No último dia 30 de setembro, o CNJ aprovou o Ato Normativo 0005870-16.2024.2.00.0000, cujo objetivo é o de reduzir a litigiosidade trabalhista no país. Um dos pontos mais importantes das novas regras é que, uma vez homologado pela Justiça do Trabalho, o acordo entre empregador e empregado a respeito da rescisão do contrato de trabalho será considerado quitação final, de forma a vedar o ingresso futuro de reclamação trabalhista sobre os termos do acordo.
Como se pode observar, o mencionado ato normativo consiste em mais uma iniciativa para reduzir a litigiosidade a partir do reforço dos mecanismos de consensualidade, valorizando os meios extrajudiciais de composição de conflitos, tais como a mediação.
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Não obstante, é importante questionar se realmente podemos apostar tanto em soluções baseadas no consenso e na autonomia privada, especialmente em um país como o Brasil, marcado por tantas desigualdades. Sob várias perspectivas, parece que a expansão da consensualidade no processo civil brasileiro vem ocorrendo sem a devida reflexão sobre as restrições à autonomia privada que são enfrentadas por parte significativa dos brasileiros.
Com efeito, até hoje não conseguimos nos libertar por completo da visão de mundo liberal do século 19. Baseada em uma necessária igualdade formal entre as pessoas, tal compreensão supervalorizava o papel da vontade e do consenso na estruturação da sociedade e das obrigações jurídicas.
Vale ressaltar que, na época, a perspectiva jurídica era perfeitamente compatível com a visão econômica prevalecente que, por ser baseada em pressupostos igualmente idealizados, via na vontade e no consenso obtidos por meio dos contratos a razão do perfeito funcionamento da economia de mercado.
Não é exagero afirmar que a consensualidade se ajustava perfeitamente a um mundo em que todos os agentes econômicos eram igualados analiticamente – abstraindo-se, portanto, as relações de poder, dominação e assimetria – e, além de tudo, eram considerados racionais, com acesso à informação perfeita e atuação em mercados pulverizados e com livre concorrência, de forma que sempre teriam várias alternativas no sentido quantitativo e qualitativo.
Ocorre que o mundo real é muito distinto daquele plasmado pelas teorias econômicas e jurídicas. Nele, os agentes econômicos são desiguais, de forma que os mais fortes podem exercer verdadeiras dominações e coações sobre os mais fracos. Ademais, os agentes econômicos têm racionalidade limitada, enfrentam grandes problemas de assimetria informacional e atuam em mercados quase nunca competitivos, o que é igualmente um fator que constrange o exercício da sua autonomia privada.
Não é sem razão que hoje muito se questiona o papel do consentimento em relação a uma série de direitos, especialmente quando estes são muito importantes. Um poderoso exemplo nesse sentido diz respeito às dificuldades para que a base legal do consentimento possa ser utilizada de forma segura por agentes de tratamento de dados.
De fato, passada uma primeira onda de euforia com as soluções consensuais ou de mercado, logo se observou que, por uma série de razões, aí incluída a assimetria informacional, é praticamente impossível um consentimento qualificado que atenda a todos os requisitos da LGPD. Daí por que cada vez mais outras bases legais têm assumido maior protagonismo no regime de tratamento de dados.
Não obstante, ainda continuamos a cultuar o consentimento em diversas outras esferas tanto do direito material como do direito processual. Se isso seria preocupante mesmo em um país desenvolvido, imagine-se em um país em desenvolvimento e repleto de desigualdades como o Brasil.
A título de exemplo, de acordo com o INAF, apenas 12% dos brasileiros podiam ser considerados proficientes em 2018, ou seja, teriam realmente amplo domínio das capacidades de compreensão e expressão da língua. Isso representa apenas pouco mais do que 17 milhões de brasileiros entre 15 e 64 anos.
Segundo o próprio INAF, somente os indivíduos proficientes são capazes de elaborar textos de maior complexidade (mensagem, descrição, exposição ou argumentação) com base em elementos de um contexto dado e opinar sobre o posicionamento ou estilo do autor do texto e interpretar tabelas e gráficos envolvendo mais de duas variáveis, compreendendo a representação de informação quantitativa (intervalo, escala, sistema de medidas) e reconhecendo efeitos de sentido (ênfases, distorções, tendências, projeções).
Em outras palavras, somente as pessoas proficientes estão aptas a “resolver situações-problema relativas a tarefas de contextos diversos, que envolvem diversas etapas de planejamento, controle e elaboração e que exigem retomada de resultados parciais e o uso de inferências”.
Tais dados mostram o quanto é preocupante adotar a premissa de que pessoas não proficientes – a maioria esmagadora do país – possam realmente consentir sobre seus direitos em análises que muitas vezes exigem a compreensão dos aspectos jurídicos envolvidos e não raro envolvem variáveis complexas, como avaliações de riscos e custo-benefício, tradeoffs entre o curto e o longo prazo, dentre inúmeras outras.
Vale ressaltar que, mesmo que os proficientes fossem somados com os intermediários, que giram em torno de 25%, ter-se-ia nessa conta apenas 37% dos brasileiros, o que representa pouco mais de um terço da nossa população. Assim, sustentar a autonomia da vontade diante desse contexto é realmente uma visão muito descolada da realidade.
Especialmente diante de direitos importantes e em situações nas quais já exista a presunção de vulnerabilidade, como ocorre nas relações de emprego, o consenso deveria ser visto com muitas reservas. Mesmo quando homologado judicialmente, pode ser bastante radical, no contexto brasileiro, impedir qualquer tipo de rediscussão do acordo, ainda mais sob fundamentos genéricos como proteção do investimento e segurança jurídica.
Aliás, a própria homologação judicial de acordos trabalhistas deve vir acompanhada de garantias. Espera-se do juiz que analise a legalidade e a proporcionalidade do acordo com os cuidados compatíveis com a natureza da relação trabalhista.
Tais aspectos mostram que a consensualidade precisa ser vista com cautela. Tão importante quanto apostar na consensualidade para resolver o real problema do abarrotamento do Judiciário brasileiro é entender que ela apresenta claros limites, especialmente diante de vulneráveis.