Consensualidade administrativa e o papel da ANA como mediadora

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Nos últimos anos, a administração pública brasileira tem incorporado com mais intensidade a lógica da consensualidade na condução de suas funções, substituindo, sempre que possível, a rigidez da unilateralidade por formas cooperativas e dialógicas de atuação.

Essa tendência, reforçada por um contexto de alta complexidade regulatória e contratual, tem impulsionado o uso de mecanismos alternativos de resolução de conflitos, como a mediação e a conciliação, inclusive no âmbito das agências reguladoras federais. Neste novo momento, a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) desponta com papel renovado e inovador, agora também como instância mediadora no setor de saneamento básico.

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A Lei 14.026/2020, que atualizou o marco legal do saneamento básico, promoveu uma profunda mudança no papel da ANA. Ao incluir o §5º no art. 4º-A da Lei 9.984/2000, conferiu à agência a competência de atuar como instância de solução consensual entre titulares, prestadores ou agências reguladoras infranacionais na seara do setor de saneamento básico.

Trata-se de uma inovação institucional de grande relevância, pois estabelece um espaço oficial para que divergências regulatórias entre entes federativos e operadores possam ser solucionadas sem judicialização ou arbitragem.

Essa atribuição não confere à ANA poder decisório vinculante, mas sim a prerrogativa de facilitar o consenso entre os legitimados, por meio de instrumentos como a mediação e o arbitramento regulatório, notadamente dentro dos limites traçados pelas normas de referência, que constituem o escopo material da sua atuação mediadora.

Com o intuito de operacionalizar essa nova função, a ANA instituiu a Compor-ANA, sua instância interna de mediação e arbitramento regulatório, por meio da Portaria Conjunta ANA 538/2205. Além disso, publicou duas resoluções sobre o tema: a Resolução 209/2024, que trata de princípios, objetivos e diretrizes fundamentais para os procedimentos de resolução consensual de controvérsias, e a Resolução 258/2025 que detalhou o processo de arbitramento regulatório voltado a dirimir controvérsias regulatórias.

Importante destacar que essa nova função da ANA está rigidamente limitada às controvérsias relacionadas à interpretação e aplicação das normas de referência por ela editadas. Questões contratuais, como inadimplemento, revisão de cláusulas e desequilíbrio econômico-financeiro, não estão abrangidas por essa competência. Tampouco são admitidos, como legitimados, os usuários dos serviços ou associações do setor ou civis.

Apenas os titulares dos serviços, os prestadores e as entidades reguladoras infranacionais podem acionar a Compor-ANA. Essa limitação busca preservar o desenho federativo do setor e evitar sobreposição de funções com o Poder Judiciário e com os mecanismos arbitrais. Ao mesmo tempo, busca assegurar que a ANA se mantenha dentro dos contornos técnicos que fundamentam sua autoridade reguladora nacional.

A atuação da ANA nesse novo papel também convida a reflexões comparativas com outras experiências regulatórias. Destaca-se, nesse sentido, a Câmara de Negociação e Solução de Controvérsias (CNSC) da Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT). Embora ambas as iniciativas se sustentem na consensualidade administrativa, diferem sensivelmente em escopo e natureza.

A CNSC da ANTT trata de controvérsias que envolvem a interpretação, aplicação ou alteração de cláusulas contratuais, inclusive aspectos técnicos patrimoniais nos contratos de concessão, permissão e arrendamento. Ou seja, atua diretamente no campo das relações jurídico-contratuais reguladas pela ANTT, em um modelo mais próximo da arbitragem institucional.

Já a COMPOR-ANA tem escopo mais restrito e técnico-normativo. Sua atuação não envolve contratos administrativos, tampouco decisões com reflexo patrimonial direto, mas apenas divergências interpretativas em torno das normas de referência de regulação do saneamento, aplicáveis de forma geral e abstrata.

No mesmo campo da resolução de controvérsias, um ponto que merece atenção é a Resolução 620/2025, editada pela Agência Reguladora dos Serviços de Saneamento das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (ARES-PCJ), entidade reguladora infranacional que também atua no setor de saneamento básico.

A norma, ao condicionar o conhecimento e a deliberação de determinadas demandas à sua “discricionariedade técnica”, acaba por restringir indevidamente o acesso a meios jurisdicionais ou arbitrais. Tal postura sugere uma pretensão de blindagem das decisões regulatórias, em desconformidade com os princípios do devido processo legal e do controle jurisdicional das decisões administrativas.

A prerrogativa técnica da regulação não pode se converter em um manto de imunidade decisória. A legitimidade da atuação regulatória decorre não apenas de sua expertise técnica, mas da sujeição a mecanismos de controle institucional. Ao limitar o exame de controvérsias com base em critérios discricionários, a ARES-PCJ tensiona os princípios do Estado de Direito e da ampla defesa.

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A criação da Compor-ANA e a consolidação de um modelo consensual de resolução de controvérsias no âmbito do saneamento básico representam uma evolução significativa da governança regulatória brasileira. Trata-se de instrumento que, se bem utilizado, pode evitar conflitos prolongados, promover segurança jurídica e reforçar o papel da ANA como entidade técnica de referência nacional.

Contudo, é essencial que sua atuação permaneça dentro dos limites legais e que não substitua os espaços legítimos de adjudicação de conflitos mais complexos e patrimoniais. Do mesmo modo, é fundamental que entidades reguladoras locais e regionais não confundam discricionariedade técnica com exclusividade decisória. A consolidação de uma regulação moderna, dialógica e eficaz pressupõe abertura, responsabilidade e controle.