A consolidação da Diretoria de Gestão Regulatória (DGR) no âmbito do Detran-SP, inspirada nos modelos institucionais das agências reguladoras, tem produzido efeitos relevantes não apenas na reorganização da atuação finalística do órgão, mas, sobretudo, na forma como a Administração se posiciona diante de seus agentes regulados.
Essa nova racionalidade regulatória não se limita à reestruturação de fluxos internos ou à digitalização de rotinas. Ela implica uma releitura da função administrativa sob as lentes da consensualidade [1] e da responsividade [2], conceitos que vêm se afirmando como pilares de um novo direito administrativo voltado à eficiência, à integridade e ao resultado.
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Trata-se de movimento que se articula com diretrizes mais amplas da Administração Pública brasileira, como as recomendações da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) [3], quando discute sobre os modelos de governança regulatória colaborativa e instrumentos administrativos não adversariais e as diretrizes do próprio Tribunal de Contas da União [4], que vem reconhecendo a consensualidade como estratégia legítima de indução de conformidade.
Em paralelo, diversas agências federais — como Anatel, Antaq e ANA — têm adotado acordos substitutivos à via sancionadora como forma de promover resultados regulatórios mais eficazes e sustentáveis.
Ao alinhar-se a essas práticas, o Detran-SP demonstra que a reconfiguração de sua arquitetura institucional vai além de ajustes operacionais — trata-se de incorporar, de forma estrutural, a lógica do diálogo regulatório como eixo da política pública.
No centro desse movimento está a adoção dos Termos de Ajustamento de Conduta (TACs) como instrumentos substitutivos ao processo sancionador tradicional. Trata-se de ferramenta jurídica consagrada na prática das agências reguladoras e que encontra fundamento na atuação consensual do Estado, nos termos do artigo 26 da LINDB e da moderna doutrina sobre a função regulatória da Administração Pública.
No caso do Detran-SP, o TAC foi formalmente reconhecido como instrumento jurídico pela Portaria Normativa nº 25, de 27 de março de 2024, que estabelece regras gerais para o exercício de atividades delegadas ou reguladas pelo Detran-SP. A medida representa um avanço normativo no setor e posiciona a autarquia como referência em governança regulatória. Desde então, já foram celebrados cinco TACs com diferentes agentes regulados.
Mais do que uma alternativa procedimental, os TACs constituem expressão concreta da chamada regulação responsiva. Esse modelo propõe que a atuação estatal seja calibrada de acordo com a postura do regulado: quanto maior o grau de colaboração e disposição para a conformidade, mais dialógica e educativa pode ser a resposta do Estado; quanto mais resistente ou negligente o comportamento, mais severo e impositivo será o controle.
A consensualidade, nesse contexto, não é fraqueza, mas sofisticação regulatória. É a escolha estratégica de evitar a judicialização e a paralisia administrativa, substituindo a lógica do litígio pela lógica do comprometimento.
Nos primeiros meses de vigência da nova Diretoria, os TACs celebrados com empresas credenciadas de vistoria, estampadoras e médicos e psicólogos especialistas já revelam seu potencial transformador: agentes regulados têm assumido compromissos formais para correção de condutas, sem necessidade de imposição de sanções, com monitoramento posterior de sua efetividade.
Os primeiros TACs celebrados pelo Detran-SP evidenciam, já em sua fase inicial de implementação, a aplicabilidade concreta do modelo consensual em diferentes situações enfrentadas no âmbito da atividade regulatória.
Entre os casos pactuados destacam-se condutas como o cancelamento ou atraso reiterado na realização de exames de aptidão física e mental por peritos examinadores, comprometendo o andamento regular do serviço público; a verificação de ambientes de atendimento em condições insatisfatórias de higiene, ventilação ou sinalização nos estabelecimentos regulados; e o exercício de atividades delegadas em locais não previamente autorizados ou comunicados à Administração, em desacordo com as normas regulatórias vigentes.
Tais situações, embora revestidas de materialidade suficiente para a instauração de processos sancionadores convencionais, foram objeto de compromissos formais firmados entre o Detran-SP e os respectivos agentes regulados, com cláusulas que preveem prazos objetivos de adequação, medidas corretivas verificáveis e mecanismos de monitoramento técnico para aferição do cumprimento das obrigações assumidas.
Esse esforço regulatório ganha ainda mais relevância diante da dimensão do universo regulado: atualmente, o Detran-SP possui cerca de 70 mil agentes regulados ativos, entre pessoas físicas e jurídicas, em áreas como formação de condutores, exames de aptidão física e mental, vistoria, desmontagem veicular, despachantes, recicladoras, entre outras.
Nesse cenário, a construção de uma governança regulatória dialógica, capaz de priorizar a orientação, estimular a correção voluntária e induzir boas práticas, não é apenas desejável — é uma necessidade institucional.
E mais: a consensualidade pode ser expandida para além do eixo punitivo. Pode — e deve — ser usada para induzir a elevação dos padrões de qualidade na prestação dos serviços regulados em matéria de trânsito, mesmo em aspectos não tipificados diretamente na legislação: organização dos espaços físicos, conforto do atendimento, ventilação, sinalização, limpeza e identidade visual, por exemplo.
