Em cada plataforma de petróleo construída ou torre eólica instalada no país, uma parcela das peças, da mão de obra e até mesmo da tecnologia empregada, é brasileira. Mas o quanto dessa parcela é devida à competitividade inerente aos fornecedores, e quanto é devida às políticas públicas destinadas a aumentar essa parcela?
Com essa essência, a Política de Conteúdo Local (PCL) tem funcionado como uma ferramenta que, ao longo dos anos, tenta canalizar as demandas do setor por equipamentos e serviços para empresas sediadas no país. Isso tem contribuído, em alguns casos, para incentivar a expansão da capacidade produtiva nacional. No entanto, o instrumento, aplicado de forma isolada em relação a outras ferramentas possíveis de políticas de desenvolvimento, sempre gerou discussões e polêmicas na sociedade.
No contexto da transição energética, desde que formulada de forma adequada, uma política de desenvolvimento de conteúdo local poderia ser uma ferramenta útil para incentivar a expansão da capacidade industrial e tecnológica no setor de novas fontes de energias renováveis e tecnologias de descarbonização, capaz de contribuir aos objetivos da reindustrialização verde e a geração de empregos qualificados no país. Contudo, no caso do setor de petróleo e gás natural, essa ferramenta não está associada aos necessários incentivos para promover o desenvolvimento de capacidade produtiva nem tecnológica nesses temas cruciais para acelerar a transição para uma economia de baixo carbono no Brasil.
Na última década, algumas mudanças no conteúdo local auxiliaram na simplificação das regras e estímulo à retomada do setor. O pontapé para essas transformações se iniciou com a Resolução CNPE 7/2017, que estabeleceu diretrizes para a definição de conteúdo local em áreas unitizáveis. Além disso, a nova norma indicou novos percentuais mínimos para futuras rodadas de concessão e partilha de produção, seja para blocos terrestres ou marítimos. Essa medida foi vista como uma simplificação das exigências vinculadas ao conteúdo local, visando a reduzir o impacto dessa ferramenta de política industrial na competitividade do setor no Brasil e reconhecendo as limitações conjunturais e estruturais do momento.
No ano seguinte, em 2018, a Resolução ANP 726 permitiu a regulamentação de mecanismos contratuais de isenção, conhecido como waiver, e também trouxe ajustes para a transferência de excedentes de conteúdo local atingidos pelas operadoras em algumas áreas. Nesse caso, se uma operadora de petróleo, por exemplo, demanda um equipamento específico para uma operação e esse maquinário não tiver fabricante brasileiro capaz de fornecer de forma competitiva em preço e prazo, a empresa pode solicitar um waiver à Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) para a sua importação – isso sem sofrer sanções contratuais. Os pedidos de isenção se aplicam a situações em que não há um fornecedor nacional, em cenários de preço ou prazos excessivos ou ainda indisponibilidade de uma nova tecnologia.
Tais alterações tiveram boa recepção pelas empresas do setor energético, uma vez que tornaram o ambiente de investimentos mais atrativo e promoveram um cenário mais alinhado à realidade da capacidade de fornecimento da indústria nacional. “O Brasil não pode se colocar numa posição subordinada de fazer a transição só por fazer, de aumentar sua matriz energética e elétrica sustentável, mas importando todo o maquinário e equipamentos de alto valor agregado”, opina Uallace Moreira Lima, secretário de Desenvolvimento Industrial, Inovação, Comércio e Serviços do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC).
O secretário também acredita que o país tem condições e cadeias produtivas densas e verticalizadas, com possibilidade de ofertar essa capacidade para a promoção da transição energética. “Uma política de desenvolvimento da cadeia produtiva, em sua essência, é um pilar estratégico para o avanço da transição energética no Brasil. Vai além de uma regra de obrigação, representando uma visão abrangente para fomentar a capacidade industrial e tecnológica nacional”, afirma o senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), presidente da Frente Parlamentar de Recursos Naturais e Energia (Frente de Energia).
No final do ano passado, entrou em vigor a Lei 15.075/2024, um dos marcos mais recentes do regimento desta política no setor de petróleo e gás. A partir de então, criou-se o conceito de excedentes de conteúdo local entre contratos para exploração e produção de. Assim, houve uma mudança de paradigma. Em vez de penalizar as empresas que não atingissem os percentuais exigidos, houve a transição de premiação para as que ultrapassaram as metas estabelecidas.
