Continuidade de Maduro na Venezuela impõe dilema político a Lula contra o bolsonarismo

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O presidente Lula (PT) vai calçar os sapatos da oposição venezuelana na disputa sobre quem venceu as eleições presidenciais do país vizinho contra o ditador Nicolás Maduro, supostamente reeleito com pouco mais de 51% dos votos? Considerando os relatos de que o regime chavista teria dificultado o acesso de eleitores a urnas, a pergunta poderia ser modificada à luz da experiência brasileira recente.

Afinal, o cidadão Luiz Inácio Lula da Silva já esteve na mesma situação, quando Jair Bolsonaro (PL), então candidato a reeleição, usou a Polícia Federal para dificultar o trânsito de cidadãos no Nordeste, região historicamente mais favorável ao candidato do PT, a locais de votação no segundo turno das eleições de 2022. Tivesse essa operação sido bem-sucedida, hoje estaríamos ainda sob o comando de um Chefe de Estado e Governo que sempre exibiu credenciais golpistas.

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A grande diferença entre Brasil e Venezuela que foi crucial para que não seguíssemos o destino autoritário do país vizinho é a existência nestas bandas de uma Justiça Eleitoral independente. Em Caracas, o Conselho Eleitoral Nacional (CEN) está aparelhado por partidários chavistas depois de mais de 25 anos desde que o fundador dessa tendência política, o ex-militar Hugo Chávez, chegou ao poder pelo voto direto. Em 1992, ele havia liderado uma tentativa de golpe malsucedida. Foi preso em seguida e voltou ao jogo político depois de uma anistia.

Mais que criar limitações a eleitores de oposição para comparecer às urnas, a ilegitimidade das eleições venezuelanas decorre do caráter autoritário do regime chavista. Na cartada mais recente para se manter no poder, o chavismo negou a Maria Corina Machado, a principal líder oposicionista, o registro de sua candidatura. Assim, as principais forças de oposição indicaram o diplomata aposentado Edmundo Gonzalez, que teria obtido 44% dos votos segundo os resultados oficiais do CEN. Na presente conjuntura, é impossível auditar os resultados haja vista as limitações impostas por Maduro à participação de observadores internacionais no pleito.

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Numa perspectiva histórica, independentemente das disputas atuais, o caos venezuelano deriva uma lição clara: a manutenção de um grupo com pretensões autoritárias, com vasto apoio militar e o beneplácito de líderes internacionais relevantes, erode o princípio básico de qualquer definição mínima de democracia, que é a realização de eleições livres e justas em que todas as forças que se apresentam podem competir sem vieses econômicos e institucionais significativos.

Esse já era o cenário da Venezuela pré-eleição, não obstante a celebração em outubro passado do Compromisso de Barbados, em que Maduro e seus adversários comprometeram-se, com a chancela de Brasil e Estados Unidos, a realizar na Venezuela eleições livres e justas.

Talvez o país vizinho tenha atingido um ponto de não-retorno, em que apenas um processo ambíguo, com o apoio de militares e forças externas, pode construir as bases para reestabelecer a democracia. Chávez nunca deveria ter recebido anistia. Uma vez golpista, um político pode esconder suas pretensões autoritárias com vestes institucionais e, assim, instaurar um projeto autoritário de longo prazo.

Tal descrição cai como uma luva em Bolsonaro, ainda o grande adversário de Lula, um dos líderes que chancelou a ascensão chavista. O atual presidente brasileiro, portanto, cairá em contradição caso reconheça a vitória de Maduro—uma ação por ora suspensa enquanto as atas das urnas venezuelanas não forem verificadas.

Senão por coerência política, Lula deveria seguir cauteloso a respeito da Venezuela por razões de Estado. Caracas pode produzir uma nova crise migratória que nos impactaria, além, claro, de voltar a expressar abertamente suas pretensões territoriais em relação à Guiana Essequiba, que reúne 70% do território da Guiana, cujo acesso para fins de conquista militar depende da passagem de tropas por território brasileiro.

À esquerda brasileira também cabe revisitar seu apoio a Maduro, fruto de um autoritarismo bastante similar ao pretendido por Bolsonaro. Essa contradição, que há tempos ronda Lula e seu partido, terá de ser resolvida não apenas por razões éticas, que raramente prevalecem na política, mas sobretudo por uma questão de pragmatismo para quem quer e só pode se manter no governo federal brasileiro de modo democrático.