Ao longo da década de 1990, o Brasil viu surgir autarquias que tinham como peculiaridade a presença de uma relativa autonomia em relação ao presidente da República. Inspiradas nas antigas agências independentes dos Estados Unidos, tais entidades administrativas tinham como principal novidade a impossibilidade de dispensa imotivada de seus diretores durante o período de mandato.
A criação das agências reguladoras independentes no Brasil deu origem a um aceso debate a respeito de sua compatibilidade com a ordem constitucional vigente. Publicistas influentes passaram a sustentar que a autonomia das agências violava o princípio da separação de poderes, o sistema presidencialista de governo e o exercício da direção superior da administração pública pelo presidente da República, entre outros valores constitucionais.
O Supremo Tribunal Federal, porém, pacificou a discussão a partir do julgamento, em novembro de 1999, da medida cautelar na ADI 1.949/RS. Contrariando entendimento então sumulado[1], a corte entendeu válida a criação por lei de restrições à demissibilidade de dirigentes de autarquias pelo chefe do Poder Executivo. Nos anos seguintes, o Supremo teve algumas oportunidades de reafirmar sua jurisprudência. Em uma das mais recente delas, na ADI 6.696/DF, declarou constitucional lei que passou a exigir justo motivo para a exoneração do presidente e dos diretores do Banco Central do Brasil.
Há, por isso, quem defenda que o debate a respeito da constitucionalidade de agências autônomas estaria superado no Brasil. Sinal disso é que a discussão a respeito da independência do Banco Central do país centrou-se sobretudo em sua conveniência econômica e política – inclusive entre juristas. A própria divergência que se instaurou no julgamento no Supremo resumiu-se ao suposto vício de iniciativa e consequente inconstitucionalidade formal da lei que conferiu autonomia ao BC.
Contudo, a recente evolução da jurisprudência da Suprema Corte dos Estados Unidos, onde o modelo de agências independentes surgiu, parece demonstrar que a discussão não está superada – ao menos por lá. Duas recentes decisões indicam que a atual composição da corte guarda grande desconfiança de modelos institucionais que retiram do presidente da República o poder de interferir em órgãos administrativos. Há, inclusive, quem enxergue nelas um prenúncio do fim das agências independentes nos Estados Unidos[2].
Naquele país, a constitucionalidade de restrições legislativas ao poder do presidente de exonerar integrantes de agências reguladoras encontra um de seus principais fundamentos em um precedente da Suprema Corte da década de 1930. Em Humphrey’s Executor vs. United States, a corte entendeu válida disposição normativa que limitava a exoneração dos diretores da Federal Trade Commission – agência responsável pela proteção de consumidores contra práticas comerciais abusivas e anticoncorrenciais – aos casos de incompetência ou práticas ilícitas. A decisão reconheceu como ilícita a dispensa de um dos integrantes da FTC pelo então presidente Franklin Roosevelt por simples falta de confiança pessoal e afeição política.
Ao longo dos últimos anos, porém, defensores da chamada teoria do Executivo Unitário têm influenciado os integrantes da Suprema Corte norte-americana e, pouco a pouco, erodindo o entendimento firmado em Humphrey. Segundo a teoria, a Constituição dos Estados Unidos depositaria no presidente – e apenas nele – as funções próprias do Poder Executivo. Como consequência, o Congresso não estaria autorizado a impor limites ao exercício de tais funções pelo presidente, inclusive a livre exoneração dos integrantes de um órgão administrativo.
Uma das exceções a Humphrey foi construída em 2010, com o julgamento de Free Enterprise Fund vs. Public Company Accounting Oversight Board. Neste caso, a corte reconheceu a inconstitucionalidade de uma lei que atribuía exclusivamente à Security Exchange Commission, uma agência independente norte-americana, o poder de remover os integrantes de uma instituição que regula a atividade de contabilidade nos Estados Unidos, a PCAOB. A criação de uma instituição regulatória dotada de uma dupla camada de independência – pois seus membros somente poderiam ser removidos de maneira justificada por uma agência também dotada de independência – foi considerada uma excessiva restrição aos poderes de supervisão do presidente da República.
Dez anos depois, em Seila Law LLC vs. Consumer Financial Protection Bureau, a Suprema Corte demonstrou de maneira ainda mais clara sua atual desconfiança com a autonomia de órgãos do Poder Executivo. Fundada logo após a crise financeira de 2008, a CFPB é uma agência independente responsável por assegurar transparência e segurança a produtos financeiros oferecidos aos consumidores norte-americanos.
Ela foi criada com uma peculiaridade em relação às demais agências independentes: sua liderança não é composta por um colegiado, mas por um único diretor. A inovação foi suficiente para que uma apertada maioria de 5 a 4 reconhecesse sua inconstitucionalidade. Um dos argumentos vencedores é que tal modelo institucional concentraria de maneira excessiva poderes executivos nas mãos de um único indivíduo que não foi eleito para a Presidência do país, o que seria constitucionalmente inadmissível.
Seila Law é um precedente preocupante para aqueles que reconhecem na independência das agências um dos pilares da qualidade das políticas regulatórias. Uma leitura maximalista do julgado sugere que a corte enxerga como ilegítimas quaisquer instituições administrativas independentes que exerçam poderes executivos substanciais[3]. A depender da interpretação que se faça de tal conceito jurídico indeterminado, grande parte das agências independentes do país estaria condenada à inconstitucionalidade.
Além disso, dois dos nove magistrados que participaram do julgamento defenderam a total revogação do entendimento firmado em Humphrey. Em seu voto parcialmente dissonante do entendimento da maioria, os Justices Clarence Thomas e Neil Gorsuch, além de criticar o exercício de poderes normativos e adjudicatórios por instituições administrativas – o que revela um ataque mais amplo ao modo de funcionamento da administração pública norte-americana e ao chamado “estado administrativo”[4] –, afirmaram de maneira simples e direta que agências independentes são inconstitucionais[5].
Não se sabe se o recente histórico jurisprudencial representa apenas um recuo na tolerância da Suprema Corte norte-americana em relação às agências independentes ou se uma tendência que poderá culminar no reconhecimento da inconstitucionalidade do modelo como um todo. Frente à histórica influência que o direito regulatório norte-americano exerce sobre o Brasil, no entanto, a lição que se extrai é que o debate pode não estar definitivamente superado em nosso país.
[1] Súmula 25: “A nomeação a termo não impede a livre demissão, pelo Presidente da República, de ocupante de cargo dirigente de autarquia”.
[2] BOLEN, Cheryl; et. al. Supreme Court Casts Doubt on Future of Independent-Agency Heads. Bloomberg Law, 2020. Disponível em <https://news.bloomberglaw.com/daily-labor-report/supreme-court-casts-doubt-on-future-of-independent-agency-heads>. Acesso em 10 dez. 2023.
[3] SUNSTEIN, Cass; VERMEULE, Adrian. The Unitary Executive: past, present future. The Supreme Court Review, vol. 2020, nº 1, 2020, p. 85.
[4] Sobre o conceito de estado administrativo e sua aplicação ao Brasil, ver MIGUEIS, Anna Carolina. O estado administrativo no Brasil: um transplante jurídico imperfeito. Revista Eletrônica da Procuradoria Geral do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, 2022.
[5] “Continued reliance on Humphrey’s Executor to justify the existence of independent agencies creates a serious, ongoing threat to our Government’s design. Leaving these unconstitutional agencies in place does not enhance this Court’s legitimacy; it subverts political accountability and threatens individual liberty.”. Seila Law LLC v. Consumer Financial Protection Bureau, 591 US __ (2020).