“O novo conceito supera a lógica de punir quem faz menos para bonificar quem faz mais. A novidade ainda precisa ser explorada e, possivelmente, aprimorada, mas é uma mudança promissora”, diz Telmo Ghiorzi, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Bens e Serviços de Petróleo (ABESPetro).
O secretário Uallace Moreira Lima também destaca o conteúdo local como peça-chave da política de neoindustrialização. “A finalidade principal dessa política é proteger e gerar emprego e renda e promover o desenvolvimento tecnológico das cadeias produtivas”, disse.
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Segundo ele, instrumentos como compras públicas e editais com margem de preferência têm potencial para estimular a produção nacional e a inovação em setores estratégicos como energia, mobilidade e hidrogênio de baixo carbono. Embora seu uso ainda seja limitado, uma vez que a lei permite, por ora, a transferência de excedentes apenas entre contratos da mesma empresa, o secretário do MDIC apontou que o novo modelo traz um incentivo positivo ao desenvolvimento da indústria nacional, além de abrir espaço para futuros aprimoramentos na regulamentação.
Novas fronteiras
O avanço da exploração em novas fronteiras representa uma chance estratégica de impulsionamento da cadeia nacional de fornecedores da indústria energética. Um dos exemplos é a Margem Equatorial, uma grande faixa litorânea que se estende do Rio Grande do Norte ao Amapá – e que abriga um importante potencial petrolífero.
A Petrobras estima que as reservas são de pelo menos 30 bilhões de barris de petróleo. Um valor que gera a expectativa de que o local se torne um novo pré-sal. Apesar de ser considerada uma nova fronteira exploratória para a produção de petróleo e gás no Brasil, a área ainda é pouco explorada. Além disso, é vista como uma região com sensibilidade ambiental, por possuir uma série de recifes, manguezais e comunidades tradicionais. Por isso, para o aproveitamento desse potencial, é necessário seguir rigorosas exigências de licenciamento ambiental.
A região é tida como estratégica para o futuro energético do país, sendo um polo de atração de investimentos e estímulo da cadeia nacional de bens e serviços. A abertura de novos territórios para a atividade exploratória tende a ampliar a demanda por mão de obra especializada. Como resultado, a expectativa é de desenvolvimento econômico local e nacional.
Ao interiorizar investimentos, há o estímulo a polos industriais em regiões como Norte e Nordeste, de maneira a contribuir para uma transição energética mais justa. Isso significa distribuir ganhos econômicos e tecnológicos para territórios historicamente marginalizados, por meio da geração de renda, empregos qualificados e inclusão na escala produtiva nacional.
Para que esse potencial seja concretizado, no entanto, Ghiorzi, da ABESPetro, pontua a relevância da previsibilidade e estabilidade regulatória, essenciais para atrair investimentos a longo prazo e garantir a formação de profissionais qualificados. “O desafio crítico é assegurar que a expansão para novas fronteiras seja contínua e estável”, analisa. Ainda assim, ele acredita que o processo é positivo: “A cadeia produtiva tem segmentos já avançados do ponto de vista de capacidades tecnológicas e outros com lacunas a serem cobertas”.
Na visão do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP), para que a indústria nacional aproveite oportunidades em regiões como a Margem Equatorial, é essencial repensar os modelos atuais. “Esses aprimoramentos devem buscar incentivar o desenvolvimento industrial com base em critérios de competitividade, especialmente nos segmentos em que a indústria brasileira apresenta vantagens comparativas”, avalia Pedro Alem, gerente-executivo de Áreas Terrestres, Águas Rasas e Política Industrial do instituto.
O senador Veneziano também opina sobre esse aspecto: “O modelo de fomento à produção nacional, com suas obrigações e penalidades, teve seu papel em determinado momento. No entanto, ele não tem sido o mais eficiente para impulsionar a inovação e a competitividade que o setor energético exige hoje. É hora de evoluir para uma política mais ampla, com foco em PD&I e competitividade internacional”, defendeu.
Este conteúdo faz parte do Joule, editoria especial com matérias e um podcast especial do setor de energia do JOTA, feito em parceria com o Instituto Brasileiro de Transição Energética (Inté).
