Na balança da vida, entre uma criança e um idoso, qual direito prevaleceria? Qual raciocínio jurídico seria necessário percorrer para encontrar essa resposta? Ou a vida e valores inerentes a ela, indiscriminadamente, devem ser protegidos, independentemente de quem quer que seja?
Imaginemos a situação de um casamento, nasceu uma criança. O matrimônio teve fim, o pai se mudou para outro estado e a criança ficou exclusivamente aos cuidados da mãe e da avó materna. Anos após essa guarda compartilhada, de fato, entre mãe e avó, ambas decidiram oficializar judicialmente a guarda por direito. Tendo ficado explícito o cuidado da avó para com a neta, rapidamente foi proferida sentença favorável ao pleito.
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Meses após o trânsito em julgado, essa avó foi acometida por dengue, complicações, AVC e por fim, perdeu grande parte de sua autonomia, fazendo-se necessária a instituição da sua curatela. A avó que antes compartilhava a guarda da neta, passou a ser curatelada pela filha.
No momento da sentença de curatela, em audiência, promotor e juiz debateram e restou sentenciado que a filha exerceria a curatela da mãe, entretanto, em razão do estado de saúde da senhora idosa, a guarda que detinha da neta seria revogada.
Embora não tenha ficado explícito, tampouco minimamente justificado, o raciocínio que pairou no ar sobre a revogação da guarda foi: “se a idosa não tem capacidade para cuidar de si, como pode ser guardiã de uma criança?”
E é neste momento que adentramos à análise jurídica do caso. Quando o assunto é guarda e curatela, a primeira manifestação que vem à mente é a conceituação de ambos os institutos e principalmente o que os diferencia.
Nos termos do Estatuto da Criança e do Adolescente[1], guarda significa a obrigação de prestar assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.
Já a curatela está sujeita àqueles que, sendo maior de idade, por causa transitória ou permanente, não tem capacidade jurídica para manifestar sua vontade, seja por algum tipo de enfermidade mental ou psicológica, por dependência química ou de álcool ou até mesmos os pródigos[2].
Em resumo, a principal característica que os diferencia é que a guarda se aplica a crianças e adolescentes, e a curatela se aplica a adultos em situação de relativa incapacidade. Mas questiona-se: neste caso, foi acertada a sentença que revogou a guarda simplesmente por sua detentora passar da condição de adulta plenamente capaz, detentora da guarda compartilhada da neta, para a condição de curatelada?
Em uma análise rasa, para o exercício da guarda, é necessário prestar toda sorte de assistência à criança. Se aquele que presta tal assistência passa para a condição de necessitado de assistência para diversos atos da vida, poder-se-ia presumir que uma pessoa curatelada não teria condições de exercer a guarda.
Ocorre que com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, no ano de 2015, as limitações impostas por qualquer enfermidade, deixaram de limitar o exercício da capacidade civil, para restringir apenas, e se necessário, aos atos de natureza negocial e patrimonial, conferindo a essas pessoas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, poder e autonomia para todos os demais atos da vida civil.
O referido estatuto adota o modelo social da deficiência, de forma a incluir a pessoa com deficiência na sociedade de forma igualitária, reconhecendo-se a sua autonomia em igualdade de condições com as demais pessoas.
Mais especificamente, o artigo 6º, inciso VI, do estatuto prevê que a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa, inclusive para exercer o direito à guarda, à tutela, à curatela e à adoção, como adotante ou adotando, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas.
No caso em análise, estão em disputa os interesses e direitos da criança e da idosa curatelada. Há de se observar ainda que o princípio da convivência familiar e comunitária é um direito fundamental de ambas (na condição de criança e curatelada) garantido por lei na Constituição Federal (artigo 227) e no ECA (artigo 19, caput).
Portanto, considerando que o Estatuto da Pessoa com Deficiência é explícito no intuito de garantir o exercício de todos os direitos inerentes à capacidade civil, além de proteger as pessoas que têm impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial contra a marginalização social, não restam dúvidas de que é possível, sim, a continuação do exercício de guarda por pessoa que passou à condição de curatelada.
[1] Estatuto da Criança e do Adolescente.
Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais. (Vide Lei nº 12.010, de 2009) Vigência
[2] Código Civil
Art. 1.767. Estão sujeitos a curatela:
I – aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)
III – os ébrios habituais e os viciados em tóxico; (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015) (Vigência)
V – os pródigos.