Esses elementos, embora não positivados, impactam diretamente a percepção de legitimidade do serviço público e a confiança do cidadão na atuação estatal. Incorporá-los como metas voluntárias nos termos de ajustamento representa usar o poder regulatório para induzir valor público, e não apenas contingenciar ou punir sua ausência.
O uso estratégico dos TACs no Detran-SP demonstra que a consensualidade pode ser um vetor de amadurecimento institucional e sua eficácia depende, entre outros fatores, da forma como o regulador exerce sua autoridade. Como bem apontam Quinalia e Festner (2024) [5], o exercício da autoridade deve vir acompanhado de “escuta, explicação e persuasão”, elementos fundamentais para induzir comportamentos colaborativos e garantir a efetividade da política regulatória.
A efetividade dos instrumentos consensuais, contudo, não depende exclusivamente da colaboração dos agentes regulados. Ela exige, também, um processo interno de maturação institucional, que passa pelo fortalecimento das capacidades técnicas da própria Administração. A implementação dos primeiros TACs no âmbito do Detran-SP revelou desafios significativos relacionados à mudança de cultura entre os operadores públicos.
Em muitos casos, verificou-se resistência à adoção de soluções alternativas ao processo sancionador tradicional, seja por desconhecimento dos fundamentos normativos, seja por receios quanto à responsabilização funcional ou à eficácia do modelo.
Tal cenário evidencia a importância de investimentos contínuos em formação, sensibilização e capacitação dos servidores envolvidos com a atividade regulatória, a fim de alinhar expectativas, reduzir inseguranças e consolidar uma visão estratégica da consensualidade como vetor legítimo de atuação estatal. A construção de uma autoridade reguladora responsiva exige não apenas boas normas e ferramentas adequadas, mas também pessoas preparadas para aplicá-las com técnica, responsabilidade e espírito público.
É preciso, no entanto, que sua aplicação seja orientada por critérios de proporcionalidade, transparência e monitoramento, de modo a não se tornar um instrumento de leniência ou de captura regulatória. Sem tais parâmetros, abre-se espaço para o uso indevido da consensualidade como escudo para a inação ou a complacência, como alerta José Roberto Pimenta Oliveira [6], “potestades consensuais no campo sancionador estão submetidas ao pleno controle jurisdicional, sob pena de instalar-se uma zona de imunidade, que, ao final, só legitimará possibilidade de arbítrio antirrepublicano sob o pretexto de atingimento de maior eficiência”.
Ao priorizar o diálogo qualificado com seus regulados e criar incentivos para a melhoria contínua, o Detran-SP dá um passo na consolidação de um modelo regulatório mais inteligente, responsivo e orientado a resultados. Os resultados preliminares indicam que o modelo é replicável, desde que se observe a necessidade de critérios claros de elegibilidade, proporcionalidade nas cláusulas e monitoramento efetivo.
A continuidade e expansão do uso de acordos substitutivos dependerão da consolidação de uma cultura organizacional voltada ao diálogo atrelada à contínua capacitação de colaboradores e à avaliação de desempenho regulatório. Nesse sentido, o TAC se projeta como ferramenta apta a integrar estratégias mais amplas de governança pública responsiva, podendo ser incorporado por outras entidades estaduais e municipais que enfrentem desafios semelhantes de ordenação e fiscalização.
[1] SUNDFELD, Carlos Ari; CÂMARA, Jacintho Arruda. Acordos substitutivos nas sanções regulatórias. Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, yr. 9, n. 34, jan./Mar. 2011.
[2] AYRES, Ian; BRAITHWAITE, John. Responsive Regulation: transcending the deregulation debate. Oxford: Oxford University Press, 1992.
[3] BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro – ENCCLA. Brasília: MJSP, [s.d.]. Disponível em: https://www.gov.br/mj/pt-br/acesso-a-informacao/perguntasfrequentes/ativos_cooperacao/estrategia-nacional-de-combate-a-corrupcao-e-alavagem-de-dinheiro-enccla. Acesso em: 12/04/2025.
[4] PALMA, Juliana. Regulação responsiva: a visão do TCU. JOTA, 23 out. 2023. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controlepublico/regulacao-responsiva-a-visao-do-tcu. Acesso em: 09/04/2025.
[5] QUINALIA, Cristiana Camarate Silveira Martins Leão; FESTNER, Susana dos Santos. O papel do regulador de TICs e a persuasão do regulado na solução de problemas. JOTA, 6 jun. 2024. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-eanalise/colunas/mulheres-na-regulacao/o-papel-do-regulador-de-tics-e-a-persuasao-doregulado-na-solucao-de-problemas. Acesso em: 09/04/2025.
[6] OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. Consensualidade no Direito Administrativo Sancionador: breve análise do ajustamento disciplinar. In: OLIVEIRA, José Roberto Pimenta; GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti (Org.). Direito Administrativo Sancionador Disciplinar. Rio de Janeiro: CEEJ, 2021. p. 12. Disponível em: https://www.academia.edu/67695108/CONSENSUALIDADE_NO_DIREITO_ADMINISTR ATIVO_SANCIONADOR_BREVE_AN%C3%81LISE_DO_AJUSTAMENTO_DISCIPLINAR _CONSENSUALITY_IN_THE_SANCTIONING_ADMINISTRATIVE_LAW_BRIEF_ANALYS IS_OF_DISCIPLINARY_ADJUSTMENT_1 Acesso em: 09/04/2025