“O modelo atual não foi desenhado com foco explícito na transição de baixo carbono”, explicou o deputado Bohn Gass (PT-RS), vice-presidente de Política Industrial da Frente de Energia. “Precisamos de políticas públicas que estimulem a indústria nacional a desenvolver soluções para a descarbonização, como captura de carbono e eficiência energética. Assim, poderemos não apenas adotar, mas também produzir e exportar tecnologias limpas”, complementou.
Nesse sentido, o uso de regulamentação que incentiva a bonificação do conteúdo local excedente pode premiar essas empresas que investem em inovação e sustentabilidade. É esperado que sejam priorizados projetos com menor impacto ambiental e que potencializam a transição energética sustentável. Esse é um estímulo à adoção de processos não só mais limpos, como também mais eficientes.
“A descarbonização é um objetivo transversal a todas as missões da Nova Indústria Brasil (NIB). Está presente desde a renovação do parque industrial até o hidrogênio de baixo carbono”, diz Lima, do MDIC.
Para Bohn Gass, as novas fronteiras representam uma oportunidade “gigantesca” para o desenvolvimento industrial do país, mas para que essa oportunidade se traduza em benefícios à sociedade brasileira, “é imprescindível uma política robusta que incentive o desenvolvimento conjunto de tecnologias e a inserção das empresas nas cadeias globais de valor.”
Eólica offshore e descarbonização
A indústria eólica offshore, ou seja, produzida em alto-mar, é uma das maiores oportunidades para o Brasil consolidar sua liderança na transição energética global. Como o desenvolvimento dessa tecnologia ainda é incipiente, há uma janela estratégica para implementar essa indústria com grande participação brasileira desde a sua origem.
Diferente da técnica onshore, já bem estabelecida em estados como Ceará e Rio Grande do Norte, o modelo offshore demanda novas soluções tecnológicas e profissionais altamente capacitados. Equipamentos especializados – por exemplo turbinas de grande porte, fundações submarinas e sistemas de ancoragem – são alguns exemplos dessas demandas
Especialistas observam nessa oportunidade enquanto catalisadora, ao impulsionar a fabricação nacional desses equipamentos e a formação de corpo profissional técnico.
Ao articular políticas industriais que impulsionam inovação, desenvolvimento tecnológico e encadeamento produtivo, o Brasil não apenas atende à demanda interna – como ainda se posiciona internacionalmente como exportador de soluções energéticas limpas. “Podemos ser a maior plataforma global de desenvolvimento e exportação de respostas para os desafios da transição energética global”, afirma Telmo Ghiorzi, presidente executivo da ABESPetro.
Apesar de seu valor estratégico, a política de conteúdo local ainda tem obstáculos estruturais. Burocracias excessivas, insegurança regulatória e ausência de uma articulação mais consistente com a política industrial brasileira desafiam esse cenário. Do ponto de vista de exportação, Lima, do MDIC, afirma que esta é uma oportunidade de crescimento: “Precisamos voltar a exportar serviços. Empresas que exportam promovem um processo de internacionalização da economia brasileira.”
“Para que os impactos sejam duradouros, essa política não deve se basear apenas em exigências, mas em um apoio robusto à indústria nacional para que ela seja competitiva globalmente”, acrescentou o senador Veneziano. Para ele, garantir que empresas brasileiras atendam ao mercado externo é o que dará sustentabilidade a longo prazo à geração de empregos e polos industriais.
Nos últimos anos, cresce o entendimento de que a simples exigência de percentuais mínimos não é suficiente para garantir o fortalecimento da cadeia produtiva. Como lembra Alem, do IBP, “ao longo dos últimos 25 anos, o Brasil adotou um modelo baseado na obrigatoriedade de conteúdo local, com a aplicação de multas onerosas em caso de descumprimento, algo que não tem gerado os resultados esperados”.
Para o economista e professor da FGV, Samuel Pessoa, um dos principais entraves da política de conteúdo local foi a rigidez do modelo adotado entre os anos 2000 e meados da década seguinte. “O problema era o grau de detalhamento — que ficou conhecido como ‘tabelão’. O conteúdo local se aplicava a cada etapa do processo produtivo, isso encarecia e travava os investimentos”, afirmou.
