Encontra-se pendente de julgamento no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), pedido de providências formulado pela Associação Brasileira de Constelações Sistêmicas. A instituição busca regularizar a prática conhecida como “constelações familiares” no âmbito do Poder Judiciário. O relator do pedido, Conselheiro Márcio Freitas, votou contra a utilização das constelações familiares como método consensual de resolução de conflitos. Dentre os argumentos utilizados, destacou que a prática “tem estereótipo de família misógino e baseado em leis imutáveis”, sendo a sua aplicação “especialmente grave em casos de vítimas de crimes mulheres e crianças”. O julgamento foi suspenso em razão de pedido de vista formulado pela Conselheira Salise Sanchotene.
Idealizada por Bert Hellinger, a constelação familiar consiste em uma espécie de terapia alternativa baseada em elementos holísticos, empíricos e subjetivos, a qual se propõe – alicerçada nas chamadas “três leis do amor” [1] – a resolver conflitos interpessoais, especialmente no âmbito das relações íntimas de afeto (v.g., família, relações amorosas etc.). Sua aplicação no sistema de justiça ganhou capilaridade nos últimos anos, especialmente em Varas de Família.
Se a sua utilização está longe de ser um consenso no mundo jurídico, em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher o tema deve ser apreciado com um rigor ainda maior. No ano de 2021, foi publicada matéria na coluna Direitos da Mulher (site UOL) com o seguinte título: “[c]onstelação familiar na justiça: me mandaram perdoar ex que me agrediu”,[2] o qual de per si já traz a tônica da sua aplicação em tais casos.
Nesta semana, o texto da coluna Direito dos Vulneráveis possui um único propósito: demonstrar o quão inadequado é, a aplicação da prática conhecida como “constelação familiar” em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. Vamos aos argumentos.
1) Ausência de comprovação científica da técnica e violação ao dever de precaução
A prática conhecida como “constelação familiar”, embora popularizada em território brasileiro nos últimos anos, carece de comprovação científica, não possuindo o reconhecimento do Conselho Federal de Psicologia (CFP). Em recente Nota Técnica a respeito do tema, o órgão afirmou que: “a inconsistência científica e epistemológica da Constelação Familiar, bem como a sua dissonância com o Código de Ética Profissional do Psicólogo e legislações profissionais, levam os Conselhos Federal e Regionais de Psicologia a concluírem que a prática é, no momento, incompatível com o exercício da Psicologia”.[3] Pelos mesmos argumentos, o Conselho Federal de Medicina (CFM) também já se manifestou de forma contrária a aplicação da técnica por médicos.[4]
Se os próprios conselhos profissionais responsáveis pelas profissões ligadas à área da saúde rechaçam a aplicação da prática das constelações familiares – aventando, inclusive, uma possível transgressão ao Código de Ética da respectiva carreira –, com muito mais razão, a sua aplicação deve ser refutada como pretenso método alternativo de solução de conflitos em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Soma-se ao campo das incertezas que permeiam a prática da constelação familiar, a inexigência de formação específica em determinado curso superior para ser “constelador”, nome dado a pessoa que aplica a técnica nos “constelados”, nomenclatura utilizada para se referir as pessoas que se submetem à prática.
Submeter mulheres vítimas de violência doméstica – e portanto, pessoas já em uma situação de fragilidade e vulnerabilidade – a uma prática experimental e desprovida de evidências científicas, e que ainda poderá – conforme se verá adiante – resultar em processo de revitimização, é violar o âmago do corpus iuris protetivo do Direito das Mulheres (v.g., Constituição, leis, tratados internacionais de direitos humanos etc.), que possui dentre suas principais preocupações a proteção da dignidade das mulheres.
A postura estatal no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher deve ser pautada por um dever de cuidado com as vítimas, conforme propõe o próprio princípio da precaução quando aplicado às medidas protetivas de urgência: existindo incerteza acerca do risco, mulheres e meninas devem ser protegidas.[5] E aqui, embora não estejamos tratando da aplicação das MPUs, proteger parece-nos significar um único caminho: a não submissão de mulheres vítimas de violência doméstica a práticas desprovidas de comprovação científica[6].
2) Incompatibilidade entre fundamentos do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher e princípios estruturantes da constelação familiar
Além da ausência de comprovação científica – o que de per si já caracteriza obstáculo intransponível para aplicação da técnica aos casos de violência doméstica –, os fundamentos estruturantes da constelação familiar vão de encontro ao que propõe o sistema de combate à violência contra a mulher brasileiro.
Conforme Hellinger, as “Leis do Amor” – estrutura técnica da constelação familiar –, seriam capazes de harmonizar as relações entre as pessoas.[7] Essas “leis” são: a) a lei do pertencimento; b) a lei de ordem ou hierarquia e; c) a lei do equilíbrio.
Quando conjugadas, as “três leis do amor” idealizadas por Hellinger evidenciam a adoção de um modelo de família hierarquizado e que reforça papéis de gênero, indo na contramão daquele adotado pela Constituição Federal de 1988 e pela Convenção Americana de Direitos Humanos.[8]
A técnica da constelação familiar atribui como causa determinante de dores, aflições, conflitos e até mesmo da prática de infrações penais – e aqui entram os atos de violência doméstica e familiar contra a mulher – no seio das relações interpessoais, um suposto “desequilíbrio” por vezes até a nível inconsciente (nas palavras do autor) daquele que deu causa.
