O que fazer quando o Estado, que exige pesadas obrigações legais, fiscais e regulatórias das empresas formais, é incapaz de garantir o mais básico dos deveres republicanos: o monopólio do uso legítimo da força e a segurança pública?
Essa pergunta não é retórica. Ela expressa um paradoxo vivido diariamente por prestadoras de serviços de telecomunicações que atuam em regiões crescentemente dominadas por organizações criminosas, onde a ausência do Estado não é apenas sentida – é substituída por uma nova ordem, imposta pelo terror.
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A realidade do setor de telecomunicações, especialmente no serviço de banda larga fixa, tem revelado de forma aguda a erosão do chamado contrato social. Segundo a visão hobbesiana, consagrada na obra Leviatã, o Estado existe para evitar que a vida humana recaia no estado de natureza, marcado por uma guerra de todos contra todos.
Para isso, os cidadãos abrem mão de parte de sua liberdade em troca de proteção. No entanto, em comunidades urbanas e periféricas de diversos estados brasileiros, esse contrato foi rompido e o vácuo de autoridade estatal está sendo ocupado por milícias e facções.
O caso do Ceará ilustra com clareza essa crise institucional. Em diversas regiões da capital e do interior, operadoras de telecomunicações têm sido forçadas a suspender serviços ou sequer conseguem entrar em determinados territórios, sob risco de violência contra técnicos e sabotagem à infraestrutura. As redes ópticas legais são destruídas ou substituídas por redes clandestinas operadas por grupos criminosos, que oferecem serviços precários de internet e impõem cobranças semanais à população local, sob coação.
Além disso, há casos cada vez mais frequentes, em diversos estados da federação, de sequestro de torres de telefonia celular, em que facções assumem o controle territorial onde está a infraestrutura, exigindo pagamento mensal de “pedágio” para permitir sua operação e manutenção. Técnicos que tentam acessar as torres sem a anuência desses grupos sofrem ameaças, ataques ou são impedidos fisicamente de executar o serviço. Esse tipo de coação transforma um ativo público relevante para a cidadania em instrumento de poder armado e fonte de financiamento para o crime.
Os moradores, por sua vez, vivem sob tutela paralela. São reféns, mas também consumidores forçados de uma pseudo-conectividade que não responde a padrões de qualidade, privacidade ou proteção de dados.
Essa prática, que pode ser caracterizada como terrorismo territorial, mina não apenas o setor econômico atingido, mas os próprios fundamentos da ordem pública. Cria-se um sistema paralelo de prestação de serviços, regido por regras extralegais, financiado por economias ilícitas e sustentado pelo medo.
Nesse cenário, o que resta às empresas que seguem a lei? Continuar arcando com tributos altíssimos, cumprir exigências regulatórias complexas e enfrentar concorrência desleal de grupos armados que exploram as populações mais vulneráveis?
A crise é dupla: uma crise de segurança e uma crise de isonomia institucional. A primeira diz respeito à falência do Estado em garantir presença física e jurídica nos territórios. A segunda, à incapacidade de reconhecer que, nessas condições, exigir das empresas formais o mesmo tratamento tributário e regulatório que se aplica a contextos seguros é perpetuar uma desigualdade que corrói o próprio sistema.
As consequências desse desequilíbrio são profundas. Primeiro, para os cidadãos, que ficam privados do direito à livre escolha de prestadores de serviços essenciais, vivendo sob coerção permanente. Segundo, para o mercado legal, que perde espaço, capacidade de investimento e motivação para operar em áreas de risco. E, por fim, para o próprio Estado, que enfraquece sua legitimidade, cede território e perde o controle sobre infraestruturas críticas para o desenvolvimento econômico e social.
Reconstruir contrato social é responsabilidade da União
Não se trata, evidentemente, de abdicar da legalidade ou reduzir as obrigações do setor. Trata-se de reconhecer a urgência de reconstruir o contrato social em áreas onde ele já ruiu. E isso só será possível com a atuação direta e coordenada do Estado brasileiro em seu nível mais elevado: a União.
As telecomunicações são serviço público essencial e de competência federal, conforme previsto no artigo 21, inciso XI da Constituição Federal. A responsabilidade pela integridade e funcionamento desse serviço em todo o território nacional é da União, o que inclui o dever de garantir que as redes operem com segurança e em conformidade com a legislação.
Quando o crime organizado ocupa o espaço das redes formais e impõe serviços clandestinos em regiões inteiras, trata-se de uma violação grave da soberania nacional e uma ameaça à ordem pública que extrapola a competência dos governos locais.
Por isso, é imperativo que o Ministério da Justiça e Segurança Pública assuma papel de liderança no enfrentamento a esse fenômeno. A Polícia Federal, com sua atuação constitucional no combate ao crime organizado e sua capacidade investigativa interestadual, deve ser mobilizada para proteger a integridade das redes de telecomunicações e reprimir com rigor as organizações criminosas que vêm se estruturando como operadoras paralelas em comunidades dominadas por facções.
Trata-se de um problema que não se restringe ao Ceará – há relatos semelhantes no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Pará, no Espírito Santo, em Pernambuco e em outras unidades da federação. A solução exige um plano nacional, coordenado entre União, estados e municípios, com prioridade real para a retomada territorial. Segurança pública, conectividade formal, escolas, políticas sociais e justiça precisam voltar a operar onde hoje impera o medo.
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O setor privado, por sua vez, pode ser parceiro estratégico nesse processo, desde que haja garantias mínimas para operar com segurança, previsibilidade e isonomia. Iniciativas como fundos de apoio à atuação em áreas de risco, mecanismos de compartilhamento de infraestrutura e estímulos fiscais específicos para regiões conflagradas podem compor esse novo pacto.
Mais do que nunca, é preciso lembrar que telecomunicações não são apenas um setor econômico. São um direito instrumental para a cidadania, a educação, o trabalho e o exercício da democracia. Quando o crime controla a rede, controla também o acesso à informação e à liberdade.
Restabelecer o contrato social é imperativo. E ele começa pela ação concreta do Estado brasileiro, em sua instância federal, como garantidor da ordem, da segurança e da legalidade. Só assim será possível reverter o avanço do crime sobre os territórios e proteger os cidadãos e empresas que ainda acreditam na lei.