Constituição é bem clara quando separa competências regulatórias do setor de gás

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A Constituição Federal de 1988 acaba de completar 37 anos de sua promulgação, mas, mesmo com todo esse tempo de existência, é sempre oportuno revisitar o que diz a Lei Maior, especialmente quando alguns decidem confrontar um de seus princípios fundamentais: o pacto federativo.

Cláusula pétrea da Constituição, o pacto fixa um conjunto de regras que definem a organização político-administrativa do país, estabelecendo uma relação de cooperação entre a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios.

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No setor de óleo e gás natural, a Carta Magna traz uma abordagem bastante detalhada, com atribuições claras para a União e os estados, com base no princípio da predominância de interesse.

Desse modo, a União detém o monopólio da exploração, pesquisa e lavra; da importação; da exportação, e do transporte de petróleo e gás por conduto (art. 177, CF), enquanto os estados e o Distrito Federal detêm a competência para os serviços locais de gás canalizado (art. 25, § 2º, CF). Tais competências devem ser vistas como complementares.

No campo regulatório, isso começou a se desdobrar com a criação das agências reguladoras. Elas começaram a surgir na década de 1990, no cenário do Programa Nacional de Desestatização. Assim apareceu a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP), consolidando-se como agente regulador da indústria de petróleo, gás natural e biocombustíveis (Lei 9.478/97, art. 7°) sobre as matérias que são de alçada da União.

Importantíssimo observar que, pelo princípio do pacto federativo, não há hierarquia entre os entes. Assim sendo, eventuais desencontros de visão sobre quais são os limites entre as competências devem ser resolvidos por meio do federalismo cooperativo, assegurado o respeito ao pacto federativo e a autonomia dos entes federados (arts. 1° e 18 da CF).

A ANP, vale repisar, tem competência regulatória apenas restrita às matérias de alçada da União, sem poder para intervir em temas que a Constituição Federal atribui aos estados.

Por isso, parece um desperdício de tempo que a agência federal tenha submetido à Consulta Pública ANP 01/2025 uma minuta que invade a competência individual de cada estado.

Por óbvio, a definição das diretrizes, procedimentos e limites técnicos (diâmetro, pressão e extensão) para a classificação dos gasodutos de distribuição é um tema em que é claramente inquestionável a autonomia das agências reguladoras estaduais. Restaria à ANP, como agência federal, o dever de pacificar qualquer eventual ideia de regra classificatória com as peculiaridades e as competências de cada estado.

Outro ponto que desperta preocupação na normativa submetida à Consulta Pública ANP 01/2025 é a previsão de retroatividade da aplicação das novas regras aos gasodutos autorizados após 9 de abril de 2021, data da publicação no Diário Oficial da União da Lei 14.134/2021 (chamada de nova Lei do Gás).

A minuta proposta pela ANP dispõe que:

Os novos gasodutos, ou aqueles que tenham obtido autorização de construção ou autorização de operação após 9 de abril de 2021, ficarão sujeitos aos procedimentos e aos limites das características técnicas de diâmetro, pressão e extensão expressos nesta Resolução para fins da classificação como gasodutos de transporte”.

Mas essa retroatividade viola mais um princípio constitucional, que veda a possibilidade de retroatividade das normas (art. 5, XXXVI, CF). Esse dispositivo sabiamente garante a segurança e a estabilidade jurídicas.

É válido ressaltar que a aplicação retroativa, especialmente em projetos já autorizados, gera incerteza regulatória e compromete o planejamento, minando a confiança de investidores e a estabilidade das relações sociais e econômicas.

Por fim, para além das questões constitucionais, a Consulta Pública ANP 01/2025 por si só contém um grave equívoco processual: a ausência de Avaliação de Impacto Regulatório (AIR).

É uma lacuna que viola a Lei 13.848/2029 e o Decreto 10.411/2020, os quais exigem uma AIR para normativos de interesse geral que afetem agentes econômicos e consumidores.

Isso se configura claramente, uma vez que qualquer reclassificação ou alteração de projetos de gasodutos ativos remunerados via tarifa terá impacto direto em quem recebe a conta pelo consumo de gás natural. Além do mais, a falta de uma AIR não esclarece como seriam as consequências de uma eventual reclassificação de gasodutos de distribuição cujos custos foram pagos pelo consumidor estadual via tarifa.

Se já não fosse o bastante, a minuta da ANP não explica quem arcará com os custos da reavaliação e possível alteração de projetos já autorizados para que os gasodutos sejam adaptados para as especificações propostas.

Todas essas incongruências poderiam ser evitadas se fosse observado o Decreto 10.712/2021, que regulamentou a nova Lei do Gás, que propõe o “Pacto Nacional para o Desenvolvimento do Mercado de Gás Natural”, um acordo voluntário para que os União e estados trabalhem juntos para a harmonização das regras vigentes.

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O papel institucional da ANP, agora reforçada com dois novos diretores reconhecidos pela notória capacidade, que se juntam aos demais titulares igualmente competentes, é de atuar com critério, prudência e equilíbrio, coadunando os melhores interesses do país com os princípios basilares consagrados na Constituição Federal, que separam bem as competências de cada ente em nome de um pacto federativo, evitando, por conseguinte, indesejáveis judicializações.

É inquestionável a alçada dos estados para regular os gasodutos de distribuição no Brasil e qualquer interferência nesse sentido representa uma grave ameaça ao Pacto Federativo. A expectativa de todos que militam no mercado de gás e energia é de que prevaleça a prudência.