipulação contratual dos honorários advocatícios.
Para a revisão de referidas obrigações acessórias, as decisões foram fundamentadas, majoritariamente, com: (a) caracterização de bis in idem na cumulação das multas moratória e compensatória; e (b) redução equitativa e proporcional das multas, nos termos do art. 413 do CC.
Com relação a essas decisões de Manutenção Principal e Revisão Acessória do contrato, importante destacar que, ao revisar as previsões relativas à cláusula penal e à indenização por wash-out, o TJSP acabou por prejudicar economicamente as traders de soja (compradoras), fazendo com que essas tenham que arcar com prejuízos decorrentes do inadimplemento dos produtores rurais, principalmente no que se refere aos custos de diferença entre o valor da soja pactuado entre as partes no contrato e o valor de mercado que a compradora terá que pagar para poder cumprir com suas demais obrigações de comercialização da soja;
(iii) e, por fim, 7% das decisões julgaram pela Rescisão ou Indeferimento da Tutela Antecipada, sendo 2 decisões de indeferimento de tutelas antecipadas de urgência, visando, em um caso, à entrega da soja, e no segundo caso, ao sequestro da soja, sob a principal justificativa de que estariam ausentes os requisitos de probabilidade do direito e perigo da demora.
Ainda, contrariando todas as outras decisões objeto de análise deste trabalho, 1 decisão julgou pela rescisão do contrato de compra e venda futura de soja, sob os seguintes argumentos: (a) aplicação do CDC; (b) as partes não estariam obrigadas a permanecerem vinculadas ao contrato; (c) partes teriam um direito à rescisão do contrato; (d) caracterização de impossibilidade de cumprimento; e (e) inexistência de óbices ao desfazimento do negócio.
Em conclusão, embora o TJSP tenha se mostrado majoritariamente favorável à manutenção dos contratos de compra e venda futura de soja, atentando-se ao ocorrido em Goiás e atuando em linha com o entendimento do STJ, em um número considerável de casos a atuação revisional do TJSP com relação às estipulações acessórias dos contratos acaba por favorecer o inadimplemento dos produtores rurais e impor às compradoras um ônus financeiro de arcar com os custos de diferenciais de mercado para poder cumprir com suas obrigações posteriores. Tais prejuízos podem impactar não só as respectivas compradoras, mas toda a cadeia agroindustrial da soja, como foi possível verificar no episódio ocorrido entre 2002 e 2004 em Goiás.
Para respeitar de fato toda a cadeia agroindustrial em que os contratos de compra e venda futura de soja se inserem, assim como efetivamente evitar que os efeitos gerados pelas decisões reformatórias ocorridas há 20 anos se repitam, o TJSP precisaria se posicionar ainda mais em linha com os entendimentos doutrinários e do STJ, para, assim, preservar os negócios jurídicos celebrados e resguardar a segurança jurídica a eles relacionada (inclusive em relação a cláusula de “wash-out”).
Dessa forma, cabe ao TJSP consolidar o entendimento dos contratos de compra e venda futura de soja como contratos empresariais, afastando, assim, a incidência do CDC, e da mesma maneira considerar como previsíveis e inerentes ao negócio os eventos de oscilação dos preços, flutuação cambial e interferências naturais, como seca, pragas ou chuvas, entre outros.
Por fim, devem ser preservados os princípios da intervenção mínima, da liberdade contratual, da autonomia da vontade e, principalmente, do pacta sunt servanda, garantindo, dessa forma, maior segurança jurídica ao sistema agroindustrial da soja, e ao agronegócio como um todo.
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Este texto é uma versão reduzida e adaptada de trabalho de conclusão de curso apresentado na Escola de Direito da FGV-SP, de modo que a versão estendida da pesquisa pode ser encontrada no site da Instituição.
[1] Os critérios metodológicos são expostos no referido trabalho, acessível pelo site da FGVSP.