O referido raciocínio é inconciliável com as premissas do sistema de combate à violência contra a mulher, uma vez que minimiza a prática do ato pelo agressor, desconsidera – em sua magnitude – os efeitos deletérios da violência e o sofrimento da mulher e, em última instância, a ignora a desigualdade de gênero existente em nosso país. Nas palavras do Conselho Federal de Psicologia: “[u]m debate complexo, relacionado a questões sociais, históricas, culturais e econômicas, passa a ser reduzido a um conflito individual”.[9]
A busca pela solução do “mero conflito” e a preservação da família ganham proeminência em detrimento da existência da situação de violência no seio familiar, algo incompatível com o atual momento histórico do país, que reconhece o fenômeno autofágico da violência contra a mulher como uma questão a ser debelada pelo Estado. Nesse sentido, o próprio Supremo Tribunal Federal já emitiu diversos sinais reconhecendo a natureza pública – e não um mero conflito de ordem privada – do combate à violência doméstica e familiar contra a mulher (v.g., inconstitucionalidade da designação de ofício da audiência do art. 16 da LMP,[10] inconstitucionalidade da exigência de representação em casos de lesão corporal[11] etc.).
3) Constelação familiar como campo fértil para a revitimização
A interpretação dos dois argumentos anteriores (ausência de comprovação científica e incompatibilidade entre dogmas estruturantes da constelação familiar e sistema de combate à violência contra a mulher) nos levam a uma única conclusão: a aplicação da técnica resulta em um campo fértil para a revitimização de mulheres vítimas de violência doméstica. Novamente, a Nota Técnica 1/2023 exarada pelo Conselho Federal de Psicologia adverte: “a adoção da técnica pode desencadear ou agravar estados de dor, sofrimento e/ou de desorganização psíquica”.
Não é dado ao Estado autorização para colocar mulheres em situação de violência doméstica em rotas revitimizadoras. Leis e interpretações que assim o fazem são declaradas inconstitucionais pela Corte Constitucional. Logo, compactuar com a aplicação de uma prática – seja ela qual for – desprovida de evidências científicas e desconectada dos valores do sistema de combate à violência contra a mulher é abrir espaço para uma nova violência, desta vez – por ação ou omissão – do Estado.
Ao reconhecer o potencial risco existente na aplicação da técnica da constelação familiar às mulheres vítimas de violência doméstica, a Coordenadoria Estadual da Mulher em Situação de Violência Doméstica e Familiar do Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) exarou recomendação aos magistrados e equipes multidisciplinares de servidores do tribunal sugerindo a não utilização de práticas como a constelação familiar em crimes cometidos em contexto de violência doméstica e familiar contra a mulher.[12]
Neste mesmo sentido, é o teor do Enunciado 67 editado pelo Fórum Nacional de Juízas e Juízes de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (Fonavid): “No âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher não sejam utilizadas práticas de Constelação Familiar ou Sistêmica”. A posição também é encontrada na literatura acadêmica.[13]
Deste modo, a partir da trinca argumentativa desenvolvida ao longo do texto, a posição deste autor é inarredável: a prática da constelação familiar deve ser proibida no âmbito da violência doméstica e familiar contra a mulher.
Espero que tenham gostado. Até a próxima.
[1] HELLINGER, Bert. Ordens do amor: um guia para o trabalho com constelações familiares. São Paulo: Cultrix, 2001.
[2] BRANDALISE, Camila. Constelação familiar na justiça: “me mandaram perdoar ex que me agrediu”. Uol, 05 out. 2021. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/noticias/redacao/2021/10/05/constelacao-familiar-na-justica-me-mandaram-perdoar-ex-que-me-agrediu.htm.
[3] Conselho Federal de Psicologia (CFP). Processo nº 576600028.000008/2023-33. Nota Técnica CFP nº 1/2023, datada de 03/03/2023
[4] Conselho Federal de Medicina (CFM) Nota à população e aos médicos. Tema: incorporação de práticas alternativas pelo SUS. Datada de 13/03/2018
[5] HEEMANN, Thimotie Aragon. Princípio da precaução e medidas protetivas de urgência. JOTA, 18 abr. 2022. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/direito-dos-grupos-vulneraveis/principio-da-precaucao-e-medidas-protetivas-de-urgencia-18042022.
[6] Há quem compreenda em sentido diametralmente oposto: SILVA, Artenira da Silva e BARBOZA, Gabriella Souza da Silva. Possibilidade de aplicação da técnica das constelações familiares e da mediação nas varas especializadas da mulher e da violência doméstica frente a Resolução nº 125 do CNJ. Revista de Formas Consensuais de Solução de Conflitos, v. 3. n. 2. Jul/Dez 2017, p. 88-105.
[7] HELLINGER, Bert. Constelações familiares: o reconhecimento das ordens do amor. São Paulo: Editora Cultrix, 2001.
[8] Corte IDH, Caso Atala Riffo e crianças vs. Chile, Mérito, Reparações e Custas, Sentença de 24 de fevereiro de 2012, §142
[9] Conselho Federal de Psicologia (CFP). Processo nº 576600028.000008/2023-33. Nota Técnica CFP nº 1/2023, datada de 03/03/2023
[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 7267. Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. 22/08/2023.
[11] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4424. Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, j. 09/02/2012.
[12] CEVID/TJ. RECOMENDAÇÃO N° 001/CEVID/TJPR/2022. Editada 16/09/2022
[13]FERREIRA, Cláudia Galiberne; GONZAGA, Heitor Ferreira; ENZWEILER, Romano José. Constelação familiar e a promoção da economia do medo: mais uma das formas de violência contra a mulher. Revista da ESMESC, v. 28, n. 34, p. 116-145, 2021.