Mudança de paradigma
O IBP, que representa operadoras e fornecedores do setor, defende uma mudança de paradigma. “Há amplo espaço para aprimoramentos na política de conteúdo local, com foco no estímulo à competitividade, à inovação e à nacionalização”, disse Alem, gerente-executivo do instituto.
Segundo ele, setores como o de sistemas submarinos (subsea) e a construção de módulos de FPSOs já demonstram capacidade de inserção internacional — e poderiam se expandir ainda mais com incentivos adequados. Essas são unidades móveis que realizam o processamento inicial do petróleo, bastante usados em campos de petróleo offshore.
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“O detalhamento excessivo aumentou o custo de conformidade e criou uma indústria especializada apenas em produzir relatórios para comprovar atendimento às exigências”, explicou Pessoa. Para ele, os altos custos verificados em projetos como a refinaria Abreu e Lima ou os estaleiros da indústria naval se devem, principalmente, ao mau desenho da política. “Só conseguimos avançar no pré-sal porque o modelo foi reformulado no governo Temer. Hoje, os critérios são mais equilibrados e abandonaram o formato engessado”, avaliou.
Para o deputado Bohn Gass, é necessário ir além das obrigações e penalidades: “Precisamos de uma política pública que agregue incentivos à pesquisa, desenvolvimento e inovação para construir uma base industrial verdadeiramente sustentável e competitiva.”
Para atravessar essas dificuldades, os especialistas apostam em ir além da exigência formal de percentuais e focar na construção de um ambiente coeso, com regras claras e metas definidas tanto para médio quanto para longo prazo. Para isso, parcerias com operadoras e empresas fornecedoras, universidades e centros de pesquisa, programas robustos de capacitação técnica e mecanismos de premiação para inovação são vistos como possibilidades nesse cenário.
Ghiorzi cita o exemplo do projeto de processamento de gás natural, criado em parceria da Petrobras, TechnipFMC e Universidade Federal de Itajubá (Unifei), em Minas Gerais. A iniciativa separa o dióxido de carbono no fundo do mar e injeta novamente nos reservatórios de petróleo. Embora não tenha sido uma tecnologia de descarbonização desenvolvida por causa de exigências do conteúdo local, o projeto trouxe uma solução inovadora para a produção de gás natural no país.
Ações concretas de política pública, como compras governamentais, linhas de crédito específicas e encomendas tecnológicas, podem também ter papel decisivo na consolidação de fornecedores nacionais. Nesse âmbito, o conteúdo local integra uma estratégia mais ampla de fomento à neoindustrialização brasileira. No escopo do programa Nova Indústria Brasil, o governo federal tem articulado ações de estímulo à produção nacional, à inovação e à geração de empregos de qualidade.
“Estamos falando de empregos que exigem alta qualificação e que fixam a população em suas regiões, combatendo desigualdades”, diz o deputado Bohn Gass. “Mas, para isso, é essencial que a política de conteúdo local tenha foco na inserção internacional das nossas empresas, criando um ciclo virtuoso de desenvolvimento nacional.”
“O conteúdo local, assim como a margem de preferência, são instrumentos que estimulam o desenvolvimento das cadeias produtivas no Brasil e preservar a possibilidade de internalizar e transferir tecnologias”, reforçou Lima, secretário do MDIC.
Entre os mecanismos destacados por ele estão os editais com margem de preferência de até 25%, o Plano Mais Produção – com financiamento por bancos públicos – e a Comissão Interministerial de Inovação para as Compras Públicas, que permite aplicar critérios de conteúdo local nas obras do PAC. O uso associado desses dispositivos permite o fortalecimento da indústria local, a garantia de previsibilidade de demanda e retorno de escala para empresas que investem em inovação e produção no país.
Segundo os especialistas, o conteúdo local precisa ser integrado dentro de uma estratégia de desenvolvimento industrial mais ampla com ferramentas de política pública convergentes, de forma a conectar a geração de emprego, a expansão da capacidade produtiva, a inovação tecnológica, a promoção das exportações e a descarbonização da economia.
A construção desse novo ciclo depende de uma política industrial moderna, capaz de incentivar progresso econômico, social e ambiental.