Em fevereiro de 2023, abordamos, nessa coluna, sobre a Constelação Familiar e a utilização dessa prática pelo Poder Judiciário como método alternativo para a solução pacífica de controvérsias (Lei 13.140/2015), na esteira da Resolução CNJ nº 125/2010 e do Código de Processo Civil (art. 3º, § 3º), ocasião em que registramos a preocupação com a adoção dessa sistemática em relação aos processos que envolvem a prática de crimes, sob pena de revitimização das partes ofendidas.
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Atento a essa situação, o Conselho Nacional de Justiça iniciou o julgamento de Pedido de Providências n. 0001888-67.2019.2.00.0000[1], formulado pela Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas – ABC-SISTEMAS, com vistas a regulamentação desse procedimento pelo Judiciário.
No entanto, seguindo o posicionamento contrário da Comissão Permanente de Solução Adequada de Conflitos do CNJ, atrelado ao parecer do Conselho Federal de Psicologia, que também não reconhece a prática, o relator do caso, conselheiro Márcio Freitas, após uma extensa abordagem sobre o que se entende por Constelação Familiar, votou no sentido de que o Poder Judiciário não pode consentir com a adoção desse método para solução consensual de conflitos.
O parecer da Comissão referida foi categórico ao entender que:
“[…] Constelação não é método de solução de conflitos. Pode ser classificada como instrumento de sensibilização ou de preparação das partes para a construção de consenso por meio da mediação ou da conciliação. Como política judiciária (art. 334 do CPC e Lei de Mediação), quando a parte é intimada para comparecer à audiência de conciliação ou de mediação, é obrigada a comparecer, mas não é obrigada a permanecer nesse procedimento. Com relação à constelação, como não se trata de método de solução de conflitos, a parte não é obrigada a comparecer, muito menos a ela se submeter”.
O conselheiro Márcio Freitas, por sua vez, entendeu que “a descrição do método já é suficiente para colocar em dúvida a sua cientificidade”. Acrescentou, ainda, que a Constelação Familiar teria:
“[…] o potencial de revitimizar mulheres e crianças que tenham passado por situações de violência, ao as inserirem em dinâmicas que as obriga a reencontrar seus agressores, e ao reviverem o trauma experimentado. […].”
Outro ponto importante é que a pretexto de pacificar conflitos, a constelação familiar ignora o ambiente da violência doméstica e familiar, que se decorre em grande medida como consequência de um meio patriarcal, permeado por desigualdade estrutural de gênero, olvidando os desequilíbrios sociais, históricos e econômicos entre homens e mulheres. (grifos nossos)
Para afastar essa possibilidade em relação às mulheres, o voto apresentado pelo relator se respalda no fato de que o Estado Brasileiro é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres – CDAW, cujas Recomendações 33 e 35 direcionam o entendimento de que o Judiciário não pode corroborar com a submissão da mulher vítima de violência a procedimentos alternativos de resolução de litígios.
Para o relator, é “necessário deixar claro que não se pode tolerar o uso da constelação familiar sistêmica ou de qualquer prática, técnica ou dinâmica com o mínimo risco de revitimizar mulheres, vítimas de violência de qualquer natureza”.
Além disso, enfatiza que não deve ser aplicada apenas para mulheres, mas em todos os casos que envolvam violência, conforme excerto abaixo:
“[…] afasta[r] a possibilidade de utilização, no âmbito do Poder Judiciário brasileiro, de técnicas ou práticas que tenham o potencial de revitimizar quem, por ter sofrido violência está em situação de extrema vulnerabilidade, como mulheres que sofreram violência doméstica e familiar ou vítimas de crimes contra a dignidade sexual, por exemplo. Cabe ressaltar que a proibição que ora se sugere não veda a aplicação da técnica apenas no âmbito dos processos criminais, mas em todo e qualquer processo que envolva a vítima de crime. Com efeito, seria um contrassenso proibir que o juízo criminal encaminhasse a vítima para a constelação e, ao mesmo tempo, admitir que essa vítima pudesse ser submetida a este procedimento em uma vara de família, por exemplo.”
Nesse aspecto, a conclusão do relator está na mesma direção do que já expusemos. A Constelação Familiar não deve ser utilizada, de forma alguma, em casos que envolvam a prática de crimes.
Ao final, o conselheiro propõe a alteração da Resolução CNJ nº 254/2018, para vedar “no âmbito dos Tribunais e órgãos do Judiciário, o uso de Constelação Familiar Sistêmica ou outra técnica fundada em estereótipos a respeito do papel das mulheres ou da configuração familiar, bem como que tenha a possibilidade de submeter as vítimas de crimes a situação de revitimização”.
Como a vedação foi topicamente inserida no normativo que trata sobre a “Política Judiciária Nacional de enfrentamento à violência contra as Mulheres pelo Poder Judiciário”, significa dizer que, apenas nos casos de crimes envolvendo mulheres, não será admitida a Constelação Familiar, inexistindo qualquer restrição em relação aos demais casos.
Portanto, em que pese o Conselheiro Márcio Freitas rejeite a hipótese de regulamentar o tema tal como solicitado pela Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas, a decisão constante do voto acaba por chancelar a utilização da Constelação Familiar pelos Tribunais brasileiros nos processos em que não verificada a ocorrência de crime e violência às partes envolvidas.
O julgamento do processo ainda não foi concluído em razão do pedido de vista regimental formulado pela conselheira Salise Sanchotene. O feito deve ser incluído na pauta da próxima sessão presencial do CNJ, prevista para o dia 31 de outubro de 2023.
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[1] Disponível no canal do CNJ no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=EHWkrYKW33s